Nossa relação, que já era próxima, ficou muito mais intensa depois que ele perdeu a visão. Parte disso veio do nosso processo de adaptação: meu pai não podia mais andar na rua sem a nossa ajuda, então foram surgindo códigos entre a gente, que aparecem nos detalhes, de um jeito muito natural. Por exemplo, ele sempre anda do nosso lado apoiando as mãos no nosso ombro - se aparece um degrau na frente, levanto o ombro uma vez. Se são dois, levanto duas.
Tem outro truque que meu pai usa na hora de se vestir. No armário dele, separa as roupas em duas pilhas: a da direita, que são as de ficar em casa e a da esquerda, que são as de sair. Sempre que ele se arruma, virou uma piada dizer que ele caprichou na pilha da esquerda.
Com tudo isso, eu também fiquei muito mais cuidadosa. Se a gente vai a um restaurante, por exemplo, fico de olho no garçom chegando com o cardápio e já peço para ele entregar para mim, não para o meu pai.
Se o ambiente está muito barulhento, o que ele brinca que deixa ele "três vezes mais cego", eu tento ou diminuir o barulho ou levá-lo para um lugar mais calmo. Ou se a gente está perto de várias pessoas e todo mundo começa a rir de algo que aconteceu, minha reação é automática: explico baixinho no ouvido dele quem fez o quê, para ele fazer parte do momento.
Meu pai é corintiano roxo e continua acompanhando aos jogos com o fiel radinho de pilha dele. Se a gente está junto e sai um gol, ele me pergunta como foi. E aí de tanto narrar os jogos do lado dele, acabei desenvolvendo essa vontade de ser jornalista, esportiva inicialmente. Depois, a vida me levou para outros caminhos, mas contar os fatos virou algo natural para mim — e foi justamente por isso que escolhi essa profissão.
Ainda falando de futebol, a nossa família ia sempre aos jogos. Mas depois que meu pai perdeu a visão, a gente acabou parando de ir. Eu tentei por muito tempo convencê-lo a pisar em um estádio de novo, mas ele dizia que não queria.
Quando consegui levá-lo na Arena Corinthians, depois de quase 20 anos, foi uma das maiores emoções da minha vida. Não sei nem o que aconteceu no jogo: passei o jogo todo olhando para a carinha dele, para a felicidade dele, que estava emocionado e arrepiado ouvindo e sentindo o grito da torcida.
Claro que ele se emocionou e chorou - meu pai, inclusive, nunca teve medo de chorar em público e foi com ele que aprendi a não sentir vergonha de demonstrar minhas emoções.