O que veio depois

Ao surgir na TV, aos 12 anos, Valentina Schulz sofreu assédio sexual. Hoje, aos 18, ela diz como isso a marcou

Valentina Schulz em depoimento a Ana Bardella De Universa Arte/UOL

Em 2015, quando minha mãe me explicou que eu estava sendo assediada na internet, me lembro de ter respondido: "Mãe, relaxa". Na minha cabeça, era natural ter haters, receber comentários negativos. Eu tinha só 12 anos.

Eu havia estreado no MasterChef Jr, versão com crianças do reality show de culinária da Band, na noite anterior. Mesmo assim, para mim, era uma manhã normal de escola - eu estava no 6º ano. Mas assim que coloquei os pés em casa, ainda vestindo o uniforme, percebi que havia algo de estranho.

Normalmente naquele horário, meus pais estavam cada um no seu trabalho. Mas naquela tarde, no entanto, os dois estavam na sala e o nosso telefone fixo não parava de tocar. Na maior parte das vezes, eles nem atendiam. Em outras, tiravam do gancho e pediam, nervosos, que por favor, parassem de ligar.

Logo percebi o contraste no rosto da minha mãe: na noite anterior, depois de me ver estrear na televisão ela estava feliz, animada, para cima, assim como eu. Agora, porém, sua expressão era de medo e preocupação. Pensei que pudesse ser alguma questão de trabalho, almocei e levei meu notebook para a área externa de casa. Passei algum tempo assistindo a vídeos do YouTube, algo que sempre adorei fazer. Não demorou, ela me chamou para conversar.

Primeiro, ela me ensinou o que era assédio. Depois, os motivos pelos quais ele é tão problemático. Em seguida, disse que, após a exibição do programa, alguns homens estavam me assediando na internet, mesmo eu ainda sendo criança. Conversamos sobre o que poderia ser feito dali para frente para que aquilo parasse. Foi uma conversa longa e chata.

Uma das frases postadas sobre mim, que ficou mais conhecida, foi: 'Se tem consenso, é pedofilia?'. Eu tinha só 12 anos, não sabia o que era estupro, muito menos consentimento

Eu não sabia que havia um grupo de homens insinuando coisas sobre meu corpo, que estavam literalmente ameaçando a minha vida. Tinha até gente dizendo que, se me encontrasse na rua, iria me sequestrar.

"Uma luzinha se apagou dentro de mim"

Minha família sempre usou a cozinha como forma de reunir as pessoas — e fazemos isso até hoje. Meus pais amam cozinhar. Minha paixão por essa área começou por causa deles, mas, principalmente, pelo MasterChef. Depois de ter assistido à versão dos adultos, fiquei encantada pelo assunto, ao ponto de eles me matricularem em uma escola especializada que ficava perto da nossa casa.

Foi graças a essas aulas que entrei para o elenco do programa. Quando o MasterChef Jr. veio para o Brasil, a produção ligou para a minha escola pedindo indicação de alunos para participar. Fui uma das inscritas e passei por quatro ou cinco etapas de processo seletivo. Lembro do meu pai pedindo que eu não criasse muita expectativa e que aproveitasse ao máximo tudo o que estava vivendo. Quando recebi a resposta positiva, foi uma surpresa, ficamos muito empolgados. Nunca tínhamos vivido algo assim.

Eu já fazia aulas de teatro há anos e era uma oportunidade de unir duas coisas que eu amava: conversar com as câmeras e cozinhar. Gravamos a temporada toda antes de ir ao ar. Foi muito divertido. Como todos éramos crianças, o espírito era menos competitivo no programa. Ninguém se importava tanto com o prêmio final, então nos tornamos muito amigos.

Todo episódio, independentemente de quem saísse, eu chorava. Quando eu chegava em casa e contava para minha mãe quem tinha saído, ela também ficava tocada. Nos envolvemos emocionalmente uns com os outros.

