Abandono precoce

A baixa confiança com o próprio corpo é o motivo principal que leva meninas entre 11 e 17 anos a largarem a prática de esportes. Quase metade (45%) das garotas nessa faixa etária abandonam atividades físicas. E o momento mais crítico é o da primeira menstruação. Esses dados fazem parte de uma nova pesquisa global realizada por Dove e Nike em sete países, inclusive o Brasil.

Quando as meninas atingem a adolescência, elas experimentam mudanças significativas em seus corpos e o ambiente esportivo pode ser tóxico, pois, de maneira generalizada, fala-se muito sobre aparência e pouco sobre habilidades. Ao se movimentar e praticar esportes, essas garotas se sentem expostas e vulneráveis não só ao julgamento a respeito do que os corpos delas podem ou não fazer, mas também a respeito de como são.

Nos esportes, as garotas muitas vezes enfrentam enorme pressão, não apenas em relação ao desempenho e às habilidades, mas também por causa de expectativas irrealistas em relação à sua aparência"

Venus Williams, Tenista

Sobre a pesquisa

Desenvolvido nos últimos dois anos em conjunto pelas marcas Dove e Nike, com o Center for Appearance Research (CAR) e o Tucker Center for Research on Girls & Women in Sport, o estudo traz novas descobertas a respeito de como o ambiente esportivo afeta a confiança sobre o próprio corpo.

Foram ouvidas 4.917 crianças (cerca de 70% delas garotas e 30% garotos) de diferentes idades (de 9 a 17 anos), etnias e origens socioeconômicas do Brasil, Canadá, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e EUA.

'Larguei o vôlei com 14 anos'

Marina Lerbach, 36 anos, estilista e empresária, de Belo Horizonte (MG)

Cresci no esporte, com pais que me incentivavam a fazer o que quisesse. Fiz ginástica olímpica, nadei, fiz dança flamenca, balé e vôlei. Sempre fui uma menina grande, gorda, alta, muito forte, desengonçada, e gostava de bike, de jogar futebol, de brincar na lama, de andar descalça, tocar bateria... Uma criança fora dos padrões.

Na pré-adolescência, as coisas mudaram muito. Eu queria pertencer e comecei a tentar me encaixar. Sempre tive muitos amigos, mas não me sentia confortável, achava que era feia e que deveria ter comportamentos mais femininos.

Quando fiquei menstruada, com 11 anos, a sensação foi terrível. Sempre que estava menstruada parecia que a vida parava, eu andava toda torta, achando que aquilo ia vazar. Obviamente, se eu não conseguia andar, imagina praticar esportes?

Larguei o vôlei com 14 anos. Minha melhor amiga era nadadora e me lembro de muita gente comentar como ela tinha costas largas e olhos fundos por causa dos óculos. Isso só me fazia querer ser mais magra, por isso eu fazia muita atividade aeróbica e regimes loucos para emagrecer. Mas sou corpulenta, larga, e nunca consegui ser magra padrão. Chorei por causa de estrias, fiz tratamentos, regimes e, por fim, uma lipoaspiração e uma mamoplastia para diminuir e levantar os seios.

Demorei muito tempo a começar a entender como nossos ciclos podem afetar treinos e provas e como podemos usar isso a nosso favor"

Até hoje ainda é um aprendizado. Recentemente, após o termino de um casamento cheio de mudanças difíceis, quis voltar a nadar. Meu objetivo era fazer provas no mar e comecei a treinar com uma amiga.

Para minha surpresa, muitas mulheres começaram a procurar, interessadas em nadar em águas abertas. Virei então uma grande incentivadora: criamos a Equipe VNF (Vai Na Fé, porque mães, mulheres, treinam na fé, do jeito que dá) e eu passei a nadar cada dia mais forte para mostrar para essas mulheres como elas podem encontrar sua coragem.

Nesse percurso, conseguimos falar sobre nossos medos, insegurança, corpos. Muitas vezes, vejo algumas sofrendo por causa de ciclo menstrual, enxaquecas, filhos. Mas, definitivamente, a caminhada em conjunto é muito mais gostosa.

A importância dos treinadores

Entre os dados apontados pela pesquisa, está a relevância dos treinadores, que exercem papel inspirador fundamental para criar um ambiente positivo para as meninas no esporte.

Para 74% das garotas, o seu treinador foi a razão pela qual se sentiram mais confiantes. Porém, ao mesmo tempo, 71% disseram que já se sentiram desencorajadas a praticar esportes por seus treinadores. Eles são a principal referência para as garotas fora de casa.

Ouvir seus treinadores falarem sobre confiança corporal seria importante para 60% das garotas.

Só o fato de o treinador falar que vai falar sobre isso, a transformação começa, pois o olhar muda. E esse processo continua depois do exercício"
Leandro Barreto, VP Global de Dove

Quando a garota é treinada por outra mulher, a abordagem sobre o corpo costuma ser diferente: as treinadoras mulheres tendem a focar na performance em vez de na aparência, e há aspectos que não são compreendidos ou endereçados pelos treinadores homens.

