Respeite as bichas. Talkei?

Conheça a Turma OK, primeira confraria LGBTQ+ do Brasil, que nasceu em 1960 e continua no fervo

Jacqueline Elise Da Universa Luciola Villela/UOL

"Como fazemos todos os anos, recebemos em nossa igreja o grupo OK. E hoje, de uma forma especial, eles estão comemorando 53 anos de convivência. Eu sempre disse: que seja um grupo de unidade, amor, carinho. Principalmente com aqueles que estão envelhecendo e precisam de apoio".

O sermão, proferido por um padre, no filme "O Clube", de 2014, foi dirigido a uma igreja, cujos bancos estavam forrados de senhorzinhos, na sua maioria, homossexuais. O curta-metragem, que mistura ficção e realidade, é um dos poucos registros de uma turma do barulho, a OK. E a parte da missa é realidade.

A Turma OK é um grupo de "senhoras e senhores", como eles gostam de falar, homossexuais, bissexuais e transgêneros, que nasceu no coração da Lapa, no Rio de Janeiro, em 1961. Eles se consideram o primeiro grupo LGBTQ+ do Brasil; não de militância, mas de pessoas que se reuniam para se divertir --e de um jeito muito particular.

Os tempos ainda não eram os bicudos da ditadura, mas a preocupação em não "dar pinta" era importante, uma vez que o linchamento moral e a abordagem policial em cima de quem era "bicha", quase sempre eram violentíssimos.

Assim, em inescrutáveis apartamentos do bairro carioca, membros da Turma OK, em sua maioria, homens com mais de 50 anos, se transformavam em suas divas preferidas --Liza Minnelli era a número 1 - e, entre emocionados e orgulhosos, performavam números de dublagem. Os encontros aconteciam sempre à noite, juntavam entre 10 e 15 pessoas e tinham de ser num volume bem baixinho. As palmas eram substituídas por estalos de dedos.

A morte de muitos da turma por causa da repressão militar e, mais tarde, da Aids, baqueou a Turma OK. Localizada hoje num sobrado de ares português, no centro do Rio, perto de outros marcos da região, como a Gafieira Estudantina e o Bloco Cordão do Bola Preta, a confraria luta para se manter de pé.

Luciola Villela/ UOL
Arquivo Pessoal/Turma OK

Quem é a Turma OK?

A Turma OK foi criada pelos amigos Agildo Guimarães, escritor, Anuar Farah, comerciante, e José Rodrigues, funcionário de uma exportadora. Era janeiro de 1961 e eles queriam, além de viver sua homossexualidade com algum grau de liberdade, juntar amigos que, como eles, eram apaixonados pelo universo do transformismo.

Decidiram que os encontros aconteceriam semanalmente e que o grupo se chamaria Turma OK porque, quando marcavam as noites do evento, os participantes, para manter a discrição das conversas, sempre respondiam 'tá ok', 'tudo ok'.

"Tinham dois tipos de transformistas, as que eram consideradas bonitas, e as caricatas. As bonitas eram as que, com as maquiagens e roupas, conseguiam se parecer com uma mulher. As caricatas tinham uma aparência mais fantasiosa e colorida. Se comparavam às drag queens de hoje; figuras que não existiam naquela época", explica Roberto Iglesias, 64, aposentado que cuida dos eventos da Turma OK. Desde 1976, ele se apresenta como Sophya Monroe; esta na foto ao lado.

Iglesias conta que os encontros, nos primeiros anos, eram cercados de cuidados. Os apartamentos utilizados pertenciam aos sócios da OK e, por isso, vizinhos e polícia não podiam perceber nada. "Eles não batiam palmas. Estalavam os dedos quando queriam mostrar admiração pela performance."

Para além das apresentações, os encontros serviam para que aqueles homens, na faixa dos 40 e 50 anos, e considerados senhores para época, pudessem se socializar, mostrar seus afetos e namorar. "Só convidávamos os muito próximos; aqueles que garantiriam o sigilo do que acontecia ali para não comprometer alguém fora daquele espaço", diz Alexandre Zeus, 48, presidente da casa há três meses (na foto abaixo).

A necessidade de anonimato impediu que a Turma OK se tornasse uma militância explícita pelos direitos das pessoas LGBTQ+. Muitos da turma não eram assumidos ou viviam relacionamentos de fachada com mulheres. "O intuito era ser uma família para quem precisasse", afirma Iglesias, para quem o ambiente familiar e de companheirismo do grupo continua vigente.

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Ditadura, Aids e a ajuda

A Turma OK interrompeu seus encontros entre 1969 e 1975 por causa da repressão militar. O regime perseguia gays e travestis, e muitos morreram nos porões policiais; inclusive amigos dos sócios.

No final da década de 1970, o grupo recuperou um pouco do fôlego e voltou a se encontrar, mas então, em clubes da Lapa; e um dos fundadores, Anuar Farah, passou a promover concursos de beleza de transformistas. Mas outro baque se avizinhava. Nos anos 1980 e 1990, a Aids levou embora muitos dos "Okeis", como eles se chamam. Houve momentos em que três morriam por semana.

