Respeito não tem preço

Mulher abriu mão de indenização de R$ 20 mil pela chance de dar aula a seus agressores

Helaine Martins Especial para Universa Pryscilla K/UOL

Durante cinco meses de 2017, a professora de matemática transexual Natalha Silva, 36, de Brasília (DF), ouviu calada os xingamentos diários vindos de um grupo de funcionários de uma pastelaria, localizada na rodoviária da cidade. "Eu passava por lá todos os dias para pegar o ônibus na volta para casa, como qualquer outra pessoa. Bastava chegar e as ofensas começavam", conta. Até que, no dia 26 de agosto, Natalha resolveu dar um basta e foi tirar satisfação. "Perguntei porque todas as vezes que eu passava faziam piadas sobre mim. Um dos funcionários respondeu: 'eu jogo piadinha quantas vezes eu quiser, seu viado'." Dos minutos seguintes, a professora só lembra de já estar derrubada no chão, de costas, com os cabelos presos nas mãos dele.

"Caí depois de levar um soco no rosto e quando o homem puxou meu cabelo, não tive mais forças para me proteger dos vários chutes que recebi. Fiquei com o corpo todo roxo e inchado. Por meses meu peito ficou dolorido", lamenta. Em meio aos golpes, Natalha via os olhares das pessoas em sua volta que não entendiam o que estava acontecendo, mas também não a defendiam. "Foi uma humilhação muito grande. Ali, ao me deparar com aqueles olhares, que decidi não deixar a agressão que sofri impune. Jamais vou permitir que a minha dignidade fique no chão de uma rodoviária suja."

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Foi com a ajuda de um morador em situação de rua que ela conseguiu se levantar e pegar o ônibus de volta para casa. Passou dois dias sem conseguir dormir, se alimentar e trabalhar. "Um vazio tomou conta de mim, mas, depois de refletir, entendi que não havia motivo para me esconder. Não tinha feito nada contra ninguém", afirma.

Ela já havia sofrido tentativa de homicídio por transfobia duas vezes, então decidiu que precisava travar uma batalha para se defender. "Eu passei a vida desafiando a forma como a sociedade encara as pessoas transgênero. Preta, pobre, trans e favelada, sou parte de um grupo que sofre violência física e psicológica com frequência. Mas, desta vez, mesmo com medo, enfrentei a 5ª Delegacia de Polícia, registrei uma ocorrência e fui buscar a Justiça."

Natalha garante que não teve de lidar com qualquer preconceito ou resistência ao prestar queixa. Pelo contrário. "Fui tão bem tratada pelo delegado que me senti um ser humano de novo", assegura. E isso foi fundamental para lhe dar forças ao enfrentar um processo contra a pastelaria que durou um ano. Em uma das audiências, recebeu uma proposta que considerou debochada: uma indenização de R$ 20 mil reais por danos morais. "Eu estudei, trabalhei e me sustentei a vida inteira. Nenhum dinheiro no mundo pagaria as ofensas, as agressões, a humilhação que eu sofri. Eu resisti."

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No dia da audiência de conciliação, durante a tentativa de se chegar a um acordo entre as partes, fez questão de falar sobre os trabalhos que desenvolve na comunidade onde mora, a favela da Estrutural -- até o ano passado, vizinha do maior lixão da América Latina, hoje desativado. Foi quando teve uma ideia. "Eu disse à juíza: quero propor uma palestra, um trabalho pedagógico com esses agressores. E ali foi dado o veredito", conta. "Troquei a possibilidade de ganhar dinheiro pela possibilidade de transformar os agressores por meio do que é mais importante para mim: a educação."

No dia 24 de agosto de 2018, Natalha transformou o auditório do Fórum em um sala de aula para 40 alunos, todos funcionários da pastelaria. Em uma hora, falou sobre aspectos biológicos e comportamentais dos transgêneros; modelos sociais; atendimento ao público; direitos; violência aos desiguais; e a importância das denúncias contra atos discriminatórios. Apesar da ausência justamente do principal agressor, que havia sido demitido, ela garante que o sentimento era de missão cumprida. "Durante a minha fala e dos olhares e ouvidos atentos da turma, fiz eles refletirem sobre tudo o que me causaram e, aos poucos, percebi que a minha dignidade ainda estava aqui. Vi que nada e nem ninguém foi suficientemente capaz de tirá-la de mim. Nem mesmo a dor."

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A experiência inspirou Natalha a transformar em realidade o sonho antigo de fundar uma organização não-governamental (ONG). Assim nasceu, em maio deste ano, o Instituto IPI - Incluindo para Incluir, uma organização que pretende, além de acolher mulheres e homens trans, servir de espaço para se pensar ações de combate à transfobia. "Nossa missão é, a longo prazo, formar multiplicadores da desconstrução da violência. Depois que encontrei na educação o eixo mais incrível para romper com a violência que eu sofri, quero que todos aprendam que generosidade não se compra, dignidade não se vende e respeito não tem preço."

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