Nenhum lugar é totalmente seguro para um corpo que foge da normatividade, porém a artista visual Niázia Ferreira se identifica com os indicativos trazidos pelo levantamento. Para ela, a favela é o espaço que a possibilita ser quem é sem julgamentos, e isso acontece por conta de outras similaridades que conectam os favelados.
Foi no Morro da Otto, na cidade metropolitana de Niterói, o lugar em que ela se assumiu sapatão aos 16 anos. A saída do armário veio após deixar a casa onde morava com a família, em um doloroso processo de cinco anos sem comunicação com a mãe.
Segundo Niázia, enquanto na favela as semelhanças facilitam a aproximação, no asfalto raça, gênero e orientação sexual são fatores que se acumulam num 'combo' de discriminação. Uma pesquisa realizada junto a 10 mil empregadores do Brasil pela empresa de recrutamento Elancers revelou que cerca de 20% das empresas não contratam gays, lésbicas, travestis e transexuais devido à sua orientação sexual e identidade de gênero.
Outros 7% não contratariam homossexuais em nenhuma hipótese, e 11% poderiam contratar desde que não fosse para ocupar cargos de níveis superiores.
"No asfalto eu não tenho emprego. Tomo 'dura' da polícia porque me leem como alguém que parece um menino. Na favela, o respeito vai se dar na convivência, no afeto que é compartilhado pelas crianças da vizinhança, pela dor da perda de um jovem assassinado, como meus amigos Brian e Demétrio.
É o que afirma o conceito de dororidade ["dor + sororidade"], essa vivência nos une e nos estimula a hackear esse local de dor para um espaço de produção", avalia Niázia.
A reflexão sobre dororidade - que questiona a sororidade defendida pelo feminismo - é de autoria da ativista Vilma Piedade. No livro "Dororidade" (Editora Nós, 2017), a intelectual reflete sobre o quanto o racismo provoca dor e como essa dor se transforma em potência e solidariedade entre as mulheres negras.
Seja por trás ou na frente das câmeras, Niázia encontrou na arte a estratégia para criar novas narrativas sobre as mulheres lésbicas de favela. "Existe essa concepção da sapatão como a durona, a bruta, a supernegona, e não é assim. A sensibilidade nos é roubada, e já me tiraram muito", pontua.
Em 2019, a jovem de 27 anos co-protagonizou o filme "Minha História é Outra", da Agoya Produções, que aborda diferentes formas de amor vivenciadas por mulheres pretas lésbicas e faveladas. Na obra, Niázia apresenta seu cotidiano de cuidado com o corpo, por meio dos banhos de ervas, uma prática adotada a princípio como alternativa médica após traumatizantes atendimentos na saúde pública, mas que depois se revelaram um resgate da memória ancestral de sua família.
"Desde pré-adolescente eu já apresentava candidíase, infecção urinária, esses problemas que associam a uma vida sexual ativa, daí vinha um julgamento e, em muitas vezes, repulsa por parte de médicos. Me deu a entender que a medicina não é pensada para um corpo como o meu. Quem me ajudou foi minha mãe-de-santo, quando eu já tinha uns 19 anos, com receitas de banhos com folhas e ervas. Ao me ver fazer isso, minha mãe começou a lembrar que minha avó também recorria a esses métodos. A partir daí, nunca mais tive infecção", conta.