Ouro contra o machismo

Ao denunciar um estupro, a velejadora olímpica Sofia Bekatorou iniciou o movimento #MeToo na Grécia

André Naddeo Colaboração para Universa, em Atenas Louisa Gouliamaki/AFP

Velejadora medalha de ouro em Atenas, em 2004, e de bronze em Pequim, em 2008, Sofia Bekatorou foi a primeira mulher a carregar a bandeira da Grécia na história dos Jogos Olímpicos, em 2016, no Rio de Janeiro. Tudo caminhava para uma tranquila aposentadoria, aos 43 anos, depois de uma carreira vencedora que a colocou no hall dos mais importantes atletas do país. Só que ela sabia que para encontrar a paz natural deste momento, seria necessário extirpar de si uma enorme chaga do passado.

Em 1998, Sofia foi estuprada quando tinha 21 e celebrava justamente uma vaga para as suas primeiras Olimpíadas, dois anos depois, em Sydney. Após 22 anos, a atleta conseguiu falar publicamente sobre a violência sexual que sofreu, ao denunciar, em novembro de 2020, o ex-vice-presidente da Federação Helênica de Vela, Aristidis Adamopoulos.

Sofia conseguiu muito mais que a demissão e desfiliação dele do partido do governo, no qual também atuava. Adamopoulos nega a acusação e não pode ser julgado, porque, após mais de 20 anos, houve a prescrição do crime como determina a lei grega. Mas a coragem da velejadora em falar deu início a uma série de testemunhos de outras mulheres que carregam, assim como ela, a dor de um abuso.

Relatos de atletas contra dirigentes, atrizes denunciando diretores e produtores, alunas reportando a má conduta de professores passaram as ser compartilhados nas redes sociais da Grécia por meio da #MeTinSofia. Essa versão grega do movimento #MeToo foi uma voadora no peito do sistema patriarcal do país, a sociedade que tem o pior ranking de igualdade de gênero de toda a União Europeia.

A Universa, Sofia detalha a seguir sua jornada de coragem e inspiração.

"Na sociedade machista grega, o esporte era minha única liberdade"

"Comecei a velejar aos sete anos. Quanto mais eu velejava, mais eu gostava da liberdade, do mar, das ondas, do vento. Sempre amei isso, além do fato de que eu dirigia algo meu. Eu era uma capitã, sempre gostei de ter o controle. Nunca me senti confortável quando perdia isso.

Meu pai sempre gostou de velejar, mas nunca me deu muita liberdade. Minha mãe, a mesma coisa. A sociedade grega, no geral, é conservadora e machista até hoje. Mulheres precisam preservar a imagem, se preocupar com o que as pessoas vão comentar. A única liberdade que eu tinha era o esporte.

Velejando encontrei minha maneira de ser livre. Meus pais me deixavam viajar para as competições. Mas festas? Totalmente controladas! Então o mar sempre foi meu refúgio

A vela também foi a maneira que eu rapidamente encontrei de ser independente financeiramente. O ambiente na minha casa era violento, de brigas, muita gritaria. Então eu decidi que não queria mais isso para mim e com o meu dinheiro aluguei minha própria casa, aos 21.

Louisa Gouliamaki/AFP Louisa Gouliamaki/AFP

"Ele me agarrou como um animal e eu só pensava que o mataria"

Em 1998, quando eu tinha 21 anos, fui competir em Palma de Mallorca, na Espanha, para o qualificatório para a Olimpíada de Sydney, em 2000. Tínhamos em nossa equipe o dirigente da Federação (de vela grega), o Aristidis Adamopoulos.

Era um cara que sempre foi amigo da gente. Quando tínhamos dificuldades com suporte financeiro, era ele quem resolvia os problemas. Seja para comprar um equipamento a mais, ou mesmo as despesas para estar na competição. Estávamos todos contentes com sua presença. Não conseguimos medalha, mas em sexto lugar, conseguimos nos classificar para os Jogos de Sydney.

Com a vaga garantida, a equipe saiu para comemorar. Terminamos o jantar, meus companheiros voltaram ao hotel e eu fiquei com o Aristidis conversando um pouco mais. Ele tem o dobro da minha idade.

Já no elevador do hotel, Aristidis pediu para que eu fosse ao seu quarto, que estava num andar abaixo do meu. Eu respondi que não tinha nenhuma razão para ir ao quarto dele. E ele me disse: 'Vão ser seus primeiros Jogos Olímpicos, vamos conversar mais, tenho muito o que te dizer. Por que não? Você tem medo?'

Eu respondi que não tinha nenhum medo. Claro que hoje eu sei e entendo, porque ele sabia o que dizer para me provocar. Ele sabia que não havia forma de eu ir ao quarto dele se não fosse me provocando. Ele me conhecia bem, conhecia a minha personalidade, a minha teimosia. Acabei indo para provar que era forte. Uma besteira.

Quando entramos em seu quarto, ele me agarrou como um animal e eu me congelei. Fiquei tão assustada, que fiquei sem reação alguma. Não conseguia entender porque eu só queria que aquele estupro acabasse o mais rápido possível.

