'Sou mais do que uma música'

"Trem-bala" custou a sanidade de Ana Vilela, mas cantora quer transformar dor em novas canções

Ana Vilela em depoimento a Júlia Flores. Fotos: Zô Guimarães De Universa

"Não tenho dúvidas de que a Ana Vilela que escreveu a música 'Trem-bala' era inocente — uma típica adolescente do interior do Paraná, nascida em Londrina e que vivia grudada com a família.

A letra surgiu depois do término de um relacionamento. Minha ex-namorada me traiu com meu melhor amigo na frente de todo mundo e eu fiquei isolada durante um tempo, para baixo, trancada dentro do quarto. Até que um dia meu avô me chamou para conversar e falou sobre a velocidade da vida, sobre a importância de não ficar sozinha, de estar perto das pessoas que te amam.

Eu me lembro da data exata que escrevi 'Trem-bala'. Era o último dia das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. Terminei de assistir à final do vôlei, desliguei a TV e sentei para compor a letra. Foi um processo muito rápido, parece que eu emprestei o meu braço para alguém — uma coisa meio psicografada —, porque não me recordo de detalhes daquele momento. Quando dei por mim, a música estava pronta.

Como eu sou uma pessoa insegura, após finalizar alguma composição, mando o trabalho para conhecidos próximos escutarem. Enviei o arquivo para a Gabi, minha amiga de infância, e ela adorou; logo em seguida, ela encaminhou o material para outra pessoa. E assim foi indo...

Depois de um tempo, encontrei um vídeo aleatório no YouTube com a canção de fundo e algumas imagens de paisagem na tela. Fiquei desesperada, porque a gravação estava com 80 mil visualizações e não tinha nenhuma referência à dona da música - no caso, eu.

Inclusive, o título do vídeo era "Alguém conhece a dona dessa música?". Senti medo de roubarem minha obra e decidi gravar um vídeo autoral tocando 'Trem-bala'. Fiz o upload do arquivo no YouTube em um sábado de madrugada, fui dormir porque ia fazer prova de vestibular para curso de pedagogia no dia seguinte. Na manhã do domingo, quando conferi, a gravação já tinha mais de 100 mil visualizações.

Não acreditei, fiquei surpresa; aquilo não era apenas "um viral", era a chance de mudar de vida. Decidi embarcar naquela aventura, chamei meu tio para ser meu empresário e o sucesso foi tão meteórico que eu não pude comparecer à segunda fase do vestibular porque já tinha shows para fazer.

Ali eu decidi que queria me dedicar à música profissionalmente; não que isso não fosse meu sonho, mas, por causa da situação econômica da minha família, trabalhei desde jovem e não tive tempo livre para focar nisso.

"Naquele momento, eu queria nunca ter escrito a letra"

Na pandemia, "Trem-bala" foi, algumas vezes, o assunto mais comentado do Twitter, tipo quando o cantor Thiaguinho tocou a canção durante uma live. Mas, em agosto de 2020, fiquei chateada com a repercussão de uma notícia sobre uma mulher recuperada de covid que deixou o hospital ao som da música.

Na primeira vez que vi o nome da música entre os assuntos mais comentados do Twitter, meu coração quase parou de alegria. Achava que era uma campanha dos fãs, algo assim. Quando fui clicar para ler o que as pessoas estavam falando sobre "Trem-bala," e me deparei com comentários humilhantes e ofensivos, tive um ataque de pânico.

De repente "Trem-bala" estava nos trending topics, porém com piadas e frases negativas, debochando tanto da paciente quando da letra. Disseram até que Trem-Bala era uma saudação nazista; naquele momento, eu queria nunca ter escrito a letra.

Minha mulher teve que tirar o celular da minha mão de tão mal que fiquei com os comentários do Twitter. Fiquei um dia e meio longe das redes sociais, mal pra caramba, meu empresário teve que vir até em casa, eu queria desistir da carreira.

Eu pensava 'mas eu só estou fazendo meu trabalho, por que as pessoas querem me atacar tanto assim?'. Na terapia, digo que minha relação com 'Trem-bala' é parecida com um relacionamento: tem dias que amo, outros odeio.

