"Tenho direito de ser mãe"

Grávida, Raquel Pacheco encara os haters de Bruna Surfistinha e quer que as filhas sejam fortes e "militudas"

Raquel Pacheco em depoimento a Júlia Flores De Universa

"Sempre sonhei em ser mãe"

Desde criança eu tratava minhas bonecas como filhos, sempre quis ser mãe. Mas, por causa da fama que ganhei do meu tempo como "Bruna Surfistinha", tive que adiar essa ideia. Entre 2002 e 2005, fui garota de programa, contei minha história em um livro ["O Doce Veneno do Escorpião (2005)], minha vida virou um filme ["Bruna Surfistinha" (2011), do diretor Marcus Baldini, com Deborah Secco].

Com o meu primeiro marido, com que fui casada por 10 anos, entre 2005 a 2015, nem cogitei essa possibilidade. Foi um momento conturbado. O casamento acabou, mas a vontade de ser mãe, nunca.

Hoje, aos 36 anos, estou grávida de gêmeas idênticas. Se tivesse me tornado mãe na época em que imaginei, com 20 e poucos anos, teria sido uma loucura. Não conseguiria me dedicar como agora eu consigo, com a vida mais estável, mais madura. As meninas estão chegando no momento certo.

Eu e o Xico Santos, meu noivo e pai das gêmeas, nos conhecemos em setembro de 2020. Ele é ator e artista plástico, tem 31 anos. Nos conhecemos durante as gravações de um programa de sexo em que eu fui entrevistada, em setembro de 2020.

Nosso encontro foi forte: o Xico é canceriano e eu, escorpiana. O fato de eu ter me prostituído no passado nunca foi um problema. Ele sempre soube quem sou e quem fui. Com dois meses de relacionamento, tivemos uma conversa séria sobre o futuro

Assim como eu, ele também tinha vontade de ter filhos. Decidimos que era melhor esperar a pandemia passar. A gente cortou a camisinha e o anticoncepcional, pois pensei que ia demorar um tempo para engravidar... Que nada! Meu relógio biológico já estava prontíssimo.

Um dia, passei mal ao correr. Também reparei que minha menstruação estava atrasada havia 8 dias. De repente, fui ligando os pontos. Minha intuição foi forte. Algo me dizia que eu estava grávida.

Não quis comemorar até fazer o teste de sangue. Confirmei a gravidez no dia 19 de janeiro. A primeira pessoa para quem contamos foi a minha sogra, a Maria Alice. Nessa hora, senti falta de falar com a minha mãe [Raquel não se relaciona com a mãe adotiva e nunca conheceu sua mãe biológica].

"Faz 16 anos que não me prostituo, mas me julgam como se fosse recente"

Para mim, não faz sentido que duvidem de que serei uma boa mãe pelo meu passado. Convivi com muitas garotas de programa que eram ótimas mães. Tenho direito de ser mãe, nada pode me tirar isso.

Tem pessoas preocupadas com a criação das minhas filhas. Dizem que estão com dó por elas terem que carregar o peso de ter uma mãe que foi garota de programa. Enquanto falam esse tipo de coisa, minha preocupação é a de colocar duas crianças em um mundo com gente assim, preconceituosa, que não respeita o próximo.

Sinto que agora estou me transformando na minha melhor versão, que é como mãe. O fato de eu estar realizando um sonho, o de ser mãe, incomoda as pessoas. Antes de engravidar, recebi mensagens de pessoas dizendo que eu nunca conseguiria. Já aconteceu de eu acreditar nisso, de eu me questionar, de eu pensar: 'será que sou tão ruim assim?'

Faz 16 anos que não me prostituo. Tem quem me julgue até hoje, como se fosse um passado recente. As pessoas, principalmente esses haters das redes sociais, estão presas ao meu passado.

A figura da mãe é a de uma mulher muito pura, santificada, que nunca cometeu erros. Mas as minhas filhas vão saber tudo sobre mim, até da prostituição. Se não escondi do mundo, por que esconderia delas?

