ALTOS E BAIXOS

Fora dos Jogos de Tóquio por doping, a judoca Rafaela Silva conta como Olimpíadas a fizeram entender o racismo

Rafaela Silva em depoimento a Mariana Gonzalez De Universa Guadalupe Pardo/Reuters

Fui criada na Cidade de Deus, comunidade do Rio de Janeiro. Lembro que, quando eu era criança, sempre rolava tiro — por isso, às vezes, não dava para ir à escola. Meus pais não queriam ver a gente na rua, correndo risco. Por isso, levaram eu e minha irmã para treinar na Associação de Moradores, quando eu tinha uns 8 anos.

Quando comecei no judô, nunca tinha visto uma Olimpíada. Dentro da comunidade, a gente não tem acesso a nada. Assim que meu treinador falou para o meu pai que um dia ia me colocar na seleção brasileira, pensei: "Esse velho tá é doido!".

Eu não tinha dinheiro da passagem do ônibus para ir à escola, nunca imaginei competir nem fora do Rio de Janeiro. Que dirá ir para uma Olimpíada em Londres.

O judô transformou a minha vida e a vida da minha família. Consegui comprar minha casa, sair da comunidade, reformar a casa dos meus pais

Um dia, depois de alguns anos fora da Cidade de Deus, fui visitar meus tios. Eu tinha uma Captiva [SUV de luxo] e, quando entrei no beco para estacionar, vi uns meninos sentados na esquina, não deveriam ter mais de 12 anos. Um deles falou: "Caraca, quando eu crescer é um desse que vou querer roubar para mim". Ele não almejou comprar, ele pensou em roubar, porque é o único caminho que ele vê como possível. Fiquei em choque, porque percebi que poderia ter sido esse meu destino.

"Vítima de racismo tem que ter sangue de barata"

Entrei na Seleção Brasileira de Judô aos 17 anos, era a caçula. Tive que treinar o dobro, me dedicar o dobro, porque eu sabia que conseguir uma vaga nas Olimpíadas era uma missão muito difícil. Aos 20, desbanquei uma atleta mais experiente no ranking mundial. Foi muito gratificante.

Mas, chegando em Londres, fui desclassificada [em luta contra uma atleta da Hungria, a arbitragem decidiu pela desclassificação porque Rafaela atacou a perna da adversária, o que é ilegal].

Foi um choque muito grande. Quando vi, estava deitada no chão, chorando. Pensava: "Acabou? Já?". Não conseguia nem levantar do tatame, saí carregada pela técnica. Treinei a vida toda para aquele momento e, de repente, não tinha mais o que fazer. Era pegar a mala, voltar pro Brasil e esperar mais quatro anos.

Só queria o amparo da minha família e dos meus amigos. Quando peguei meu celular, vi um monte de mensagens no Twitter e no Facebook. Pensei: "Nossa, eu nem conheço tanta gente assim".

Eram mensagens de pessoas me xingando, dizendo que eu era uma vergonha para a minha família, que eu nunca seria melhor do que ninguém por ser preta. E pior: que lugar de macaco é na jaula, não na Olimpíada

Eu, que já estava no fundo do poço por ter sido desclassificada, comecei a responder. Não conseguia ver nada na minha frente. Mandei para aquele lugar. [Na ocasião, Rafaela respondeu no Twitter: "Vai se f***, filho da p***. Perdi, sim, sou humana como todos. Errei e sei que tenho capacidade de chegar e conquistar uma vaga para 2016. Você veio aqui? Não tem capacidade de conquistar uma vaga e representar seu país, babaca."].

Depois, o pessoal da seleção disse que eu não poderia fazer aquilo, que eu tinha que esfriar a cabeça. A vítima de racismo tem que ter sangue de barata para continuar tendo razão. Não pode responder.

Nem dentro da Vila Olímpica, não conseguia andar sozinha. Sempre tinha gente atrás de mim, querendo xingar. Para circular, eu precisava colocar o casaco na cabeça e passar correndo, como se tivesse feito alguma coisa errada

Eu estava ali para competir e, de repente, me vi dentro de uma confusão que nunca imaginei.

Na época, eu não tinha o entendimento que tenho hoje sobre racismo. Não entendia a gravidade de tudo aquilo, mas lembro de ter ficado chocada com as pessoas me chamando de macaca. Depois, me disseram que, se eu quisesse, poderia levar o caso adiante, denunciar na polícia. Mas eu estava tão para baixo que achei melhor não, queria enterrar o assunto. Hoje, faria diferente.

