O pornô desconstruído

Como a pornografia moldou nossa sexualidade e por que você deveria pensar duas vezes antes de dar play

Luiza Sahd e Christiane Ferreira Colaboração para Universa

A pornografia é, indiscutivelmente, (e com o perdão pelo trocadilho) uma mão na roda para quem busca prazer e excitação instantâneos em um mundo onde nada pode ser muito caprichado ou demorado. Os vídeos eróticos podem ser vistos como recursos de prazer tão inocentes quanto brinquedos de sex shop -- mas quase nunca são. Há algum tempo, ativistas e sexólogos vêm debatendo o quanto o consumo de conteúdo pornográfico em filmes, no YouTube ou nas redes sociais são potencialmente nocivos à sexualidade de homens e, especialmente, das mulheres.

O pornô mainstream -- aquele oferecido de graça na internet e amplamente consumido em todas as partes do mundo -- propaga uma infinidade de distorções do que é o sexo na vida real. Fora das telas, as mulheres raramente curtem ser penetradas sem preliminares, não têm a vulva sempre cor de rosa e não costumam gozar em um passe de mágica durante uma penetração estilo britadeira.

Toda uma geração de homens e mulheres construiu sua sexualidade assistindo a cenas que reproduzem estereótipos, estabelecem parâmetros equivocados e criam expectativas impossíveis de serem atingidas. Ruim para todos.

É por isso que parte da nova onda do feminismo tem questionado o consumo da pornografia. "Quando falamos em pornô mainstream, falamos em male gaze: tudo é roteirizado através do olhar masculino. A gente não encontra, por exemplo, cenas longas do cara fazendo sexo oral na mulher, mas o contrário, sim", explica Bruna Borelli, mestre em Estudos Culturais pela Universidade de Lisboa. No Brasil, a audiência de pornografia gratuita é majoritariamente masculina (39% de mulheres para 61% de homens, segundo o Pornhub, o maior site de pornografia do mundo).

Para Daniel Cardoso, pesquisador da Manchester Metropolitan University, o mais saudável é discutir as pornografias no plural. "Falar de pornografia no singular pode ser simplista. A pornografia produzida com ética, ou pós-pornografia, pode ter um papel importante para construir uma cultura sexual mais inclusiva de corpos, de identidades e de práticas", explica.

Patrícia Santos/Folhapress

O começo e os fins

A palavra "pornografia" vem do grego porne (prostituta) + graphen (escrever) e o conceito de pornô tem suas raízes na França do século 18, por causa de livros escrito por e para prostitutas sobre doenças venéreas corriqueiras. Em seu livro "História da Literatura Erótica", o historiador Sarane Alexandrian explica que, aos poucos, a sociedade passou a qualificar como pornográfico tudo o que descrevia sexo sem amor. Hoje, usamos o termo para nos referir ao que é obsceno.

A popularização do pornô como conhecemos ganhou fôlego no final do século 19, quando fotos de modelos nuas e livros ilustrados começaram a ser vendidos nas principais cidades do mundo. Os primeiros filmes pornôs foram produzidos em 1896 — apenas um ano após a invenção do cinematógrafo — e o gênero se consagrou em 1972, impulsionado pela abertura sexual da cultura hippie e pelo êxito do filme norte-americano Garganta Profunda.

De lá para cá, o pornô se tornou, também, uma relevante fonte de educação sexual para jovens que não tinham abertura para discutir sexualidade em casa ou na escola.

Quem consome pornô?

Pesquisas recentes apontam que se começa a consumir pornografia na internet entre 9 e 11 anos de idade. "O problema desse consumo precoce, sem nenhuma orientação adequada de um adulto, é que os jovens crescem com referências de um sexo performático, machista e inteiramente focado na genitália. Quando eles passam a ter relações sexuais, a experiência é frustrante", explica Cláudio Serva, criador do Prazerele, plataforma que reúne conteúdo sobre masculinidades e sexualidade positiva.

No último ano, o site Pornhub recebeu 42 bilhões de acessos — cerca de 115 milhões ao dia. Os mais de 6 milhões de vídeos publicados na plataforma em 2019 oferecem 1,36 milhões de horas de conteúdo pornô. Em outras palavras, se você tentasse ver todos os conteúdos que o Pornhub disponibilizou nos últimos 12 meses, você teria arquivos suficientes para se masturbar por 169 anos sem pausa nem para ir ao banheiro.

Muitas hipóteses sobre os danos que o consumo excessivo de pornografia pode causar a seus consumidores têm sido levantadas pelo meio científico. Os mais conhecidos são depressão, problemas de impotência, danos no assoalho pélvico dos rapazes e subdesenvolvimento de certas zonas cerebrais. Ainda assim, os estudiosos preferem não bater o martelo sobre os efeitos colaterais da dependência de pornografia na mente e corpo humano: a maioria dos testes demonstra que os prejuízos à saúde são passageiros e costumam melhorar com a suspensão do vício em pornô.

No meio acadêmico, existem, ainda, discussões que relacionam o aumento do consumo de pornografia — facilitado pela internet e amplamente disseminado via redes sociais — com a redução da atividade sexual de jovens do mundo inteiro.

Para o pesquisador Daniel Cardoso, o buraco é mais embaixo.

"Em uma sociedade capitalista, cansada e ansiosa, é comum que as pessoas cheguem do trabalho exaustas e prefiram consumir uma pornografia rápida e fácil a transar com um parceiro. Vejo o abuso de pornografia mais como efeito do que como causa para a nossa preguiça de transar", afirma Cardoso.

