Mulherzinha, eu?

Elas rompem tabus e disputam pódio com homens na maior corrida offroad das Américas

Júlia Flores De Universa Haroldo Nogueira

Roncos de motores a mais de 100 km por hora rompem o silêncio no sertão nordestino. São caminhonetes, quadriciclos, motos e UTVs (mistura de carro com quadriciclo) que disputam a maior prova offroad das Américas. A 29ª edição do Rally dos Sertões termina hoje, depois de cruzar sete estados do Nordeste, em nove dias.

Neste ano, a participação de mulheres bateu recorde: 14 pilotas e co-pilotas disputam o pódio, sozinhas ou em equipes mistas. Ao todo, são 340 competidores e 3.165 quilômetros de extensão.

"Queremos desmistificar que isso aqui é só para homem", diz a vice-presidente de operações do evento, Leonora Guedes.

Considerada a mais difícil da modalidade, a prova passa por estradas de chão e circuitos perigosos, nos quais é preciso lidar com situações adversas do ambiente e eventuais problemas nos veículos. A cada dia, eles recebem um mapa surpresa com o percurso que devem percorrer. Apesar de estarem cientes dos destinos e das paradas oficiais, os pilotos e navegadores não sabem qual o trecho exato a ser feito, o trajeto só é revelado pouco antes do início da prova.

"Se um pneu fura no meio do deserto, somos nós que precisamos arrumar. Teve uma vez que meu carro pegou fogo durante a prova. Imagina o susto?", lembra Helena Deyama, de 61 anos, uma das pilotas que estão na disputa. Além dos perrengues inerentes à corrida, as participantes passam pelo constante questionamento de colegas que não aceitam "perder para mulher". Mas Helena, Moara, Camila e Carol tampouco aceitam o oposto, nenhuma quer ser derrotada por um homem. Para Universa, elas contam suas histórias.

Rodolfo Bazetto Rodolfo Bazetto
Rodolfo Bazetto

"Na pista com a faca nos dentes"

A pilota Moara Sacilotti participa do Rally dos Sertões desde 1998, quando fez 18 anos. Para ela, a emoção é a mesma. Todo dia de competição, ela repete um ritual: "Coloco uma música do Metallica e me concentro. Gosto de chegar na pista com a faca nos dentes e adrenalina lá em cima".

Antes de subir na moto, ela veste o meião, a joelheira, a bota, a calça, o colete, a jaqueta, a mochila de hidratação, o capacete e a luva. Nada de maquiagem ou outro acessório. Os anos de experiência a fizeram subtrair o tempo gasto com o uniforme, que soma 12 kg de peso ao seu corpo — Moara leva cerca de 7 minutos para ficar pronta, o que a permite ouvir "Enter Sandman" e um trecho de "Nothing Else Matters" enquanto se prepara.

Por causa do desgaste físico, um piloto gasta cerca de 7.000 calorias, o que exige um preparo dos competidores. Moara riscou o álcool, o açúcar e qualquer outro alimento inflamatório de sua dieta. Por questões físicas, ela disputa a prova na categoria Moto Over 45, para homens acima de 45 anos ou mulheres de qualquer idade.

No geral, três mulheres (contra 63 homens) integram o grid de motocicleta da disputa. Quem corre de moto, corre sozinho e precisa estar de olho na planilha, no cronômetro, no GPS e ainda olhar para frente; tudo isso a mais de 100 km por hora. Para Moara, a maior dificuldade é na hora de fazer uma ultrapassagem. "Os outros motoristas não me dão passagem porque eu sou mulher. Quando eles veem que sou eu, dificultam o caminho", conta.

Esses dias estava falando com meu mecânico: 'Algum dia, queria ser homem, para eu fazer a prova e ninguém ficar me vigiando'. No final do dia, antes mesmo de eu saber meu resultado, todos já sabem em que lugar fiquei

A pilota, porém, se recusa a levar o clima tenso para fora das pistas. "Quando a gente tira o capacete, todo mundo é amigo. Eles não querem perder para mim, nem eu quero perder para eles", fala, entre risadas, tirando uma mexa do cabelo loiro bagunçado pelo vento de Pipa, litoral do Rio Grande do Norte, onde a prova começou.