"Quando voltei ao Brasil, não queria mais saber de judô"

Depois que fui desclassificada, me disseram que eu ainda era muito nova, tinha só 20 anos, e que estaria nas próximas Olimpíadas. Mas eu não conseguia me apegar a nada disso. Judô é um esporte de alto rendimento, com muitas chances de lesão. São inúmeras coisas que podem acontecer em quatro anos.

Quando voltei ao Brasil, disse para o meu treinador e para a minha família que não queria mais saber de judô. Se fosse para dedicar a minha vida ao esporte e na hora H ver minha família sendo xingada, eu não queria mais. Foi uma decepção muito grande.

Passei meses nesse buraco, sem vontade de treinar, de fazer mais nada. Só ficava em casa, deitada no sofá. Quando assistia a alguma competição na TV, chorava

Meus pais faziam as comidas que eu gostava, para me animar, mas não adiantava. Meus amigos iam lá em casa me chamar para sair, mas eu pedia para minha mãe falar que eu não estava em casa. Até que um dia minha irmã me levou a uma palestra da Nell Salgado [coach esportiva].

Quando conversamos, ela me perguntou qual seria a sensação de ver uma Olimpíada acontecendo a cinco minutos da minha casa sem estar participando. Pela primeira vez os Jogos seriam na no Rio de Janeiro [em 2016] e eu não estava treinando para tentar uma vaga. Aquilo me deu um estalo e, aos poucos, voltei a treinar.

Em agosto de 2013, exatamente um ano depois das Olimpíadas de Londres, daquela confusão toda, fui a primeira brasileira a ganhar um campeonato mundial, no Maracanãzinho. Foi quando voltei a acreditar que eu poderia estar numa Olimpíada de novo.

"Ganhei o ouro e pensei: 'Não preciso me esconder'"

Em 2012, eu entrei como uma das favoritas ao pódio. Nas Olimpíadas do Rio, fui uma das últimas classificadas. Especialistas diziam que, se um dia fui esperança de medalha, agora eu era uma incógnita. Mas decidi ignorar todos os comentários e focar no meu treinamento, que não foi fácil.

Ainda pensava muito no que tinha acontecido comigo em 2012. Saía dos treinos chorando todos os dias, cansada, cheia de dor no corpo. Quando o despertador tocava, pensava: "Que desculpa vou dar hoje para não treinar?" ou "vou falar que estou passando mal".

O que me dava força para ir aos treinos era: se eu não fosse, minha adversária chegaria lá mais treinada que eu. Então, levantava e ia chorando mesmo

Quando eu venci, pulei para abraçar minha irmã na arquibancada, mas não tinha entendido que tinha conquistado o ouro nas Olimpíadas. No primeiro momento, fiquei com a sensação de dever cumprido e um alívio enorme, porque eu não ia passar por tudo aquilo de novo.

Saí do ginásio às 18h e só cheguei no meu quarto às 3h. Era entrevista coletiva, foto com o público, gente gritando meu nome. Foi aí que eu entendi a grandeza do que tinha feito no tatame. Era o primeiro ouro do Brasil nos Jogos do Rio. Pensei: "Dessa vez, não preciso me esconder".

Nessas entrevistas, me perguntaram o que eu diria para quem me xingou em 2012. E eu disse que a única resposta que eu poderia dar era a medalha de ouro pendurada no meu pescoço. Até hoje, a medalha é minha resposta para quem um dia falou que o judô não era para mim, que eu era a vergonha da minha família.

"Ter um rosto conhecido é um escudo contra o racismo"

Depois de ganhar o ouro, entendi que o racismo aconteceu minha vida inteira. Eu não percebia, mas ele estava lá.

Era a mulher colocando a bolsa pro outro lado no ponto de ônibus, gente atravessando a rua quando me via andando. No shopping, por exemplo, sempre tinha um segurança me seguindo. Desde pequena, só uso roupa que me deixa confortável: bermuda, camiseta e tênis — às vezes, no calor, saía de chinelo mesmo. Isso era motivo para as pessoas ficarem olhando, afinal, eu era uma mina preta de chinelo no shopping.