"Alguns se deixavam levar. Outros, por vergonha, não iam aos postos pegar remédio, porque eles eram exclusivos para a distribuição do coquetel. Se você fosse visto entrando ali, saberiam que estava com Aids. Tinham também os que passavam o vírus para frente por 'vingança'", relembra Roberto.

Ele mesmo perdeu um amigo, que havia sido seu namorado. Eric Barreto, outro membro do grupo, ficou conhecido por interpretar Carmen Miranda no documentário "Carmen Miranda: Banana Is My Business", de 1995. Um ano depois, ele morreria.

Para tentar amenizar o drama dos sócios que estavam doentes, a OK se mobilizou. Amigos se juntavam e levam mantimentos, remédios e até ajuda financeira para aqueles que não podiam mais trabalhar. "Essas ajudas ficavam só entre nós. Ninguém de fora sabia", diz Vera Rodrigues, 73, sócia da turma há cerca de 20 anos, e que fez parte da mobilização. Se as pessoas já sofriam porque eram gays, o estigma era ainda maior para quem tinha a doença.

Até hoje, o grupo produz shows para arrecadar doações quando alguém passa por dificuldades.

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Luciola Villela/ UOL

"Mãezona" e outras mulheres

Apesar de ser um grupo formado majoritariamente por homens gays, a Turma OK tem e tinha mulheres nos encontros. Muitas eram lésbicas e levavam suas namoradas para os apartamentos. Além de serem amigas do grupo, a presença delas ajudava a manter o segredo dos Okeis.

Uma mulher estreou na diretoria da organização nos anos 2000. Quem criou e encabeça o cargo é a atriz Theca de Castro, 81 (na foto, ao lado). Ela foi levada para a organização por Gilles Ferreira, figura de destaque no grupo, uma vez que era maquiador da Globo e trazia para eventos artistas famosos da TV. Claudia Raia, Aracy Balabanian e Christiane Torloni foram algumas delas. Ferreira morreu em 2014.

"Na casa, sou chamada de 'mãezona', alguém que dá carinho, atenção, proteção", diz Theca, que até hoje se apresenta e coordena as apresentações e o envolvimento das outras mulheres e das mães dos Okeis. "A Turma OK também é família para mim, tenho pessoas que considero meus filhos aqui".

A dançarina Engel de Castro, 58, filha de Theca, faz números de dublagem e atuação, assim como a mãe. "Dizem que eu 'tombo' todo mundo", diverte-se Engel ao falar sobre seu "lipsync". "O Gilles chorou igual criança quando me viu dublando pela primeira vez, no aniversário dele. Aí as 'bichas' nunca mais me largaram".

Vera Rodrigues também fala do clima cálido da turma. "Eu ia sozinha e não sou gay. Mesmo assim, eles me aceitavam e tratavam super bem", diz ela, que até pouco tempo cuidou do site e dos registros de eventos do grupo.

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"Não tem pegação. Somos uma família"

Todos os sábados e domingos acontecem apresentações noturnas na casa. Eventos especiais também rolam às quintas e sextas. Cada noite, os Okeis atraem um público médio de 80 pessoas, que pagam R$ 20 para ver os shows. No mês que vem, acontecerá o evento mais importante do ano para eles: o concurso de Mister e Lady OK.

A competição vai eleger a transfomista e o homem mais bonito da turma este ano, e os organizadores dizem que os ingressos estão quase esgotados. Entre outros eventos do grupo estão a eleição da Mãe e do Pai do Ano, em que familiares dos Okeis são escolhidos por sua participação e envolvimento nos shows, além da Musa OK e da Rainha da Primavera.

A confraria tem 55 sócios que, para contribuir com as finanças do grupo, pagam uma mensalidade de R$ 60. "E têm pessoas que ajudam, que se doam para fazer a Turma OK acontecer. Tudo aqui é feito por amor,", diz Alexandre Zeus. "Temos uma senhora de 94 anos que frequenta o grupo com o marido. Eles são pais de um transformista daqui e todos os finais de semana comparecem", diz Roberto Iglesias. "Você não vê pegação. É um ambiente de conversa, de risadas; não somos uma boate".

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Arquivo Pessoal/Turma OK

Abençoada por Deus

Desde o primeiro aniversário, em 13 de janeiro de 1962, a OK realiza uma missa para agradecer o fato de ter conseguido existir. Quando a sede ainda era na Lapa, a missa era feita na Igreja de São Crispim e São Crispiniano. Para não chamar a atenção, os membros pediam que no meio do sermão, o padre apenas falasse que ela era "dedicada aos membros da Associação de Amigos Turma OK".

"O padre daquela igreja aceitava os gays. Ele nos adorava e fazia um sermão maravilhoso, dizendo que todos tinham que se respeitar", conta Theca. "Na igreja atual, eles também sabem quem somos. E entendem que é um lugar sério, decente e que qualquer um pode frequentar", conta Theca. A missa de aniversário é realizada na Paróquia Santo Antônio dos Pobres e, hoje, fala-se abertamente sobre "o grupo LGBT".

"No aniversário deste ano enchemos a igreja: foram as mães, as travestis mais antigas, os amigos. Completamos 58 anos. Ao fim da missa, o padre nos chamou ao altar para cantar os parabéns. Foi mágico, arrepiou", diz Alexandre.

Arquivo Pessoal/Turma OK Arquivo Pessoal/Turma OK

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