"Precisamos nos adaptar"

Marilda Siqueira é chefe do laboratório da Fiocruz que é referência da OMS para Covid-19

Giuliana Bergamo de São Paulo René Cardillo/UOL

12 de janeiro de 2020. A China finalmente identificava o causador do surto de pneumonia que, há semanas, assolava o país: o vírus Sars-CoV-2. Naquele momento, 42 casos e uma morte haviam sido confirmados. Aqui do outro lado do mundo, porém, a doença era ainda apenas uma ameaça distante, quase irreal para a maioria da população. Mas a virologista Marilda Siqueira, 64, e a equipe que chefia no Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo da Fiocruz-RJ já estavam a postos para enfrentar o pior. "Quando a China alertou que era um coronavírus, antes mesmo de saber qual deles, buscamos quais insumos tínhamos aqui para detectar esses vírus, e encomendamos o que mais seria preciso", diz.

René Cardillo/UOL

Era o início de um trabalho, que, desde então, tem ocupado todo o tempo da pesquisadora e seu time. Referência nacional na área, nos últimos dias de janeiro, o laboratório foi destacado para, ao lado de profissionais da Organização Panamericana de Saúde (Opas), treinar equipes de outras instituições para o diagnóstico de coronavírus. Os primeiros foram os institutos Adolfo Lutz, em São Paulo, e Evandro Chagas, em Belém. Em seguida, nos dias 6 e 7 de fevereiro, foi a vez de replicar a metodologia para nove grupos da América Latina: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai.

Tamanha expertise resultou na designação do laboratório da Fiocruz-RJ como referência da Organização Mundial da Saúde (OMS) para as Américas na pandemia de Covid-19. O Centro de Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, tem a mesma responsabilidade. Isso significa que, além do compromisso de replicar metodologias e conhecimento, os dados gerados por essas instituições influenciam análises globais sobre a situação dos vírus no mundo. "Esse reconhecimento é fruto de um esforço não só do nosso laboratório, mas da Fiocruz como um todo e do Ministério da Saúde", diz Marilda.

3 marcos na vida de Marilda

Pandemia de Sars-CoV-2

No dia 10 de janeiro, a OMS informou que o vírus causador das pneumonias na China era da família dos coronavírus. A epidemia ainda não tinha saído da Ásia, mas a virologista preparou o laboratório da Fiocruz para testar possíveis casos que chegassem aqui.

Pandemia de H1N1

Marilda Siqueira estava a caminho de Genebra, para uma reunião da OMS, quando a organização anunciou o início de uma epidemia do vírus H1N1. De volta ao Brasil, ela recebeu a incumbência de treinar e outros laboratórios brasileiros para a pandemia.

Epidemia de Sars

O vírus da Sars-Cov-1 não chegou a sair de Hong Kong. Ainda assim, Marilda manteve, desde o início da epidemia, seu laboratório equipado para diagnosticar o vírus. A experiência serviu para reforçar a vigilância dos vírus respiratórios e a infraestrutura das UTIs no país.

Um caso muito antigo

Marilda e os vírus têm uma relação de longuíssima data. Quando era muito pequena -- "uns seis ou sete anos, no máximo" --, ela foi acometida por sarampo. À época o vírus era muito comum entre crianças. Muitas delas morriam. "Eu tive uma infecção muito forte. Foi o que chamavam de sarampo negro porque acometia os olhos. Eu não conseguia enxergar direito, tinha muita fotofobia, uma aversão enorme à luz", lembra. O mal-estar era tão grande que a mãe da menina tinha que tampar a claraboia que iluminava a quarto da casa onde a família vivia em Bela Vista, no interior do Paraná.

A pesquisadora voltaria a se encontrar com o sarampo mais tarde, dessa vez, a trabalho. Mas, antes, se dedicou à outra ameaça à população infantil. No início da carreira, na década de 1980, começou a estudar o vírus sincicial respiratório, responsável de grande parte das internações infantis nos períodos frios no Brasil. A sazonalidade (frequência com que circula na população) do patógeno foi tema de seu mestrado e doutorado. Graças aos estudos, na década seguinte, foram implementados no país os métodos e protocolos de diagnóstico da infecção, que passaram a orientar condutas clínicas de pediatras, como a administração ou não de antibióticos.

Foi mais ou menos na mesma época que Marilda passou a fazer parte dos esforços internacionais para erradicar o sarampo. Na época a doença matava cerca de 2,6 milhões de crianças anualmente no planeta. Em poucos meses, foi organizada pelo Ministério da Saúde a maior campanha de vacinação já realizada no mundo até então. Ao final de 1992, 95% dos menores de 14 anos estavam imunizados. Para garantir a contenção da doença, era preciso traçar estratégias de imunização e rastreamento do vírus, o que foi executado com afinco nos 25 anos seguintes. Teve tanto sucesso que foi replicado para a China, países da América Latina e também na contenção da rubéola. Em 2017, o Brasil recebeu, pelas mãos de Marilda e outras autoridades, o certificado concedido pela Opas, pela eliminação do sarampo e também da rubélola. O título, no entanto, acabou sendo perdido — movimentos anti-vacina, infelizmente, fizeram com que casos voltassem a surgir no país.