Não deixei de andar de chinelo no shopping e a medalha de ouro não me fez ficar branca e nem milionária. Mas o comportamento das pessoas comigo mudou completamente

Ter um rosto conhecido virou um escudo contra o racismo. Ninguém mais atravessava a rua para não trombar comigo, pelo contrário: as pessoas me tratavam bem, pediam para tirar foto. Pensei: "Nossa, agora que eu tenho uma medalha as pessoas não me enxergam mais como um ladrão?". Aí eu entendi o que era racismo.

Acho que eu tive sorte de não ter percebido tudo isso antes. Se o comentário racista de uma pessoa usando uma conta fake nas redes sociais quase destruiu minha carreira, o que não poderia ter feito quando eu era criança? Muita gente desiste dos sonhos por conta disso.

"No Rio de Janeiro, preto não pode ter moto"

Há dois anos, eu estava voltando de um evento em São Paulo, peguei um táxi no Aeroporto Santos Dumont [no Rio de Janeiro] para ir para minha casa. No caminho, um carro da polícia passou e um dos policiais ficou me encarando pela janela. Na hora, ligaram a sirene, jogaram a viatura na frente do táxi e, quando vi, estavam apontando o fuzil para a minha cara, mandando descer.

Ouvi um dos policiais perguntar ao motorista: 'Em que comunidade você pegou ele?'. Devem ter pensado que eu era um homem por conta das minhas roupas

Nessa hora, uma segunda viatura parou para dar cobertura e um dos policiais me reconheceu. Na hora, falou: "Libera, libera, libera", e foram embora. Minha cara serve de escudo. Se ele não tivesse me reconhecido, não sei o que poderia ter acontecido.

Desde criança, meu pai sempre ensinou: parou, seja bandido ou polícia, não responde. Levanta a mão e desce. A gente não tinha que ser criado dessa maneira, porque a polícia ta ali pra proteger, não para constranger a gente.

Esse episódio foi em 2018, mas acontece o tempo todo. Há um mês, eu estava dirigindo, com a minha esposa do lado [Rafaela e a também judoca Eleudis Valentim casaram-se em outubro de 2020], e vi um carro da polícia atrás de mim, com a sirene ligada, mandando parar o carro.

Um dos policiais estava com o braço para fora, apontando uma arma para a gente. Pensei: 'Não é possível, de novo?'

Como aqui no Rio tem muito trânsito e eu moro longe [do centro, em Freguesia de Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro], já me perguntaram porque eu não compro uma moto, mas eu respondo: "No Rio de Janeiro, preto não pode ter moto". Só prestar atenção: toda vez que uma blitz para uma moto, quem está em cima é uma pessoa negra.

"É difícil falar de doping: são dois pesos e duas medidas"

Para mim, foi muito difícil receber a sentença de dois anos afastada do judô [Rafaela foi punida depois de testar positivo para fenoterol, substância presente em remédios para asma e outras doenças respiratórias. Ela recorreu, mas a Corte Arbitral do Esporte, na Suíça, manteve a decisão].

Treino há 24 anos, todos os dias, às vezes mais de uma vez por dia. Do nada, recebi uma carta dizendo que eu estava proibida de competir. Isso aconteceu em agosto de 2019 — de lá para cá, parece que a minha vida parou.

Falar de doping é muito difícil, parece que são dois pesos e duas medidas. Fenoterol não é ilegal [a substância é um broncodilatador e não pode ser consumida por atletas, pois melhora a circulação de oxigênio no corpo favorecendo o rendimento nas dispustas esportivas] e a quantidade dela encontrada no meu sangue foi mínima, praticamente nada. O grupo que julgou meu caso, inclusive, afirmou que fenoterol, naquela quantidade, não seria capaz de melhorar minha performance.

Como eu pego a penalidade máxima, de dois anos afastada do judô, por ter uma substância legalizada e que não interfere no meu rendimento? Enquanto isso, a gente vê atleta pego com anabolizante recebendo uma punição mais leve, de seis meses ou um ano. É difícil entender

Eu estava muito bem nas competições antes de parar, mas não tem o que fazer. Estou fora das competições até agosto, por isso o Brasil não terá uma representante na minha categoria no judô em Tóquio [Rafaela é atleta da categoria 57kg].

Agora o que me resta, mais uma vez, é esperar mais quatro anos, até as próximas Olimpíadas.

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