Canção final

Bárbara Paz narra os últimos dias ao lado de Hector Babenco e conta como transformou a dor da perda em filme

Bárbara Paz, em depoimento a Pedro Henrique França Colaboração para Universa Divulgação

"Não lembro exatamente como tudo começou. Talvez em 2010, pode ter sido antes, perdi essa precisão... Uma vez, num leito de hospital, já com o Hector doente do câncer, eu fiquei com muito medo de que ele não fosse voltar.

Naquele momento, despertou uma angústia em mim, de saber que ele poderia não mais existir. Como eu não ia registrar isso? Logo eu que estou sempre com uma câmera na mão? Falei: 'Vou fazer um documentário sobre você'. Ele perguntou: 'Quando começa?'. Disse: 'Já comecei'.

Foi assim, no hospital, que contei para ele da ideia de fazer esse filme. Eu e o Hector tivemos um encontro cinematográfico, intelectual. Natural que fosse assim até o fim. A gente queria transformar essas dores em arte, em coisas bonitas, ressignificar essa dor em beleza.

"Estar filmando era oxigênio para os dois seguirem"

O processo de filmagens foi espaçado. O trabalho se intensificou mesmo nos últimos três anos de Hector, quando o câncer voltou e ele decidiu parar tudo e fazer 'Meu Amigo Hindu' [2015], que seria o último longa dele.

Ele dizia para mim, "eu preciso que você filme". Eram dois filmes em um. O Hector gostava muito de trocar nessa linguagem fílmica, nesse amor que a gente tinha, que era fílmico. Saber que ele estava fazendo um filme, um outro filme, manteve ele vivo por muito mais tempo. Foi um alimento. Estar filmando era oxigênio para os dois seguirem.

O filme não é sobre o fim dele, apesar de saber que acompanhamos um homem enfermo. É um filme sobre memória. O Hector estava sentindo que tinha algo se quebrando nele.

Quando a gente está num relacionamento amoroso, íntimo, a gente fica mais vulnerável, frágil mesmo. E, quando tem uma enfermidade, uma doença junto, isso se torna ainda maior: você se torna cúmplice dessa pessoa, ela deposita a dor em você.

"Hector não queria partir, ele não queria o fim"

A câmera foi um acalanto. O que tentei deixar impresso nesse filme é que a fragilidade da vida é para todos, independentemente de você ser um artista. Mostrei essa fragilidade do homem e a sua complexidade.

Hector era um homem muito complexo e a maioria das pessoas não conhecia essa humanidade dele. A abertura que ele tinha para vida e para finitude. O Hector não queria partir, ele não queria o fim. Esse projeto é sobre filmar para não morrer jamais. Hector não deixava nada para amanhã.

Esse filme é um retrato dele. Cada música colocada ali tem um sentido. Todas foram escolhidas a dedo. A gente escutava muito Radiohead, acabamos ficando amigos dos caras da banda e deixaram essa música, 'Exit Music (For a Film)', pra gente. O Hector escutava muito Caetano Veloso também. 'Quizás, Quizás, Quizás' era a música da vida dele.

No seu último aniversário, fiz ele cantá-la. Era uma música dele, mas também da nossa relação. Quis deixar impresso o homem que conheci e tudo que envolvia ele. Qualquer um poderia fazer um documentário sobre o Babenco. Mas sobre o meu Hector, só eu poderia.

O nome desse filme, 'Babenco - Alguém tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou' não podia ser outro. Vem dele. Ele dizia: 'Quando eu morrer, tem que ter um médico e ele tem que me ouvir e dizer parou'.

O Hector morreu exatamente como falou que seria. O coração dele parou, mas não queria parar. Ele teve quatro paradas cardíacas até parar de vez. O combinado não era esse. Não teria fim. Estava combinado que o coração não iria parar.

"Coloquei de volta a aliança que usávamos no dedo dele"

A última coisa que fiz com Hector foi colocar de volta a aliança que usávamos no dedo dele. Fiz isso antes de viajar para o Rio. Quando ele partiu, eu estava no palco fazendo 'Gata em Telhado de Zinco Quente', do Tennessee Williams. Um texto que falava de câncer, morfina e amor. Foi durante as palavras de Tennessee que o coração dele parou.

