Corpo de Atleta

Ex-nadadora e treinadora olímpica Michelle Lenhardt lembra trajetória das piscinas ao bodybuilding e à bulimia

Michelle Lenhardt em depoimento a Mariana Gonzalez Julia Rodrigues/UOL

"Demora um tempo para a gente reconhecer que tem uma relação ruim com a comida, que está no meio de uma compulsão alimentar.

Eu não sei exatamente quanto tempo isso durou, mas eu comia, comia, até não caber mais comida. Então eu vomitava, comia mais um monte e vomitava de novo. Durante as dietas, fiquei com fobia de comer fruta, porque tem frutose e, na minha cabeça, a frutose ia me fazer engordar. Um absurdo. Foi uma distorção alimentar o que eu vivi.

Eu sempre gostei de esporte e comecei a nadar com 4 anos. Quando entrei na escola, aos 7, era muito forte para o padrão das meninas da época e comecei a sofrer bullying —não era dado esse nome, mas me chamavam de menino e diziam que eu não poderia andar com as meninas, só porque eu gostava de correr, nadar e jogar bola.

Aos 12, 13 anos, eu sofria muito com isso. Entrei na adolescência tentando esconder meu corpo, porque era forte, diferente. Àquela altura, eu já era campeã sulbrasileira e tinha alguns títulos estaduais. Mas, ao mesmo tempo em que eu amava praticar esportes, também amava brincar de Barbie e cresci com aquela referência de padrão estético, de ideal feminino. Para disfarçar meu corpo e fugir das críticas, usava roupas largas, evitava usar saia e blusas que deixavam a barriga de fora.

Ler mais

"Aos 24, ouvi dos treinadores: Michelle, tu estás muito velha"

No meio aquático, eu não me preocupava com meu corpo, afinal, as outras nadadoras eram parecidas comigo: compartilhávamos dos mesmos objetivos e do mesmo tipo físico. Eu me sentia bem naquele ambiente e não sofria mais bullying —na piscina, importavam os resultados, e não se a atleta era magra, gorda, bonita ou feia.

Aos 24 anos, eu ainda estava no Rio Grande do Sul e não apresentava grandes resultados como nadadora. Então, ouvi dos meus treinadores: 'Michelle, tu estás muito velha para continuar nadando, a gente não vai mais te treinar'. Fui cortada do clube.

É difícil receber um 'não' justamente das pessoas que te treinaram a vida inteira. Não foi fácil. Eu tinha 24 anos e pensava: 'Não tenho mais carreira, não tenho mais nada'. Eu tinha acabado de me formar em publicidade e propaganda, mas, desde os 12 anos, ir para uma Olimpíada era meu sonho, e eu sabia que ainda tinha muito para dar. Isso me deixou triste, me fez duvidar de mim mesma, mas entendi que aquele 'não' não precisava ser definitivo.

Fui para São Paulo, passei algumas semanas treinando em uma universidade de Santos, que abriu as portas para mim, e depois no Pinheiros, onde conheci o Bruno [Fratus, medalhista olímpico e marido de Michelle]. Depois de três anos, consegui me classificar para a Seleção Brasileira de Natação.

O Bruno tinha chegado um ano antes, ele tinha 18, e eu, 27. Foram quatro anos de amizade. Ficamos muito próximos, compartilhávamos as mesmas músicas, trenávamos juntos, viajávamos para campeonatos. Ele era um parceiro do esporte e da vida. Em 2012, começamos a namorar.

Quando me classifiquei para os Jogos Olímpicos de Pequim, aos 28 anos, só pensava: 'Eu me tornei olímpica'. Me disseram que eu estava velha aos 24, mas aos 28 disputei uma Olimpíada. Tem muita coisa depois do "não".

Eu não tinha pretensão de ganhar uma medalha, sabia que estava fora da minha realidade e sempre fui muito honesta com meus resultados, mas queria ir para lá mostrar meu melhor —e consegui: em Pequim, fiz o melhor tempo da minha vida. Não foi uma vitória olímpica, mas foi uma vitória pessoal, vivi um sonho.

"Aposentadoria não foi uma escolha. Me vi sem chão"

Depois de Pequim, fui medalhista pan-americana pela segunda vez e quase me classifiquei para a segunda Olimpíada, aos 32 anos [que seria a de Londres, em 2012], mas lesionei a coluna.

A aposentadoria não foi uma escolha. Foi horrível, eu me vi sem chão.

A transição da carreira de atleta para uma vida 'normal' é muito difícil, porque o atleta fica um pouco perdido quando se aposenta, como se perdesse parte da identidade.

No meu caso, não tive tempo de me preparar psicologicamente para parar de nadar.