Apesar da cobrança desproporcional, ela diz não sofrer assédio de outros participantes. Moara sempre competiu ao lado do pai, seu Gilberto, e agora o marido Rodolfo também integra sua equipe de apoio.

Mesmo com ótimos resultados, 21 Sertões, quatro vezes campeã nacional de rally entre os homens e vice-campeã mundial de rally feminino, ela revela enfrentar dificuldades para fechar patrocínio. Hoje a pilota recebe ajuda profissional de uma marca de lubrificantes e de uma empresa de pneu, mas ainda precisa pagar do bolso parte dos gastos.

Ela traz no corpo, além das tatuagens com símbolos do rally, marcas de acidentes. Na sua primeira prova, chegou a percorrer dois dias de competição com a escapula quebrada; também já fraturou o assoalho pélvico em um acidente que "quebrou a moto e o meu corpo ao meio, em plena Amazônia".

Apesar dos perigos, ela continuou. "É mais do que uma prova, é mostrar que as mulheres podem pilotar a própria vida, assumir o controle." Pelo sertão, ela vai espalhando sua mensagem. "Quero que esse recado chegue àquelas que nunca foram no ginecologista porque o marido não deixa", comenta, emocionada.

Nessa hora o pai de Moara revela uma informação interessante: ao longo dos percursos, a filha deixa não só um legado, como também o nome. "Sabia que tem várias crianças com o nome de Moara espalhadas pelo Nordeste? Todas em homenagem a ela." Ela concorda com a cabeça. Mulherzinha, a Moara?

Se eu fosse homem, seria apenas mais um corredor. Sempre existiu uma cobrança maior em cima de mim pelo fato de ser do sexo feminino, mas isso foi bom para melhorar meu desempenho. Uma vez, antes de começar a prova, um repórter me perguntou: 'O que uma mulherzinha está fazendo aqui?' Respondi na lata: 'Mulherzinha é o car*lho', e saí acelerando

Haroldo Nogueira Haroldo Nogueira
Haroldo Nogueira

Do berço para o UTV

Esta é a primeira edição em que as irmãs Carolina, de 34 anos, e Camila Hanisch, de 31, disputam o Rally dos Sertões. Elas competem juntas desde o começo do ano e, antes de chegar aqui, já participaram de duas provas offroad. "Desde cedo tivemos contato com o automobilismo, é de família. Quando crianças, vivíamos brincando de kart. Meu marido está aqui competindo também, foi ele quem disponibilizou o UTV para que pudéssemos participar da prova", revela Carol.

Foi o desempenho no kart, inclusive, que determinou quem assumiria o controle dos volantes e quem navegaria. "A Carol sempre vencia de mim", brinca Camila, que é quem cuida das planilhas e determina os caminhos do veículo, um "buggy" turbinado, mistura de quadriciclo com carro, feito para corridas de estrada.

Ainda sem patrocínio, as duas agricultoras bancaram do próprio bolso a participação no evento — fora o preço do carro, que custa cerca de R$ 170 mil. Segundo Carol, a manutenção da equipe de mecânicos ficou em torno de R$ 30 mil, cifra que garante um recorte não só de gênero, mas também social, ao Sertões.

A gente sente um certo desconforto em estar num ambiente tão masculino; recebemos olhares curiosos quando estamos caminhando entre estandes, mas isso não nos incomoda, pois estamos juntas — Camila

Destoando do cenário predominante masculino, dá para ver de longe que as duas são irmãs; não só pela semelhança física, mas também pela cumplicidade da dupla —intimidade de berço que, segundo Carol, às vezes atrapalha. "A Camila adora falar e eu sou mais quieta. Às vezes, saio da pista e ela já chama minha atenção. Respondo: 'Aí, tá bom, já entendi'. É muita tensão, sempre saí um 'cala a boca' nos momentos críticos."

Carol relembra um fato do último Rally do Jalapão que mostra a "sincronia" das duas: "Na corrida do Jalapão, nós duas estávamos menstruadas ao mesmo tempo. Foi terrível". Fazer xixi, aliás, é um desafio para as mulheres que participam da prova, por causa do uniforme. Para evitar problemas e desperdícios de tempo, no Sertões as irmãs optaram por fraldas."Deixar de frescura" é um dos requisitos básicos para participar da corrida, como reforçam as Hanisch. Ainda assim, Camila ressalta que a dupla "não deixa de se cuidar". De unhas pintadas, durante a entrevista, elas carregam nas mãos o mapa com informações da prova.