Às 19h, antes de entrar em cena, liguei pro Hector, como sempre fazia. Ele me desejou 'merda'. E disse que era para eu brilhar de Maggie, minha personagem. Na saída da peça liguei várias vezes para ele, não consegui falar. Liguei para as filhas dele, me disseram que ele tinha sofrido uma parada.

Larguei tudo e peguei a estrada. No meio do caminho, ele se foi. Foi a pior viagem que fiz na vida. Tinha que chegar num lugar que não queria que existisse.

"Meu relacionamento com Hector foi um momento sagrado"

Se eu fosse levar a sério, prestar atenção ou me ofender com cada pré-julgamento na minha vida, eu paralisaria. Eu enfrento. E isso me dá combustão. Uma pena que o ser humano não consiga enxergar o outro lado.

A gente não tem que responder um julgamento, mas a gente responde, com amor, com afeto e com trabalho. Isso nunca me paralisou, isso me fez criar e enfrentar. Meu relacionamento com o Hector foi um momento muito sagrado e único na minha vida.

O julgamento faz parte, você mesmo se julga, se questiona e, às vezes, a vida te dá um porquê. Agora eu entendo tudo: por que tinha que existir esse encontro, por que tinha que existir essa obra. Tinha que existir um porquê.

"Acho que cumpri a missão que prometi a ele"

Quando recebi a notícia de que o filme foi escolhido para tentar a vaga no Oscar, comecei a chorar. Eu vi a risada dele, o sorriso. Hector deve estar muito orgulhoso com essa indicação. Ele falava sempre: 'Eu te falei'. Isso ficou tão forte em mim. É o que ele falaria, fumando um charuto e rindo.

Acho que eu cumpri a missão, a missão que eu prometi para ele. Não acredito que tenha algo nesse filme que ele não aprovaria. Ele estava sempre, o tempo todo no meu ouvido. Por exemplo: nunca tentei chegar no melodramático, que ele ia detestar.

Agora estou formando um time de mulheres para fazer essa minicampanha para o filme ficar entre os finalistas e ser indicado ao Oscar. Uma das filhas do Hector, minha enteada, Myra Babenco, está comigo produzindo essa campanha. Criamos um crowdfunding para conseguir mais apoio.

O fato de estar tudo online com a pandemia é bom, porque a gente fica mais conectado. Por outro lado, dói saber que as pessoas estão vendo esse filme pelo computador, e não numa tela grande.

"Quem vê o filme sai com vontade de viver"

O filme está chegando no coração das pessoas. O Hector é um exemplo, muita gente que vê o filme sai com vontade de viver. Apesar de ser um longa sobre despedida, é também sobre saber que somos finitos, principalmente numa época como essa em que estamos vivendo. Tivemos de diminuir o passo, olhar pra dentro. Esse filme fala disso. Somos finitos.

O documentário é também uma carta-resposta do que é a arte, do que é a cultura de um país. Um país sem cultura é um país sem alma. Esse filme fala exatamente disso, dessa formação desse homem, que nem se formou em cinema, mal sabia mexer numa câmera, mas que mostra do que um artista é capaz, de como sobrevive um artista."

O processo de despedida é um processo de transformação, de aceitação. Já perdi muitas pessoas na minha vida, tive de lidar com as perdas muito cedo. Mas a perda maior, além da perda da minha mãe, foi a dele, sem dúvida. Transformar esse amor em obra é como se ele tivesse deixado uma semente em mim, pra eu não parar. O Hector me falava muito isso: 'Confia em você', 'você não é só atriz', 'você é uma criadora'.

Quando a vida é difícil pra gente, como foi pra ele e pra mim, a gente se pergunta e se questiona se pode o tempo todo. Mas a gente não tem medo. A maior herança que ele deixou pra mim foi a confiança."

Não existe despedida quando alguém está dentro de você.

Bárbara Paz

Leia também:

Reprodução/UOL

De portas abertas

Atriz conta como deixou de romantizar monogamia para viver desejos livremente numa relação aberta com o marido

Ler mais
Marcus Steinmeyer/UOL

Forever young

Um ano e três meses após a morte da mãe, a cartunista Estela May aprende a viver sem a energia de Fernanda Young.

Ler mais
Thiago Bruno

Uma em cem

Thelma lembra provas que teve de vencer, antes do BBB, para ser a única negra da turma a se formar em medicina

Ler mais
Topo