Sei que é uma letra bacana e legal e queria que as pessoas ouvissem ela para sempre — e não é porque ela paga minhas contas não, mas sim pelo fato de ser uma letra bonita, inspiradora.

"Não me arrependo, mas pensei em desistir"

Foi assustador o processo de virar famosa de uma hora para outra. Hoje vejo que a fama não me agrada, o que me agrada é o fato de as pessoas reconhecerem meu trabalho.

Comecei a sofrer de ansiedade logo no início da carreira, me assustava com as cobranças de ser famosa; eu não precisava só tocar uma música, tinha que ser atriz, modelo, ter uma vida feliz na internet.

No dia em que trombei com o vídeo de 'Trem-Bala' no Youtube eu era uma menina do interior do Paraná de apenas 18 anos, nunca tinha saído de Londrina para viajar e ainda morava com meus avós. Do nada, todo mundo sabia meu nome, me reconhecia na rua, pedia fotos e autógrafos.

Minha vida mudou muito nesses últimos 5 anos. Em 2018, casei com a Amanda [Garcia], que conheci pela internet e comecei a namorar logo que 'Trem Bala' estourou. Foi com esse relacionamento que falei pela primeira vez sobre minha orientação sexual com minha família - fui criada na igreja e tinha receio de como iam receber a notícia. Mas fomos muito acolhidas - também pelo público.

Eu não me arrependo do que escrevi, continuo acreditando em todas as palavras da letra: acho que as pessoas se esquecem de viver o lado bom da vida. Mas amadureci e hoje, aos 23 anos, sou uma cidadã mais inconformada, sei que, enquanto artista, não posso ficar calada diante da calamidade pública e política que enfrentamos.

Vejo que a sociedade não está normal, a gente não consegue mais conversar com pessoas que discordam da nossa opinião. Acho que quando lancei 'Trem-Bala', há cinco anos, o cenário era propício para a música. Em pouco tempo, a sociedade mudou muito. Naquela época, a violência gratuita nas redes sociais ainda estava engatinhando. Agora, parece que todo mundo quer criticar por criticar na internet, atacar por atacar, dane-se quem está do outro lado lendo os comentários.

As pessoas começaram a falar mal de 'Trem-Bala' no Twitter sem nenhum critério. Já tinha ouvido críticas a respeito da letra - e, juro! Quando as críticas são construtivas, elas são bem-vindas —, mas de uns tempos para cá, a coisa piorou.

"Ao tentarem criticar a música, fazem comentários maldosos sobre minha sexualidade"

Acho que minha depressão piorou porque, antes da pandemia, eu podia ter mais contato com os fãs, vivia escutando histórias positivas, de pessoas que mudaram de vida por causa da música etc. Com o isolamento, o único canal de contato com o público virou a internet e - se na internet - as pessoas têm coragem de falar mal até da Beyoncé, quem dirá da Ana Vilela?

O que mais me machuca é essa cultura de ódio que está disseminada na internet. Parece que querem machucar uns aos outros, esquecem que todo mundo erra, todo mundo falha, querem cancelar as pessoas por qualquer coisa, inventam fake news.

A maioria dos ataques que recebo é feita por homens. Ao tentarem criticar a música, fazem comentários maldosos sobre a minha sexualidade, me chamam de sapatão, dizem que sou gorda; as mulheres não costumam fazer críticas sobre a pessoa da Ana em si.

Se as críticas são sobre a música, vou fazer o quê? Mas a partir do momento que passam a falar do meu peso, da minha família, da minha orientação sexual, as pessoas perdem a razão. Ninguém liga, mas eu tenho transtorno alimentar desde criança, é gatilho ler mensagens sobre meu corpo; é muito ruim ter que ficar me justificando o tempo todo para as pessoas.

Até hoje eu toco 'Trem-Bala' em toda apresentação que faço porque ela é uma música de sucesso, que as pessoas amam. Ninguém enjoou de 'Evidências', do Chitãozinho e Xororó, nem de 'É o amor', do Zezé Di Camargo e Luciano, por que a minha canção incomoda tanto, eu não sei.