Josué Damacena/IOC/Fiocruz

Não dá pra esquecer

"Quando vimos os casos invadindo a Europa, soubemos que o vírus chegaria ao Brasil. Aquele momento do espalhamento na Itália e depois em outros países europeus foi bastante chocante. A resposta que eles deram também foi marcante: um país como a Inglaterra, que tem um sistema de saúde universal excelente, demorar a implementar as estratégias necessárias foi bem chocante — eu esperava uma resposta mais clara, e não tão política como aconteceu."

Ciência no castelo

Como outros profissionais de ciência e saúde que estão na linha de frente contra o vírus, Marilda não pode ficar em quarentena. Mas tem passado a maior parte do seu tempo no campus da Fiocruz, fechada em seu laboratório vizinho ao Castelo Mourisco, a sede da Fiocruz-RJ erguida graças aos esforços de Oswaldo Cruz (1872-1917). Chega a sair de madrugada do edifício centenário situado no alto de um morro à beira da Avenida Brasil, um dos pontos mais inseguros da capital fluminense. É de lá que a virologista tem participado, via internet, de reuniões e pesquisas com diversos grupos de cientistas do Brasil e do mundo. Diferentes frentes de combate à pandemia contam com seus esforços. Entre elas, estudos sobre o uso de medicamentos, análise de amostras do vírus e desenvolvimento e estratégias de implementação de testes rápidos de diagnóstico.

"Uma vez que a maior parte das infecções por coronavírus é assintomática, é muito importante sabermos qual a porcentagem da nossa população já se infectou e tentar prever quantos ainda serão infectados nos próximos meses", diz Marilda. É com base nesse tipo de informações que o Ministério da Saúde poderá traçar estratégias de controle da pandemia no país e decidir ou não pelo fim do isolamento. "Os próximos passos serão continuar trabalhando intensamente junto com o ministério e a Opas na introdução de novas metodologias caso tenhamos limitações para a aquisição de insumos para os laboratórios tanto do Brasil como para as Américas".

Protagonismo acumulado

O protagonismo de Marilda e equipe não é recente. No final de 1997, um vírus influenza, o H5N1, circulou em Hong Kong. Só 18 pessoas foram infectadas, mas a porcentagem de mortes foi altíssima: 10 pacientes faleceram. O surto mostrou que os países precisariam se preparar melhor para uma possível pandemia de gripe. Marilda propôs ao Ministério da Saúde, então, a criação de uma rede de vigilância de influenza, o que foi realizado junto dos institutos Adolfo Lutz e Evandro Chagas.

O plano contra gripe estava pronto, quando uma outra ameaça chegou. Em 2003, um surto de coronavírus, então conhecido como causador da Síndrome Respiratória Aguda (Sars, na sigla em inglês), causou cerca de 8 mil infecções e 774 mortes em Hong Kong. "No início, ninguém sabia no mundo o que era. Então, montamos um grupo multidisciplinar na Fiocruz, com virologistas, bacteriologistas, micologistas", lembra. O vírus não chegou a deixar Hong Kong, mas o Laboratório comandado por Marilda, estava pronto para enfrentá-lo. "Situação semelhante aconteceu em 2013, quando outro coronavírus, o Mers surgiu no Oriente Médio. Assim que a OMS emitiu o comunicado, implementamos os protocolos no Brasil".

Em 2008, como integrante do Sistema Global de Resposta à Influenza, da OMS, Marilda estava a caminho de uma reunião em Genebra, na Suíça, quando o órgão emitiu um alerta de que um influenza pandêmico, o H1N1, estava circulando. De volta para o Brasil, a virologista começou os testes de amostras e treinamento de outras equipes do país. Foi um trabalho intenso. "Para se ter uma ideia, o nosso laboratório recebia uma média de mil amostras por ano até 2008. Em 2009, recebemos 18 mil em apenas seis meses".

Tais experiências deram as bases para a atuação fundamental da virologista e sua equipe no enfrentamento da atual pandemia. Apesar de cansaço acumulado em tantos dias de trabalho ininterrupto, ela continua cheia de energia para trabalhar. Às 7h da manhã já está a postos. Dia desses, o cansaço estava começando a afetar seu humor. "Eu precisava descansar, porque estava começando a ficar triste. Então liguei o Netflix e assisti 'Guerra nas Estrelas', que eu adoro, até uma da manhã", diz. Para quem se pergunta se algum dia teremos a vida pré-pandemia de volta, ela deixa um recado darwniano: "Precisamos nos adaptar se quisermos sobreviver."

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