"Ao mudar a conversa da aparência dos seus corpos para o que podem fazer — para que mais meninas possam permanecer no esporte e experimentar seus benefícios —, acreditamos que estamos criando a próxima geração de mulheres líderes e agentes de mudança, que farão o mundo avançar", diz Vanessa Garcia-Brito, vice-presidente, diretora de Impacto Social e Comunitário da Nike.

Treinadores e atletas têm a responsabilidade coletiva de criar espaços inclusivos e experiências positivas que proporcionem a todas as garotas a oportunidade de descobrir o poder do esporte. O esporte alimenta a confiança, o que, por sua vez, permite às garotas desfrutar de uma vida inteira de movimento e de práticas esportivas que adoram"

Laurie Hernandez, Ginasta

'Entendi que não deveria provar nada para ninguém'

Tainá Hinckel, 20 anos, surfista, de Guarda do Embaú (SC)

Surfo desde os 2 anos de idade e aos 6 comecei a competir para valer. Foi um caminho natural pois na minha família todo mundo surfa. Moro na Guarda do Embaú (SC), um lugar conectado com a natureza, com boas ondas.

Aos 7 anos, já estava em competições com os garotos e ia bem, tinha bons resultados. Nessa época não havia competições para meninas. Aos 12 anos, foi a primeira vez que comecei a competir com atletas do sexo feminino e, nessa entrada da adolescência, tive bons resultados.

Aos 15 anos, porém, tive uma lesão na coluna e tive que operar uma hérnia. Fiquei um ano e meio sem surfar — período que coincidiu com a pandemia e não havia muitas competições acontecendo.

Depois disso, voltei aos poucos e tive resultados ruins: foi muito difícil, fiquei muito para baixo e comecei a pensar de abandonar as competições"

Foi com o apoio da minha coach mental, Milena Mendes, da minha fisioterapeuta, Cristiane Krentz, e de minha mãe, Janete Hinckel, além de toda a minha família, que percebi que não deveria parar.

Entendi que não deveria provar nada para ninguém: comecei a me dedicar como eu queria, pela minha vontade de vencer.

Parei de criar expectativa sobre o que queria ser no futuro e, depois desse tempo, entendi que deveria fazer o que estava a fim. Me senti mais segura e feliz no esporte novamente.

Programa de treinamento

O programa de treinamento Confiança Corporal no Esporte (Body Confident Sport) traz um conjunto inédito de ferramentas — cientificamente comprovadas em estudos clínicos com mais de 1.200 meninas — para diminuir a auto-objetificação e aumentar a confiança de meninas sobre o próprio corpo em todo o mundo.

Feito em parceria entre Dove e Nike, o programa foi lançado em um evento em Nova York, no dia 24 de outubro e foca em trazer conteúdos relevantes que capacitam treinadores a disseminar mensagens positivas sobre a autoestima, de forma que as garotas tenham uma vida inteira de confiança em si mesmas. O objetivo é atingir 1 milhão de garotas em todo o mundo em 2024.

No Brasil, por meio de uma instituição, o programa entra em vigor em janeiro, em escolas, comunidades e clubes de oito estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Paraná, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará. Mas qualquer pessoa pode atuar como multiplicadora: professores de educação física, por exemplo, podem entrar no site, baixar os conteúdos (disponíveis em português) e colocar a metodologia em ação.

Esta é a primeira incursão de Dove em esportes. "Com a iniciativa, buscamos ressignificar positivamente a relação de meninas com seus corpos, reforçando o nosso propósito de fazer com que a beleza seja uma fonte de confiança, e não de aprisionamento e ansiedade", explica Andreza Graner, diretora de Dove no Brasil.

'O machismo cruzou meu caminho'

Juliana Grogorini Montez, 42 anos, empresária, de São Paulo (SP)

Quando era criança, fazia ginástica olímpica e cheguei a fazer um pré-olímpico da modalidade, mas não tinha incentivo. A escola valorizava esportes coletivos, o que nunca foi minha praia, e minha mãe trabalhava e não poderia acompanhar. Parei de praticar com cerca de 11 anos.

Já adulta, tive câncer na tireoide aos 35 anos e ressignifiquei a atividade física na minha vida — foi como uma chamada de algo que havia ficado adormecido. Comecei a nadar.

Depois dos 40, decidi que queria correr também. Comecei a treinar com uma assessoria e quando estava correndo 35 km por semana.

Achei que era o momento de me inscrever em uma meia maratona, sem pensar que o machismo cruzaria esse caminho"

Meu marido, que treinava comigo, comentou com o treinador e ele ficou possuído. Disse que eu não poderia me inscrever sem avisá-lo antes e apagou toda a minha planilha de treinos do computador. Depois, exigiu que eu fosse no treino presencialmente, mas pediu que eu subisse na esteira e corresse e não olhou para mim por uma hora. Achei aquilo muito estranho.

Faltavam dois meses para a meia maratona, e comecei a treinar em outra equipe. Na competição, fiz 21 km em menos de 2 horas — uma vitória e tanto. O antigo treinador ficou possuído com o resultado e me procurou de maneira grosseira. Depois disso, me bloqueou no WhatsApp.

Continuei correndo e usei essa situação como um incentivo para fazer mais e melhor. Mas tenho certeza de que um treinador não faria isso com um homem.

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