'A dança cura'

A coreógrafa Deborah Colker conta como transformou o inconformismo com a doença do neto em aceitação e arte

Nina Rahe Colaboração para Universa, de São Paulo

Theo, meu primeiro neto, desvendou uma alegria muito grande quando nasceu. Quando fui mãe, e minha mãe virou avó, ela dizia que ser avó era a melhor coisa do mundo. E é verdade, é uma alegria, uma delícia, e isso tudo se revelou para mim. Ao mesmo tempo, Theo nasceu com uns machucadinhos na pele. Não sabíamos o que era e, pelo desconhecido, era algo que nos deixava assustados, sem chão.

Aparentemente, estava tudo normal. Ele respirava perfeitamente, fez o teste do pezinho, mas tinha esses machucadinhos e levou 24, 26 horas até os médicos conseguirem diagnosticar: epidermólise bolhosa distrófica recessiva, conhecida como EB. O nome é tão feio que me lembro de ter que anotar em um papel, porque não conseguia repetir.

O nosso corpo produz colágeno VII, que é o que une derme a epiderme. Temos essa cola para grudar o que está em cima e o que está embaixo e, para quem tem EB, essa cola não se dá de maneira suficiente. É uma pele mais solta, mais fininha, mais frágil. Então, há uma delicadeza, mas também uma força.

Como alguém que tem uma fragilidade no maior órgão do corpo, o órgão que nos protege de tudo, resiste?

Sempre achei incrível pensar em como o Theo, com tanta dificuldade, tem tamanha doçura. Em como ele não traz algo raivoso. Agora, aos 12 anos, ele está vivendo um momento de bastante lucidez e consciência em relação a essa mutação genética que possui.

É importante a gente entender que, quando fala de doença, a gente engessa. Pensar em mutação genética é algo diferente —e, se é diferente, existe um olhar diferente.

Quando eu fiz [o documentário] "Alma Imoral", conversei muito com o [autor do livro, o rabino Nilton] Bonder e ele falava sobre como a humanidade cresceu em quantidade e esse crescimento abrupto trouxe as raridades, os individuais, que são quem propicia os movimentos evolutivos. Depois me lembrei que o Leonard Cohen tem uma música linda que diz que há uma rachadura na superfície perfeita, lisa, que é por onde passa a luz. Comecei então a pensar: será que é por onde passa a minha luz?

"Sempre fui uma judia cética"

Eu não acho que a gente deve nomear a dificuldade de ninguém para ser o nosso caminho de luz. O que eu desejo é que tudo se resolva, melhore, e eu e a minha família trabalhamos para isso. Mas também tenho que nomear que uma mutação genética é algo que acontece e possibilita um olhar para a vida diferente, um olhar que a humanidade precisa. Quando contei para o Carlinhos Brown sobre o Theo, ele me disse: "Pergunte aos Orixás, o Theo é curado, a gente é que precisa se curar".

Para mim, que sempre fui uma judia muito cética, pragmática, disciplinada, algo mudou. Agora, quando ouço isso, não fico debatendo. São saberes que nos falam. E o que são essas mitologias? O que essas lendas estão nos dizendo?

Comecei a pesquisar várias religiões e culturas e fui entendendo, conectando acontecimentos.

Teve um período em que me tornei muito obsessiva em curar a pele do Theo. Eu pensava: "Se tudo que me propus, eu consegui, como não vou conseguir encontrar essa cura?". E a Clara, minha filha, me disse: "Mãe, presta atenção, você é apaixonada pelo seu neto Theo, que tem EB. Você é apaixonada por esse menino assim, com a história dele".

Eu fui sendo pressionada pela vida a aprender sobre algo em que eu era ignorante.

Até essa afirmação de que "sempre consegui tudo"... Como assim resolveu tudo? A vida não é sobre você, as coisas vão acontecendo, vão se organizando, janelas vão se abrindo, portas vão se fechando.

Mas eu realmente tenho algo em mim de que não vou desistir, pelo qual vou lutar e tenho força para isso. Acredito na ciência e é com quem estou de mãos dadas, mas ela demanda paciência e você precisa se fortalecer para essa espera, aprender a lidar com a discriminação, com um mundo injusto e com a própria demanda da doença. Há dias em que eu acordo com raiva da EB, que não tenho sabedoria para perceber que é a minha natureza.

Demanda de avó

Outro dia me perguntaram quantas pessoas têm EB no Brasil e, quando eu respondi por volta de 2.000 pessoas, me disseram que não era tão raro. O Brasil tem 200 milhões de habitantes, 2.000 pessoas é raríssimo. Mas se você pensar que tem doenças com 20 pessoas, 2.000 não é tanto assim. E eu queria ficar no raríssimo para ter mais atenção, mas a verdade é que não interessa a quantidade. São demandas em que precisamos prestar atenção, que fazem parte da nossa vida.

O que eu aprendi é que existe a dor e existe o sofrimento. A dor física é barra pesada, a gente tem que escutá-la e tratá-la. Já o sofrimento é o pânico de como vai ser o futuro, o que vai acontecer na escola, no trabalho.

E para isso há uma avó que diz: "Peraí, deixa eu ver como estão as pesquisas, deixa eu prever esse futuro".

Eu continuo tentando trazer uma terapia genética de Stanford para cá, que é um gel, de uso tópico, uma possibilidade de introduzir o colágeno VII e de interferir geneticamente, mas de modo menos invasivo. Há uma demanda de avó, mas há uma demanda da doença, e sei que tenho compromisso e responsabilidade com isso.