"Caso você passe pelo estande da nossa equipe, não vê ninguém treinando. Porém eu e a Camila estamos sempre lá, analisando o trajeto, estudando as informações. É a inteligência e a calma feminina que vão nos fazer chegar mais longe", pontua a primogênita. "Sabemos da dificuldade da prova. Se a gente chegar ao final, já estamos no lucro".

Até o último sábado (21), Carol e Camila já tinham capotado o UTV duas vezes. Ambas passam bem e não tiveram ferimentos sérios. Na conta do Instagram Rally com Elas, os seguidores podem acompanhar as aventuras das irmãs Hanisch; inclusive cenas de bastidores em que, rindo, as duas falam sobre os acidentes.

Haroldo Nogueira Haroldo Nogueira
Haroldo Nogueira

"Minha vida é andar por esse país"

Helena chorou no dia em que seu carro pegou fogo, mas não foi de medo. "Achei que era hora de parar de correr. Era o Rally dos Sertões de 2009, faltavam apenas três dias para eu completar a prova, quando um incêndio destruiu meu veículo. Enfrentei aquilo como um sinal", relembra.

Só que aquela não era a linha de chegada de Helena. Os outros competidores fizeram rifa e até um príncipe Nasser Sali, piloto e príncipe de Qatar, doou dinheiro para que a pilota continuasse correndo. "Estou no offroad há 26 anos, comecei aos 35. Esse sempre foi o meu sonho", afirma.

Este é o 17º Sertões que Helena participa. Ela sabe que quebrou barreiras: "Todo mundo ficou chocado quando, em 1995, logo na minha primeira competição, ganhei a prova. Ninguém acreditava que uma mulher tinha feito aquilo. Em 1999 consegui meu primeiro patrocínio e comecei a correr como profissional; de lá para cá, não parei mais".

Apesar de ter conseguido auxílio de patrocinadores logo no começo da carreira, ela diz que não é fácil se manter no meio, mesmo sendo a 1ª campeã brasileira de rally cross country e bicampeã no brasileiro Rally Baja. "Sofro para ter ajuda profissional até hoje."

Todo mundo acha que pelo fato de eu ser mulher é mais fácil de conseguir patrocínio, mas não é. Já tentei apoio de marcas de beleza, de eletrodomésticos, que priorizam o setor feminino, mas nunca consegui nada dessas empresas

Nesta edição dos Sertões, Helena contou com a ajuda da navegadora Cristina Starling, de 36 anos. "Para competição é melhor ter um homem como co-piloto, porque precisa trocar pneu, etc., mas eu priorizei uma companheira mulher pela cumplicidade. Cuidamos uma da outra, nos preocupamos com uniforme, em manter as coisas em ordem", conta a pilota.

Os veículos são as grandes paixões de Helena que, antes de virar profissional do automobilismo, era designer gráfica. A paulistana dá nome para cada um de seus automóveis. O atual? Monstrinho. Entre lágrimas, ela lembra emocionada da primeira moto, a Janis: "Dei esse nome por causa do ronquinho dela, lembrava a Janis Joplin".

Homens e parceiros costumam não entender o amor de Helena pelo esporte. "Eles ficam com ciúmes", ri e acrescenta mais detalhes da vida pessoal: "Manter um carro é o preço de ter um filho e prefiro investir esse dinheiro aqui". O sonho dela é ver mais mulheres entre os estandes da competição, predominantemente formado por figuras masculinas, brancas e heterossexuais, quase como um faroeste texano.

Entre risadas e sem vergonha das lágrimas, a competidora finaliza a entrevista dizendo que, independente do caminho, o que ela busca é a liberdade — máxima que combina com o tema musical desta edição do Rally, a canção "Vida de Viajante", de Luiz Gonzaga: "Minha vida é andar por esse país, pra ver se um dia descanso feliz".

Andando pelos Sertões, a pilota de 61 anos e outras "mulherzinhas" rompem tabus. No ano passado, ao lado de Moara e algumas colegas competidoras, Helena ajudou a criar a equipe MUSA - Mulheres Unidas Sertão a Dentro. O objetivo? Levar mais diversidade ao pódio, independente da ordem de chegada.

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