Passado o susto, decidi montar meu currículo e procurar emprego. Fui para uma empresa de tecnologia, mas não durei seis meses lá. No começo, eu estava emocionada, empolgada, mas logo comecei a me sentir presa dentro do escritório. Tinha que bater ponto, hora para entrar, para comer, para sair. Foi uma grande experiência, mas, ao mesmo tempo, foram os piores seis meses da minha vida.

Pedi demissão quando o Bruno recebeu uma proposta para treinar nos Estados Unidos, em 2013. Nós estávamos noivos, e ele falou: 'Michelle, eu estou indo. Vamos?'. Eu não estava feliz aqui e respondi: 'Vamos, seja o que Deus quiser'. Mal sabia falar inglês.

"Não queria ser 'só' a esposa do Bruno"

Fui para os Estados Unidos como esposa do Bruno, para acompanhá-lo nos objetivos dele como atleta. No primeiro momento, foi ok, mas conforme o tempo foi passando, fui me incomodando em ser dona de casa. Sentia que precisava produzir, ter objetivos.

Às vezes, eu ia para o clube com o Bruno, assistia a ele treinar e comecei a ajudá-lo com algumas técnicas. Eu filmava as saídas dele, depois assistíamos e pensávamos em como poderíamos melhorar. Nosso relacionamento de treinadora e atleta começou aí, de forma amadora.

Mas, na maior parte do tempo, eu ficava em casa sozinha. Ligava a TV e não entendia nada, porque não falava inglês. Adotamos o Harrison, nosso primeiro cachorro, então eu me sentia responsável por alguma coisa —tinha que alimentar, levar para passear, ensinar a fazer xixi e cocô no lugar certo—, mas continuava me sentindo mal.

Comecei a comer sem parar. A comida aqui é muito acessível, muito barata, mas também muito artificial. Logo percebi que meu corpo estava mudando —eu tive uma lesão na coluna, portanto não podia fazer exercícios.

Eu só comia, comia, comia. E me sentia cada vez pior, comecei a me dar conta de que estava perdendo o corpo de atleta e que, naquele momento, eu não era ninguém, era 'só' a esposa do Bruno.

Depois da atleta, veio a Michelle sedentária, que não conseguia aceitar que o corpo estava mudando. Até que eu encontrei um health coach na internet, procurei por ele e falei: 'Preciso de ajuda, não sei mais me alimentar'.

Com a ajuda dele, comecei uma alimentação mais regrada. Logo operei a coluna e pude voltar a fazer musculação. A cada duas semanas, mandava fotos do meu corpo de frente, de lado e de costas para o health coach acompanhar a evolução. Foi quando ele me fez uma proposta: 'Já pensou em competir no bodybuilding? Você tem corpo de atleta. Vamos aproveitar isso'.

"Quando tu começa a emagrecer, acha que é superior aos outros"

Ele me explicou que o objetivo era ganhar músculos e, para isso, eu teria que seguir uma dieta restrita e uma rotina rígida de exercícios. Depois, desfilaria de biquíni e salto alto, igual às modelos da Victoria's Secret. Pensei: 'Meu Deus, vai ser um fiasco, mas vamos nessa'. Eu precisava de um objetivo para me apegar.

No começo, foi só alegria, porque pareceu tudo muito simples. Como atleta, era fácil seguir a dieta e manter a disciplina dos treinos. Eu recebia o plano dos próximos dias e falava 'bora', sem parar para observar ou pensar como aquilo me impactaria emocionalmente.

A minha autoestima subiu demais, fiquei insuportável. Me tornei muito vaidosa, posava no espelho o tempo todo. Quando tu começa a emagrecer, começa a se achar superior às outras pessoas.

Depois eu amadureci e entendi que isso era uma futilidade enorme, mas, naquele momento, a sensação era de superioridade. Pensava: 'Se eu consigo, todo o mundo consegue'.

Quanto mais via resultados, mais queria continuar. Não podia comer um bolo, um chocolate. Virei uma pessoa muito chata. Toda vez que o Bruno queria ir a um restaurante, eu levava a minha marmita, e pensava: 'Tudo bem, é só comida'. Mas não é só comida.

Eu estava contente, cada vez mais magra e cada vez mais motivada para vencer o mundial de bodybuilding, que era o meu objetivo. Depois, vi que as consequências negativas eram muito maiores do que as glórias.

"Meu café da manhã era tilápia. Levantava peso chorando"

Foram dois anos nesse universo fitness. Chegou uma fase da preparação em que o meu café da manhã era tilápia e vagem. Eu seguia uma alimentação restrita, sem gordura e sem sal. Eu não pensava no que era gostoso e no que não era. Eu seguia o plano, não queria saber.