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"Não consegui me perdoar por anos"

No meu comportamento normal, eu gritaria, bateria nele, me defenderia do abuso. Mas naquele momento eu não fiz nada, congelei. Só pensava que se eu batesse nele, na verdade eu o mataria com tanta raiva que eu estava sentindo.

Nunca havia imaginado que ele pudesse me estuprar. Hoje, mais de 20 anos depois, consigo entender que eu fiquei paralisada porque estava em choque. Mas eu não entendia isso naquele momento

Eu me culpei por não ter feito nada. E eu não conseguia me perdoar de jeito nenhum por anos e anos.

Quando eu voltei da viagem, a única pessoa que soube do ocorrido foi o meu namorado na época, que também era velejador. Foi a reação prevista de machão: de querer ir, brigar. E eu sabia que isso não mudaria nada. Eu não fui até a polícia, não sabia o que fazer. E preferi criar na minha mente que 'isso nunca aconteceu'. O estupro foi bloqueado no meu consciente.

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"Vivia negando o estupro e coloquei em prática a autodestruição"

Minha vida mudou depois disso. Não poderia ser diferente. Ganhamos três campeonatos europeus em três anos. Uma medalha de ouro no meu próprio país (classe 470, ao lado de Emilia Tsoulfa nos Jogos de Atenas, 2004) e outra de bronze (Pequim, 2008, com a mesma parceira). Eu me tornei obsessiva em querer ser a melhor, uma máquina.

Tinha o meu namorado, minha casa, mas só pensava em treinar, treinar e treinar. O estupro estava ali, dentro do meu subconsiente e eu entendia que virando uma máquina, conseguindo resultados, estaria me ajudando a esquecer o trauma

Nas horas em que eu não treinava, eu alugava DVDs e assistia a uns três filmes na sequência, era uma forma de me neutralizar, de não me fazer pensar nas coisas. E assim foi por anos. Hoje, eu vejo que o que aconteceu me impediu de ter relações saudáveis com outros homens. Eu percebo hoje que quando a relação estava em paz, era eu que trazia problemas para destruir o clima de paz. Coloquei em prática o mecanismo de autodestruição. Deixei de me amar.

Tenho dois filhos, Dimitris e Geórgia. Ao me tornar mãe e com anos e anos de psicoterapia, comecei a sentir que deveria fazer algo em relação ao estupro, tirá-lo do meu subconsciente e resolvê-lo de uma vez por todas. Minha irmã morreu, depois minha mãe, eu tive um divórcio...No entanto, minha vida ainda não estava estabilizada o suficiente para isso.

Até que no final do ano passado, participei de um seminário com várias ativistas sobre violência contra a mulher. Era a primeira vez em mais de 20 anos que senti algo como: 'Eu sei do que elas estão falando, porque eu passei por isso também'. Foi então que me abri em público pela primeira vez

Resolvi fazer uma denúncia formal, ainda que soubesse que nada aconteceria — o crime já estava prescrito. Foi quando uma repórter de uma revista local me ligou e me perguntou se eu não queria fazer uma entrevista oficial e contar tudo.

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"Uma sucessão de escândalos veio à tona"

Minha entrevista foi uma bomba. Da mesma forma que outras mulheres me inspiraram a contar o que havia acontecido, inspirei outras. A cada dia novas denúncias surgiam. Outras atletas se sentiram encorajadas a denunciar estupradores e violadores. Muitas atrizes também começaram a usar as redes sociais não só para me apoiar, mas também para contar suas próprias histórias de assédio sexual por parte de diretores e produtores prestigiados.

Uma sucessão de grandes escândalos veio à tona desde então.

O diretor do Teatro Nacional grego, Dimitris Lignadis, deixou o cargo em fevereiro passado e foi preso acusado de assédio sexual e estupro de dezenas de jovens atores. Estava criado o movimento #metoo grego. A cada caso que surgia, a cada nova história que aparecia nos noticiários, era um misto de tristeza com cura para mim

Tenho diálogo aberto com meus filhos sobre sempre tentar fazer o melhor. Dimitri no começo estava um pouco relutante, porque ele tinha medo do que as pessoas iriam comentar na escola. Mas a minha filha Geórgia me disse que depois de tudo isso ela estaria mais segura na sociedade. Quando ela me disse isso, eu tive a certeza de ter feito o certo, ainda que depois de tantos anos

Recebi tantas mensagens de garotas jovens, ou mesmo outras mulheres que foram abusadas, seja nas relações, ou no trabalho. Sempre que terminava de ler a mensagem, tinha a sensação 'Conheço essa mulher de algum lugar'. Era conversar com essas pessoas sem conhecê-las, mas com o sentimento de verdadeira conexão com todas elas.

O #MeToo que foi desencadeado na Grécia, a partir da minha história, foi o momento em que eu finalmente comecei a me tratar melhor. Esse foi o ponto de partida. Foi a primeira vez em que eu admiti a mim mesma que não eu não fui justa comigo, me acusando pelo que aconteceu. De que não foi minha culpa. Que eu finalmente podia me perdoar e seguir com minha vida de uma maneira mais saudável."

Clive Mason/Getty Images Clive Mason/Getty Images

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