Quando criei o espetáculo "Cura" [estreado em 2021 e concebido nos três anos anteriores], eu quis pesquisar o que a dança, que é movimento e controle, poderia desenvolver. Quis explorar a imobilidade, que tem a ver com o Stephen Hawking [1942-2018, um dos mais renomados cientistas do século, diagnosticado com ELA], e o descontrole, associado ao autismo. Acho que consegui me aproximar dessas deficiências físicas, dessas fragilidades, mostrando que é algo diferente, mas não é feio. As pessoas se identificam, e é justamente isso que eu queria, que esse espetáculo falasse sobre a discriminação.

A gente tem que parar de ficar julgando, vigiando os outros, reparando em quem tem vitiligo ou eczemas, o que é algo que me chateia muito.

Quando vejo alguém olhando para o Theo, às vezes respondo: "Você não tem mais o que fazer? Vai encher outro". Se estou mais generosa, digo: "Está tudo certo, pode relaxar". Na maior parte do tempo, meu neto também se chateia. Em outras vezes, ele sente que a pessoa olha, porque ele sabe que é diferente, e está tudo bem.

Encontro com Iemanjá

Quando fazia os espetáculos, meus filhos [Clara e Miguel Colker] costumavam ir comigo aos ensaios, eu levava equipe para casa, e a vida sempre foi uma coisa embolada. O Theo foi ver muito "Tatyana", "Cão Sem Plumas", e eu perguntava das cenas, se achava que estava chato ou longo.

Em "Cura", ele acabou entrando, mas muito depois do início da pesquisa. É na sua voz que a gente traz a lenda do Obaluaê.

Theo sempre adorou ouvir histórias de terror para dormir, e eu ia inventando algo que pegava de filmes como "A Dança dos Vampiros", "O Bebê de Rosemary", "Drácula". Em uma dessas noites, contei sobre o Obaluaê.

Na lenda, Nanã, que é a Orixá que cria os seres humanos, quer ter um filho, mas dizem que está muito velha. Ela consegue ter gêmeos. Um é lindo, mas vira uma serpente e foge para a floresta. O outro, que é o Obaluaê, é cheio de feridas, e Nanã o acha tão horroroso que o deixa no mar.

É Iemanjá quem ouve seu choro e, quando o encontra, não vê feridas, mas uma criança linda. Ela o olha com olhos de mãe e depois o cobre de palha. A história se incumbe até disso, sobre como lidar com a realidade, porque é uma criança que precisa de proteção e que não pode se expor em público por causa da ignorância.

Mas muito antes de "Cura", na minha cabeça, o Theo já está presente quando faço, em "Tatyana", um solo sobre os cinco sentidos —para mim, era ele que estava ali, aquela coisinha que tinha tudo e demandava delicadeza.

Depois, em "Belle", [com um figurino] que tinha uma pele gigante, também pensava nele. E mesmo em "Cão Sem Plumas", adaptação do poema do João Cabral de Melo Neto [1920-1999], com a pele coberta de lama.

Era como se o Theo fosse me encontrando, e sinto que agora [em "Cura"] consegui realmente expressar, trazer sua voz para contar uma história.

Depois de 12 anos, foi uma maneira bonita de dizer que a arte cura, a dança cura, a alegria cura. Queria dizer isso para o mundo. Porque essa doença não é também uma tragédia, é o contrário: ela está ali me inspirando, me fazendo ser viva, ser artista.

Sozinha em Moçambique

Tantas vezes falei de negros e ouvi que não sabia o que era isso. A gente tem que respeitar, se calar e aprender o que não está vendo de onde aquela pessoa está.

O [escritor português] Valter Hugo Mãe, que esteve recentemente no Brasil, disse que a história da colonização portuguesa tem que ser revelada, estudada, discutida.

Na minha ida a Moçambique agora, senti um negócio. Estava em uma praça, todo o mundo cantando, dançando, e eu era a única branca. Mas eu sabia o que era essa diferença, eu tenho o Theo, e então eu respeitei muito e me deixei banhar por aquilo.

E "Cura" me aproxima ainda mais de quem tem EB porque muita gente que estava escondida apareceu. Conheci uma menina linda que me contou que estava com 30 anos, tinha se formado, trabalhava. E se hoje ainda existe discriminação, imagina há décadas atrás. Essas pessoas se escondiam, e isso dificulta o acesso a medicamentos, a tratamento.

E por isso virou a minha missão. Não só minha com o Theo, com a Clara, mas com todas as coisas que eu acredito na vida, porque a vida não é sobre a gente. A gente tem que usufruir dessa existência, agradecer a ela e, se alguma coisa acontece com você, aquilo passa a ser seu também.

Eu não esperava isso, mas não foi como se tivesse caído um meteoro na minha cabeça. A vida é assim, a natureza é assim, ela faz misturas, é surpreendente.

E hoje eu entendo que a gente precisa se curar em vários planos. O direito de pedir por cura é legítimo, mas quando falo de inclusão, a gente está falando do plano emocional. No plano intelectual, estão os conhecimentos e os saberes, mas há também o plano espiritual, que é a fé, e eu não vou perder a minha nunca.

O Theo não tirou um pedacinho da minha energia nem a minha alegria de viver. Tem algo que ele me trouxe que se chama DNA, ancestralidade, e o ser humano é um bicho que, quando se assusta, pode ficar com medo. Ou então enfrentá-lo.

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