Pior para as mulheres

Tradicionalmente, as mulheres são retratadas no pornô de forma degradante. Em geral, os filmes gratuitos reproduzem as figuras femininas em situação de submissão, sendo tratadas meramente como objeto do prazer sexual masculino. Nesse tipo de material, elas raramente expressam seus desejos, frequentemente apanham, eventualmente são violadas com objetos grossos e muitas vezes pedem para o cara parar, mas continuam sendo penetradas. E mais: as atrizes mais populares são magras, loiras, peitudas, têm vulvas rosadas e gemem mais do que falam.

Especialistas e ativistas anti-pornografia têm se dedicado a explicar como esse script sexual acaba reforçando a cultura do estupro e da violação da dignidade feminina alertando que o pornô mainstream não deveria servir de espelho para relacionamentos sexuais saudáveis. "Vendo esse tipo de conteúdo, as mulheres não aprendem que sexo é sinônimo de prazer ou que elas precisam explorar a própria sexualidade", diz Bruna Borelli. Com o agravante de que o tratamento dedicado às atrizes do pornô também pode ser, na maioria dos casos, precário e violento.

O problema do consumo precoce é que os jovens crescem com referências de um sexo performático, machista e inteiramente focado na genitália. Quando passam a ter relações sexuais, a experiência é frustrante"

Cláudio Serva, criador do Prazerele

Mas homens também sofrem

Não são só os atores pornô que podem sentir na pele os efeitos nocivos desta indústria. Para Cláudio Serva, a referência pornográfica também pode minar a autoestima e o prazer masculino. Nos filmes, eles são sempre os responsáveis pelo gozo alheio, não podem demonstrar nenhum tipo de ternura ou fragilidade e jamais broxam; ostentam pênis nababescos e ereções que podem durar horas. O homem do pornô não nega sexo e precisa garantir uma performance sexual irretocável.

"Este tipo de material só serve para reforçar estereótipos machistas e acaba sendo um tiro no pé de quem o consome. Aproveitar a própria sexualidade sob tanta pressão e com uma visão tão distorcida do que é sexo fica quase impossível", diz Serva.

Ele lembra que vídeos mainstream propagam uma ideia equivocada de desempenho sexual masculino e quase nunca mostram a possibilidade de exploração mais lenta e prazerosa dos corpos. Além disso, esse homem, que não foi preparado para encontrar parceiras seguras e desejantes, acaba não sabendo como agir ao topar com uma mulher preocupada com o próprio prazer. Confrontados com essa situação, eles fogem, broxam, ejaculam muito rápido ou simplesmente não conseguem se excitar.

Organizando bem, todo mundo transa?

Dentro do movimento feminista, existem dois discursos bem distintos a respeito da pornografia. A discussão, que começou em 1970 e perdura até hoje, tem até nome: "Feminist Sex Wars" (Guerras sexuais femininas). De um lado, ficam as mulheres que veem o pornô como objetificação da mulher e incentivo à violência e, de outro, as que enxergam a pornografia como forma de emancipação e de liberdade sexual — e tentam, hoje, adaptá-la aos desejos femininos.

"As novas pornografias chegam para mudar as narrativas dominantes nesse mercado tão poderoso. Existem cada vez mais projetos que levam em conta que pode haver uma mulher em busca de prazer do outro lado da tela", diz Borelli.

A diretora de cinema Erika Lust é um dos nomes mais importantes da pós-pornografia. Seus filmes ganharam fama internacional justamente por colocar as personagens femininas (de corpos e identidades bem variadas) como protagonistas do próprio prazer. O problema: o pornô ético, assim como a alimentação orgânica, não cabe em todos os bolsos — enquanto o pornô gratuito pode ser acessado sem custo, uma assinatura mensal do site de Lust custa 35 dólares.

Outro ponto importante é que a pós-pornografia interessa majoritariamente ao público feminino. "Dificilmente o consumidor de pornografia gratuita e violenta vai mudar seus hábitos para se interessar pelos filmes mais éticos", diz Isabela Graton, apresentadora do podcast feminista O pessoal é político. Para ela, fazer com que a pornografia se torne ética é uma missão impossível. "Todas as formas de pornografia acabam resvalando em violência contra a mulher."

A podcaster vê a legislação do pornô como um caminho intermediário razoável para a redução de danos. "Há conteúdos de pedofilia, incesto, racismo e violência circulando livremente. Precisamos pressionar os governos para que tanto os trabalhadores da indústria pornográfica quanto os consumidores deste tipo de material sejam poupados dessas violências."

Falar de pornografia no singular é simplista. A pornografia produzida com ética, ou pós-pornografia, pode ter um papel importante para construir uma cultura sexual mais inclusiva de corpos, de identidades e de práticas

Daniel Cardoso, pesquisador da Manchester Metropolitan University

Deveríamos cancelar a pornografia?

O debate sobre o pornô ganha um novo fôlego em um contexto em que a luta das mulheres pela igualdade de direitos, por respeito e pelo fim da violência de gênero cresce em todo o mundo. A descoberta da sexualidade, o poder sobre o corpo, o anseio por prazer, o olhar crítico sobre o papel do homem na sociedade, na sua vida, na sua cama, acaloram a discussão.

Mais importantes do que a resposta definitiva sobre a necessidade do consumo de pornô são as perguntas sobre o que este tipo de conteúdo traz para o espectador. Quando não promove o bem-estar na própria pele, o vídeo erótico pode ser apenas uma cilada para autoestima e o desempenho sexual de quem está assistindo.

Mediados ou não pelos pornôs, o que todo mundo quer é gozar — de forma intensa, mas realista — no final.

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