Já enfrentei julgamentos antes. Minha ex-sogra demorou mais de um ano para me aceitar. Era proibida de ir aos encontros familiares, não era nem convidada. "Ai, mas ela é garota de programa, deve ter algum tipo de interesse...", falavam. Eu era nova, tinha 20 anos, não entendia direito.

Com minha atual sogra as coisas foram bem mais fáceis. Como eu disse antes, a Maria Alice foi a primeira pessoa que soube que eu estava grávida. Ela nunca questionou se eu serei uma boa mãe ou não... E olha que ela é evangélica!

"Ouvir o coração delas foi o momento mais emocionante da minha vida"

Iniciei o pré-natal um pouco atrasada, pois me mudei para o Rio de Janeiro nesse período. Também queria encontrar uma médica que eu realmente gostasse. Comecei a me cuidar do meu jeito: cortei o álcool e o cigarro, mudei minha alimentação. Tinha muito medo da médica vazar a informação para a imprensa — não queria que as pessoas soubessem até que a gestação completasse três meses.

Um dia, com três meses e meio de gestação, acordei com dor na barriga e fiquei preocupada. Fui até o hospital e recebi o diagnóstico de infecção urinária. Quando fui fazer meu primeiro ultrassom, veio a surpresa.

Quando o médico ligou o aparelho, a primeira frase que ele disse foi: 'nossa, tem duas cabeças!'. Levei um susto, fiquei desesperada, porque imaginei que era um bebê com duas cabeças. Demorou para entender o que estava acontecendo...

"São gêmeos, parabéns", disse então médico. Quando ele falou isso, meu desespero de ser um bebê com duas cabeças passou, mas bateu o susto de ter dois filhos de uma vez. Jamais pensei que isso fosse acontecer comigo! Fiquei tão nervosa que tive uma crise de riso.

O desespero só passou quando ouvi os coraçõezinhos das meninas pela primeira vez. Parei de rir e comecei a chorar. Foi, sem dúvida, um dos momentos mais emocionantes da minha vida. Não imaginava sentir aquilo.

A gente acha que já passou por situações emocionantes até o momento em que nos tornamos mães. A força materna é tão grande que não consigo descrevê-la.

"Meu maior erro foi fugir casa. Não quero que isso se repita"

Acho que as meninas têm sorte, porque eu adoraria ter um pai e uma mãe feito o Xico e eu. Quero que elas cresçam já sabendo quem eu sou, quem é a mãe delas, o pai. Ainda não sei o exato momento em que sentarei para conversar sobre meu passado como garota de programa. Vou esperar elas crescerem um pouco para manter um diálogo, para que surjam dúvidas, não vou simplesmente jogar as informações.

Na verdade, vou aproveitar essa conversa para fala sobre respeito. O quanto elas têm que respeitar as pessoas, respeitar o próximo e a orientação sexual alheia. Elas crescerão em um ambiente cheio de tio gay, tia lésbica, tio trans. Aprenderão que o amor não existe só entre um homem e uma mulher

Não sei como me sentiria se uma das meninas decidisse ser garota de programa. Se fosse um trabalho fácil e legal, não teria parado. Eu me prostituí por três anos e parei justamente por não aguentar aquela vida

Sei como é ruim ser prostituta, ainda mais em uma sociedade machista. Acho que o maior erro da minha vida não foi ter sido puta, mas sim ter fugido de casa [Aos 17 anos, Raquel deixou a casa da família que a criou em Sorocaba, interior de São Paulo]. É esse o erro que eu não quero que elas repitam: deixar a família para trás. Tenho certeza que isso não vai acontecer, porque eu sei dos motivos e das faltas que senti para ir embora.

Darei todo amor, carinho e atenção que uma criança precisa para ter uma infância feliz e leve. E por falar em falta, faz muita falta ter minha mãe presente. Grávida, tenho sentido ainda mais falta dessa presença da avó materna. Quando descobri a gestação, na hora veio na minha cabeça a figura da minha mãe...