Quando o programa foi ao ar pela primeira vez, reunimos meus tios e minha madrinha em casa para assistir. Estava achando o máximo, era um sonho se concretizando. Nesse dia, nem entrei nas redes sociais, então não sabia o que estava acontecendo ali

Foi só na tarde seguinte, depois da conversa com a minha mãe, que fui tendo mais noção. Alguns dias depois, uma das minhas youtubers preferidas, a Jout Jout, postou um vídeo motivado pelo meu caso, chamado "Vamos fazer um escândalo", falando especialmente sobre assédio. Foi ali que comecei a entender parte da gravidade do que estava acontecendo.

A Jout Jout era uma pessoa que eu admirava muito, com um canal enorme, falando sobre mim. Comecei a questionar qual era o real tamanho do problema.

Ainda assim, não tive vontade de pesquisar o que aqueles homens estavam dizendo. Sabia que aquilo só me faria mal. Além disso, se eu tivesse vontade de saber, meus pais me contariam, pois estavam sendo totalmente honestos.

Então chegou a exibição do segundo episódio do MasterChef: a prova era o preparo de empanadas e me lembro de ter ido muito bem. No entanto, minhas cenas foram cortadas, para evitar que os ataques continuassem.

Por um lado, fiquei triste, mas, por outro, entendi que era o melhor a ser feito. Aos poucos, foi como se aquela luzinha, radiante de felicidade, se apagasse dentro de mim.

As pessoas culpavam meus pais por terem me deixado participar. Culpavam a Band. Culpavam a camiseta que deixava meu ombro de fora

As fotos dos homens sempre eram borradas nas reportagens que saíam sobre mim, enquanto as minhas e da minha família apareciam gigantes nas primeiras páginas do jornal. Eu estava muito confusa, só queria que aquilo acabasse e que minha mãe parasse de chorar e de se sentir culpada por ter permitido que eu realizasse meu sonho.

Mas eu sempre tive uma certeza: nada daquilo era justo. A culpa de quem comete um assédio é sempre, exclusivamente, do assediador.

"Para que existem as leis se elas não funcionam?"

Meus pais faziam questão de me mostrar que eu não era a única que já havia passado por isso. Quando a campanha #MeuPrimeiroAssédio", organizada pela ONG feminista Think Olga em função do meu caso começou, eles me avisaram. Ali, as mulheres compartilhavam a hashtag e desabafavam sobre o que havia acontecido com elas no passado. Eles queriam me mostrar que outras mulheres tinham sofrido assédio na minha idade e sobrevivido a isso. Infelizmente, era algo comum. Eu não estava sozinha.

Eu sabia o que estava acontecendo, mas não da proporção nacional que a campanha tinha tomado. Não entendia o quanto o assunto havia se tornado gigante, mobilizado milhares de pessoas e marcado a história do feminismo naquele ano.

Enquanto isso tudo acontecia, minha vida continuava. Na escola, a direção pediu aos outros pais que orientassem seus filhos a não me perguntarem sobre os assédios. Eu já estudava lá há muito tempo e a sensação que tive foi de que tudo permaneceu tudo igual. Quando o MasterChef acabou, de certa forma foi um alívio, porque as coisas em casa começaram a se acalmar.

Alguns meses depois, fui com meus pais à delegacia. Eles me educaram tentando mostrar que a justiça existe e quem nos faz mal deve ser punido. Foi um dia difícil, em que tive que reviver em voz alta cada detalhe. Foi um terror psicológico

Tínhamos prints, nomes e provas de tudo. Gastamos com advogados. E, no final, ouvimos que "a polícia tinha problemas maiores para resolver". Aquilo me deixou chocada. Judicialmente, tudo era crime. Mas nada foi levado para frente. Se nem um dos casos de maior repercussão de assédio na internet era levado a sério, imaginei um fato isolado de outra menina? Para que existem as leis se elas não funcionam? Não entendi na época e sigo com esse questionamento até hoje.