Eu praticamente não consumia carboidratos. Fui secando, comendo cada vez menos nutrientes, e meu cérebro ficou preguiçoso. Perdi um pouco do raciocínio lógico, meus hormônios ficaram todos desregulados, e eu me sentia irritada o tempo todo.

Os treinos misturavam musculação e cardio, três horas de exercícios todos os dias, mas eu ia me arrastando, não tinha energia, porque não comia quase nada. Às vezes, sentava no meio da academia e chorava. Levantava peso chorando. Eu estava me sentindo um zumbi.

Em 2016, me tornei campeã mundial de bodybuilding. Quando eu ganhei, pensei: 'Caramba, deu tudo certo'. Mas, depois da premiação, comi uma caixa inteira de brigadeiros e não parei mais. Literalmente.

Meu treinador me deixou na mão assim que a competição acabou. Não tive um acompanhamento pós-concurso, nenhum respaldo para voltar a uma dieta normal. Como ele não respondia minhas mensagens, pensei: 'Estou livre, posso comer o que eu quiser'. Em uma semana, ganhei oito quilos. Sem treinar, só comendo. Minha autoestima ficou no chão de novo. Eu estava deprimida, me olhava no espelho e não me gostava.

Essa competição aconteceu logo depois da Olimpíada de 2016, em que o Bruno não classificou, teve problemas com a mídia [na época, o nadador foi muito criticado por responder de forma irônica a uma repórter que perguntou se ele estava chateado ao não conquistar uma medalha], acabou perdendo clube e patrocínio.

Ficamos sem saída, eu e Bruno, os dois com depressão. Quanto mais a gente comia, mais a gente chorava.

"Medalha do Bruno também era um projeto meu"

Decidi começar a estudar para entender o que aconteceu comigo e ajudar outras pessoas a não passarem pelo que eu passei. Eu já tinha feito um curso intensivo de inglês e comecei a tirar as certificações para me tornar personal trainer e health coach. Eu só chorava porque, quanto mais eu estudava, mais eu percebia como eu fui escrava de dietas, de um padrão que não traz saúde nem felicidade.

Ao mesmo tempo, fui me reencontrando na natação. Com o Bruno sem treinador, passei a ir para a beira da piscina com ele —a gente estava no meio do Alabama, não tinha ninguém que pudesse assumir esse papel. Ele precisava de alguém que estivesse lá 24 horas por dia, sete dias por semana. E eu estava lá.

A gente se uniu para começar um projeto juntos, e foi isso que nos reergueu.

Não fazíamos ideia de como seria essa relação esposa e treinadora, marido e atleta. Tivemos que trabalhar para não ter conflito em casa, porque, no fim do treino, voltávamos no mesmo carro, para o mesmo lugar. Fomos aprendendo juntos.

Eu não queria ser treinadora, mas descobri habilidades que eu não sabia que tinha e que me fizeram amar a função. Com o tempo, percebi que estava lutando por um projeto meu, que a medalha do Bruno não era um objetivo profissional dele, era meu também, como treinadora.

Depois de cinco anos analisando de forma técnica cada movimento do meu marido na piscina, ali, no dia 31 de julho, final da Olimpíada de Tóquio, deixei a emoção falar mais alto. Quando ele bateu na borda da piscina em terceiro lugar, caí de joelhos e comecei a chorar. Medalha de bronze. Deu tudo certo.

Quando o Bruno subiu ao pódio, senti que tinha conquistado meu objetivo profissional, de transformar um atleta em campeão olímpico, mas também que tinha libertado meu marido dessa prisão mental em que ele vivia para conseguir uma medalha.

As pessoas ainda enxergam o atleta como super-herói, como aquele que não quebra, não desiste, enfrenta tudo e todos sem nenhuma adversidade. Até pouco tempo atrás, os próprios Jogos Olímpicos mostravam a pessoa se arrastando até a linha de chegada no final de uma maratona, por exemplo. Caindo, levantando e continuando.

O atleta tem uma imagem de imbatível, insuperável e, muitas vezes, quem está ali é um ser humano vulnerável."

Mulheres no esporte:

Ricardo Borges

Altos e baixos

Fora dos Jogos de Tóquio por doping, a judoca Rafaela Silva conta como Olimpíadas a fizeram entender o racismo

Ler mais
CBF

Rainha sem patrocínio

Por que Marta, maior do mundo, ainda precisa brigar por pagamentos justos no futebol?

Ler mais
Márcia Costa/UOL

Respeita a nossa onda!

Na cidade do campeão olímpico Italo Ferreira, elas buscam espaço no surfe e driblam machismo até no grito

Ler mais
Topo