Quem vê bronze não vê corre

Larguei emprego em São Paulo e vivo na praia, mas preciso provar que estou trabalhando, não só curtindo a vida

Júlia Flores Colaboração para Universa, em Puerto Escondido (México)

Talvez você já tenha lido algum texto meu no UOL. Até ano passado, eu era repórter de Universa e hoje só apareço por aqui de vez em quando. Em 2022, passado o pior da pandemia, depois de quase 2 anos trabalhando de casa, tomei a decisão de abandonar meu emprego CLT em um escritório no centro de São Paulo para atuar de maneira totalmente remota.

Não fui a única. Insatisfeitas e esgotadas, milhões de pessoas pediram demissão em 2022 (no Brasil, foram quase 7 milhões), na tentativa de achar o equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

Eu me encontrei no home office e, por mais brega e instagramável que o título pareça, hoje, aos 26 anos, sou nômade digital. Sigo trabalhando com produção de conteúdo para revistas, websites e portais de notícias, mas agora de qualquer lugar do mundo — seja uma praia na América do Norte ou a casa dos meus pais, no interior de Mato Grosso do Sul.

Desde que larguei meu emprego como repórter de uma plataforma de conteúdo para mulher — não foi uma decisão fácil, como qualquer garota que cresceu assistindo "Sex And The City" possa imaginar — já morei em cidades diferentes do Nordeste brasileiro e, agora, estou passando um tempo fora do país. Mas minha vida não é perfeita. Há realidades do nomadismo digital que as redes sociais não mostram.

Todo lugar serve para trabalhar: em Barra de La Cruz (México), Jericoacoara (CE) e Itacaré (BA)

Todo lugar serve para trabalhar: em Barra de La Cruz (México), Jericoacoara (CE) e Itacaré (BA)

Mudar de trabalho e de vida

Ainda que o termo "nomadismo digital" tenha se popularizado no período pandêmico, este não é um modelo novo de trabalho. Conheço inúmeros profissionais que adotaram esse estilo de vida antes mesmo da covid-19 nos trancar dentro de casa. Nunca imaginei que pudesse vir a ser o meu caso.

Como a maioria das pessoas, fui educada para seguir modelos de carreira tradicional. Trabalhar, ganhar dinheiro e avançar na carreira eram medidas de sucesso para mim. Cresci pressionada a trabalhar duro e, apesar de ser uma pessoa socialmente privilegiada (classe média, branca), rever ou questionar a maneira como trabalhava não me parecia uma opção viável.

Me mudei para São Paulo para fazer faculdade aos 16. Desde então, vivo longe da minha família. Cresci no interior e o processo de adaptação em uma grande metrópole nunca foi fácil. Adicione a isso outros fatores — aumento crescente da criminalidade, altos preços das cidades grandes, pressão do mundo corporativo e ressaca emocional causada por uma pandemia — e você terá a receita certa para o esgotamento.

Somos a geração do burnout (sensação de fadiga mental causada por estresse crônico provocado por excesso de trabalho ou depois de algum episódio traumático). Os números reforçam a tese: uma pesquisa da empresa de recrutamento Zippia mostrou que cerca de 77% das pessoas já experimentaram uma sensação de burnout na vida. Pudera: o custo de vida está alto como nunca; a internet não nos deixa desligar dos chefes e dos problemas mundiais; as tensões políticas seguem avançando; e a crise climática bate à porta.

Desse modo, questionamos a maneira como conduzimos a vida e, claro, o trabalho. Diferentes pesquisas conduzidas no Brasil e nos Estados Unidos revelam que cerca de 70% dos trabalhadores gostariam de mudar de emprego antes do fim do ano.

Com a prancha de surfe em Itacaré, curtindo o calor de Pipa e me protegendo do sol em Jeri

Com a prancha de surfe em Itacaré, curtindo o calor de Pipa e me protegendo do sol em Jeri

Jeri, Pipa, Itacaré: meus lares

Até 2021, toda a minha trajetória profissional havia sido percorrida em São Paulo. Nas férias daquele ano, porém, decidi passar um tempo em Jericoacoara. Aluguei um chalé em uma cabana na praia cearense para o período de um mês. Por sorte, tinha levado meu computador. A internet era boa e acabei ficando.

Quando vi, já estava havia 8 meses morando em uma vila de pescadores. Quando a empresa nos pediu para retornar ao escritório, em 2022, não aguentei mais do que 3 meses e pedi demissão.

Como nômade, já morei e trabalhei em diferentes cidades do Nordeste: além de Jeri (CE), Pipa (RN) e Itacaré (BA). Com o tempo, descobri que não precisava de grande infraestrutura para trabalhar bem. Se a sua profissão puder ser exercida pela internet, o importante é ter wi-fi de qualidade, um ambiente silencioso para fazer reuniões e estabelecer uma rotina que se adeque às suas demandas.