O que eu queria era que a minha vida voltasse ao normal. Muitas coisas boas aconteceram: comecei o meu canal do YouTube e a produzir mais conteúdo para as redes sociais. A partir do MasterChef, minha vida tomou um rumo totalmente diferente. Porém, isso não significa que depois do programa o assédio diminuiu. Ele só foi menos relatado.

Continuo sendo assediada sexualmente todos os dias, como a maioria das mulheres que têm suas redes abertas. Isso está na nossa cola em todos os momentos.

Mesmo quando posto uma foto e penso: 'Nessa estou de gola alta, até meu pescoço está coberto', vem alguém e fala do formato do meu rosto, dos seios. É um infinito, não acaba nunca

"Senti uma raiva generalizada de tudo"

Com o passar dos anos, minha confusão se transformou em vários sentimentos. No comecinho, tive medo de que as pessoas da internet se transformassem em pessoas reais, que pudessem machucar a mim e minha família. Depois, senti uma raiva generalizada de tudo e todos que estavam envolvidos. Passei a ter muito nojo de situações assim.

Comecei a fazer terapia, mas demorei anos até me sentir confortável para falar sobre o que havia acontecido comigo naquela época. Desviava do assunto porque não conseguia digeri-lo. E as pessoas não me deixavam esquecer.

Todo mundo que me encontrava, fosse na rua ou em uma festa, me perguntava sobre o assédio. Para mim, aquilo era muito estranho. Esse, definitivamente, não é um assunto que se aborda com alguém que você acabou de conhecer

Por isso, conforme me tornei adolescente, fui pesquisando na internet mais informações sobre o que tinha acontecido na minha infância. Chorei horrores, mas finalmente entendi que fãs e conhecidos não estavam sendo insensíveis ou me rotulando como a "menina assediada". Eles só ficaram fortemente impactados, porque foi uma história chocante e que mobilizou muita gente.

Percebi também que havia formas melhores de lidar com tudo. Hoje, por exemplo, tenho 18 anos e sou vista como uma pessoa apta para falar de feminismo e posso usar a minha voz para diversas causas importantes, como o espaço da mulher no mercado de trabalho e o combate à violência doméstica. Acredito que qualquer pessoa com muitos seguidores deveria usar sua influência de forma positiva para conscientizar os demais em prol de causas sociais.

"Gostaria que as pessoas soubessem que a Valentina cresceu"

Sinto que estou vivendo uma fase mais leve agora. Acho que todos que passam por essa transição para a vida adulta, no fundo, buscam se livrar das coisas pesadas, dos traumas e daquilo que as magoou, para de se tornarem pessoas melhores. Não preciso negar, dizer que está tudo bem ou que os fatos do passado não me afetaram. Posso ser sincera, tocar nos assuntos menos confortáveis e buscar novas formas de superação.

Entendo que cada pequena conquista do movimento feminista já é uma grande mudança. Sou otimista, mas sei que é um processo muito lento. De vez em quando, a sensação é de que damos um passo para frente e três para trás

Desde o dia em que fui à delegacia e não encontrei amparo, a justiça continua sendo negligente com as mulheres. É só observar a maneira como foram tratados casos emblemáticos, como o da Mari Ferrer ou da menina de 10 anos que foi estuprada e engravidou do tio

De certa forma, acho um pouco chato quando associam meu nome só ao assédio. Eu já escrevi um livro, lotei o teatro com uma peça, mantenho um canal no YouTube, faço trabalhos comunitários. Por um lado, acho que isso me diminui. Por outro, considero positivo ter espaço para falar de um tema tão importante.

No fundo, gostaria que as pessoas soubessem também que a Valentina cresceu: tenho a sensação de que, por ter ficado famosa muito cedo, elas ainda têm essa dificuldade. Eu mudei, meus interesses mudaram. Não sou mais a mesma criança fragilizada, que ficava quieta diante de uma situação injusta. Eu sou outra pessoa, não só por causa dos assédios, mas por diversas questões de vida. Sou um ser humano, com erros e acertos.

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Ricardo Borges/Folhapress

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