"Trem-Bala diz que a vida é rápida, e não boa"

Faz mais de um ano e 6 meses que trato a depressão. São dias e dias de luta...

É muito louco pensar em como uma música tão positiva me gerou tantos problemas, entre eles a depressão. Quando tomei coragem para tornar públicos os meus problemas, recebi uma mensagem da minha avó. 'Eu não me conformo como uma letra tão doce te fez tanto mal', disse.

É uma canção que fala de amor, de coisa boa, não ataca ninguém, como é que podem se incomodar tanto com ela?

Se faço um comentário aleatório na internet sobre algum assunto, vem seguidor me criticar por 'Trem-Bala'. Posso estar falando de política, de qualquer assunto X, vem alguém falar da música. Não entendem que foi uma canção que escrevi há cinco anos, que é só uma parte da minha carreira, e me julgam por ela até hoje, como se fosse meu único feito profissional.

Parece que nessa hora as pessoas esquecem que um dos meus álbuns foi indicado ao Grammy, que componho letras sobre o amor LGBT. O que eu posso fazer? Eu sou muito mais do que 'Trem-Bala'

Desde o começo da minha carreira tento lutar contra estereótipos que eu não pedi para que construíssem. Sou tachada por uma música de 3 minutos como a salvadora, a positiva... E na verdade eu sou mais do que isso.

É uma pena que, hoje, um post meu sobre minha depressão tem mais likes e comentários do que um post sobre um trabalho novo. Se você for olhar o meu perfil no Twitter, vai se surpreender, sou uma pessoa diferente daquela Ana Vilela que canta "Trem-Bala". Eu reclamo, escrevo merda, crítico o governo.

Para quem não entendeu, a letra diz que a vida é rápida, e não boa. Quando compus a letra, eu precisava ouvir aquilo. Minha vida estava uma bosta e precisava fazer algo para mudar a situação. A letra não é fofa, não é bonitinha. É funcional!

Por isso eu acho que ela fez sucesso, porque atingiu diferentes pessoas - pra você ter noção, eu tive muita dificuldade de definir qual seria meu público-alvo depois de "Trem-Bala", porque todo mundo ouvia a canção, gente mais velha, mais nova, LGBTs, apoiadores do Bolsonaro... enfim.

"Tenho fé de que as coisas serão melhores"

No momento em que revelei que estava sofrendo crises de ansiedade por causa dos ataques à "Trem-Bala", não pensei muito na repercussão do assunto. Escrevi uma mensagem no Twitter, apertei enviar e foi isso.

Estou cansada de falar sobre assuntos pessoais, já disse: quero ser reconhecida pelo meu trabalho, não pela minha vida íntima. Estou pedindo pelo amor de Deus para que as pessoas parem de me atacar só por causa de uma música.

Quero seguir o caminho, tocar a bola para a frente. Vou focar no meu trabalho, nas minhas músicas novas, transformar a dor em arte; meu plano é lançar um disco que fale sobre esse período que estou vivendo.

Fiquei muito contente de ter recebido apoio, não só dos meus fãs, como também de outros artistas - tipo o próprio Thiaguinho, o Whindersson Nunes etc.

Acho que ódio se resolve com amor. Teve uma vez que um cara me xingou no Twitter e eu só disse 'olha só, nem vou falar contigo porque você deve estar muito mal para perder seu tempo escrevendo essa mensagem'. Logo em seguida ele me respondeu dizendo que, sim, estava na pior e que precisava de ajuda

Está todo mundo na pior. Saber disso me dá ânimo para mudar essa realidade; hoje em dia me conheço melhor, faço terapia, tenho 23 anos, sou casada (com a Amanda, minha mulher) e feliz. Eu não quero continuar depressiva para o resto da vida, gosto de ser feliz. Sou uma otimista incorrigível. Para seguir, eu preciso ter esperança de que vai ficar tudo bem - eu tenho fé nisso, mesmo não tendo religião.

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