Conhecer gente a cada novo destino é bom. Mas, às vezes, bate uma saudade dos amigos antigos

Conhecer gente a cada novo destino é bom. Mas, às vezes, bate uma saudade dos amigos antigos

É trabalho. E às vezes é bem chato

Com o tempo, aceitei que nem tudo é alegria na vida do home officer. A depender do destino que escolher, você vai enfrentar diferentes adversidades (algumas bem perigosas) para poder entregar o trabalho no prazo: pegar carona com estranhos, atravessar um deserto, parar na casa de desconhecidos de madrugada. Uma vantagem é perder a vergonha de chegar aos lugares pedindo a senha do WI-FI.

Na minha visão, os problemas estruturais são contornáveis. Há desafios maiores na rotina de quem adota esse estilo de vida. Geralmente, para compor uma renda suficiente para pagar as contas, trabalha-se mais. Isso, claro, quando há mais ofertas de trabalho. Por isso, é preciso saber lidar com a instabilidade financeira e aprender a gerir as finanças com cuidado, já que, na vida de autônomo, a renda é variável.

Também se trabalha para vários chefes, o que leva à necessidade de um gerenciamento impecável das agendas — há dias em que tenho reuniões a cada 15 minutos.

Um problema a ser administrado envolve a sua imagem pública — parte da minha família, amigos e colegas de profissão acham que vivo de férias. Alguns chefes vão associar sua vida profissional ao que você compartilha nas redes sociais — e, eventualmente, achar que, por postar fotos curtindo um pôr do sol, tem tempo de sobra para se matar por um serviço.

Para não cair na armadilha da desconfiança, é preciso impor limites. Nem sempre consegui. Já aceitei pagamentos que não condizem com a minha entrega, topei trabalhar fora do horário negociado e, na tentativa de provar para os chefes que não estava de pernas para o ar, cumpri jornadas assustadoras de trampo, acumulando serviços e me submetendo a críticas ofensivas. No mundo do home office também tem gente assediadora.

A verdade é que são poucos os gestores que entendem essa realidade. Conversando com a consultora Maíra Blasi, ouvi o seguinte comentário sobre os pedidos de retorno ao escritório: "Vimos que o trabalho remoto funcionou, inclusive com benefícios, mas parece que o retrocesso está ligado à falta de referenciais dos líderes. Se não ouvimos as demandas das mulheres, negros e indígenas, como vamos ter outras visões de mundo e mudar os modelos de trabalho?".

Entendi que, enquanto o mercado for dominado por homens (que não entendem os benefícios do home office para as mães, por exemplo), em sua maioria brancos e ricos (que podem morar perto do trabalho, não precisam perder horas no transporte e muito menos mudar de cidade), o modelo de trabalho seguirá o mesmo.

Dois momentos no México: de partida para a praia em Puerto Escondido e curtindo o mar em La Saladita

Dois momentos no México: de partida para a praia em Puerto Escondido e curtindo o mar em La Saladita

O surfe me tornou mais eficiente

Foi na minha vida pessoal que o nomadismo provocou as maiores revoluções. Como não preciso me deslocar para o trabalho, passei a ter mais tempo livre para atividades que me dão prazer e realização. Em Jeri, comecei a surfar — e essa onda alterou todos os rumos da minha trajetória.

Depois do longboard (meu tipo de surfe), veio o kitesurfe. Mais recentemente, conheci o surfe skate. O esporte melhorou minha saúde mental e produtividade no trabalho. Foi por causa do surfe, inclusive, que em 2023 decidi passar uma temporada fora do Brasil.

Hoje, moro em uma casa em frente à praia de Zicatela, em Puerto Escondido, no México. Jamais imaginaria que trabalharia no exterior e, graças ao nomadismo, agora tenho essa oportunidade. Além de aperfeiçoar uma nova língua, também estou conhecendo outra cultura — tomando os devidos cuidados com a dinâmica local e com a gentrificação, é claro.

Com a prancha de surfe em Itacaré; e dois cliques em Jeri. A vida é boa, mas não é perfeita

Com a prancha de surfe em Itacaré; e dois cliques em Jeri. A vida é boa, mas não é perfeita

Na firma amanhã, quem sabe?

É preciso saber que, para levar esse estilo de vida, pulando de cidade em cidade, você também enfrentará desconfortos emocionais. Conhecer gente nova o tempo todo, a longo prazo, é exaustivo, e a saudade dos "amigos de sempre" aparecerá com frequência.

Ao mesmo tempo, perceberá que redes de apoio são importantes; e encontrar pessoas que seguem seu estilo de vida faz toda diferença. No México, por exemplo, vivo em uma casa coletiva com outros nômades, o que facilita a minha rotina.

Não existe receita para te levar ao nomadismo. No meu caso, escutei minhas vontades, silenciei os barulhos externos, tomei uma dose de coragem e segui. Talvez esse estilo não combine com você — se conhecer é importante para não romantizar a vida alheia.

No momento, este é o modelo de trabalho que mais combina com meus desejos profissionais e pessoais, mas pode ser que amanhã seja diferente. Talvez eu acorde e queira voltar à carteira assinada, aos horários fixos, aos almoços com os colegas da firma. Ter a liberdade de fazer essa escolha, para mim, é revolucionário, e não tem benefício do mundo corporativo que pague. Pelo menos, por enquanto.

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