Fiquei com vontade de pegar o telefone e ligar para ela, mas não pude. Sempre tivemos uma relação difícil [Raquel não fala com a mãe desde que fugiu de casa. Sua última tentativa de contato com ela foi ao sair do reality show "A Fazenda", em 2011.]

"Minha vida sexual continua ativa na gravidez"

Comecei a montar o quartinho das meninas agora, no final de junho. O chá de bebê vai ser online, por causa da pandemia. Também iniciei a preparação do enxoval. São duas meninas! É claro que a gente tenta fugir do clichê, mas não tem como não imaginar duas garotas vestidas iguais, sapatinho combinando com a roupinha.

Antes eu planejava ter um parto humanizado. Até o momento em que descobri que seriam duas crianças. Eu, Raquel, prefiro ter um parto natural, mas foi o que falei para médica: "as meninas que vão decidir por elas".

Meu corpo já mudou bastante. Nos primeiros três meses estava ok, mas depois as coisas desandaram. Tive muita acne, comecei a engordar, os seios cresceram, só que agora não é o momento de me preocupar com a aparência, minha questão agora é a saúde.

Eu e Xico já escolhemos os nomes: Elis Pacheco dos Santos e Maria Pacheco dos Santos. Elis porque a Elis Regina faz parte da nossa trilha sonora. Já Maria é porque eu quis fazer uma homenagem a todas as Marias que passaram pela minha vida, inclusive para a atriz Maria Bopp, que me interpretou na série "Me chama de Bruna"

A minha vida sexual continua ativa, claro que algumas coisas mudaram por causa do tamanho da barriga, tem várias posições que não consigo fazer, mas cada uma precisa encontrar a que a deixa confortável. A libido muda muito, gravidez é uma explosão de hormônios

Eu e meu noivo estamos mais conectados na cama. O Xico sabe que é difícil de fazer algumas posições, então ele acaba compensando de outras maneiras. Nem sempre o sexo é penetração. É a masturbação, o sexo oral

No momento estou oferecendo um workshop para ajudar a melhorar a vida sexual das mulheres. Além disso, também estou terminando de escrever meu último livro. Depois disso, quero começar um blog de maternidade, falar sobre maternidade real, sobre todas as dificuldades de ser mãe.

Quero ajudar outras mulheres, não só na vida sexual delas como Bruna Surfistinha, mas também como Raquel versão mãe.

"As pessoas precisam respeitar minhas filhas"

Parece que somente aos 36 anos estou sentindo minha vida começar. É como se daqui em diante ela passasse a existir de fato. Até agora eu estava passando por uma fase de amadurecimento.

Quando anunciei minha gestação, recebi mensagem de uma pessoa dizendo: 'chega de vadias no país'. Ele estava se referindo às minhas filhas. Elas nem nasceram, é revoltante.

Eu não tenho medo de ir a reuniões escolares, festas infantis. Não me preocupo. Eu sempre consegui me resolver bem em situações presenciais, me posiciono bem. Se alguém falar alguma coisa, eu vou responder à altura. É claro que eu espero acolhimento das outras mães. Talvez a escola também precise dar algum apoio. Instruir os pais, não sei.

Se um dia chamarem minhas filhas de filhas da puta, vou parar para explicar a elas o que é 'palavrão'. Espero que elas reajam bem, que deem risada e pensem que isso é uma besteira

Tenho medo do futuro. Se eu pudesse, colocaria as duas em um potinho, para protegê-las dessa sociedade. Não estou colocando filho em um mundo ideal, no mundo que eu gostaria que fosse. Quem sabe não só as minhas filhas, mas as filhas de todas essas mulheres grávidas da nossa geração, façam as mudanças que precisamos. Vou criar a Elis e a Maria para serem duas mulheres fortes, duas pequenas "militudas".

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Ricardo Borges/Folhapress

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