Hoje é dia de sapatão

No Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, seis mulheres saem do armário dos estereótipos

Nathália Geraldo e Talyta Vespa De Universa, em São Paulo
Arte UOL/Arquivo pessoal

O ano era 1996. O presidente era Fernando Henrique Cardoso. A novela teen "Malhação" acabara de estrear na TV Globo. E "É o Tchan" fazia todo mundo dançar por debaixo da cordinha. Foi também nesse ano que mulheres lésbicas de todo o Brasil se uniram pela primeira vez com uma reivindicação comum: visibilidade. Em 29 de agosto de 1996, acontecia o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), no Rio de Janeiro, organizado por centenas delas. A data é reconhecida nacionalmente como o Dia da Visibilidade Lésbica. Um 29 de agosto como hoje.

Vinte e três anos depois, a situação das mulheres lésbicas no Brasil continua longe da ideal. Um dossiê do grupo Lesbocídio - As histórias que ninguém conta, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que, entre 2014 e 2017, houve um aumento de 237% no número de casos de assassinatos e suicídios de mulheres lésbicas no país.

Medo e solidão fazem parte da vida das seis mulheres, de diferentes idades e estados, que contam suas histórias aqui. Mas elas falam, também, de amor, família, casamentos que deram certo e errado, primeiros beijos e aceitação. Rafaella vai casar em novembro. Adélia adotou dois meninos. Letícia teve o coração partido. Histórias, ao mesmo tempo, tão únicas e tão comuns de mulheres que querem visibilidade, muito além dos estereótipos.

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"Eu me condenava muito, tinha medo de ir para o inferno"

Ela nunca soube ser nada de fachada. Nem crente, nem mãe, nem lésbica. Karine Trindade, 25 anos, de Manaus (AM), frequentou a igreja evangélica por quase dez anos, "vivendo a religião" a sério. Casou aos 19 e teve filho um ano depois. Tudo seguia "para agradar a Deus" até que sentiu atração por uma mulher:

"Sempre admirei as mulheres, muito mais do que homens. Eu achava que era admiração, sem maldade. Depois, me dei conta que não. Em um cursinho preparatório, senti atração por uma menina, mas não me permiti. Eu me condenava muito, tinha medo de ir para o inferno.

Compartilhava meus desejos só com amigos. Eu, crente, falei uma vez para um amigo gay que queria usar uma cinta peniana com meu marido. Já pensou? O casamento desandou depois que o bebê nasceu e rompemos quando Guilherme tinha 3 anos. Aconteceram umas situações chatas, traições.

Depois que me separei, a primeira coisa que fiz foi ficar com uma mulher. Matar minha curiosidade. Aí, baixei o Tinder e saí ficando loucamente. Sabe, né? Quando a gente tem um desejo reprimido e libera, a tendência é essa. Até que percebi que não estava tendo responsabilidade afetiva. Era mais carnal. Como se quisesse repor todos os anos que perdi.

Há dois anos, além de estudar psicologia, trabalho como vendedora em um sex shop. Foi a cereja do bolo da minha desconstrução. Ainda tinha muitos tabus. Mas, lá, eu vejo todo tipo de fetiche, de cliente. Quero trabalhar com terapia de casais e sexualidade.

Fui mudando aos poucos. Me visto e me expresso de forma diferente. Quem tem um 'gaydar' bom consegue perceber que sou lésbica. Mas ainda tem gente que pensa: 'Ela é mãe? Então não tem como ser lésbica'".

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"Meu namorado disse: 'Itamar, você é sapatão'"

Itamar Nair tem 59 anos. Descobriu que era lésbica no fim dos anos 1980 e conta que, apesar da vontade de sair gritando para o mundo que era sapatão, teve que ficar reclusa. A falta de apoio da mãe e a vida que recomeçou numa cidade nova - hoje, mora no ABC Paulista, onde trabalha como funcionária pública - foram cruciais para que a descoberta da sexualidade fosse solitária.

"Engravidei cedo, aos 18. Eu morava no interior de São Paulo, não sabia nada sobre o mundo gay. Na cidade, só tinha uma lésbica e adivinha? Ela era hostilizada o tempo todo. Vim para a capital com a minha mãe adotiva e a minha bebezinha. Minha mãe, que era da Congregação Cristã do Brasil, se casou com um senhorzinho da igreja e não deixou que eu morasse com eles, mas minha filha ficou. Eu precisava trabalhar.

Nunca gostei de transar com homens, achava uma porcaria. Um dia, durante o sexo, um namorado meu me disse: 'Itamar, você é sapatão'. Eu nem achava que isso seria possível. Entre entradas e saídas de quartos de pensão, conheci casais gays que me levaram para festas LGBT no começo dos anos 1990. Numa dessas, tive a chance de ficar com uma mulher. E só aconteceu porque achei que ela fosse um menino.

Quando transei com uma mulher pela primeira vez, logo lembrei daquele ex. Queria assumir para o mundo, mas eram outros tempos. Quando contei para a minha mãe, ela ficou horrorizada. Ficou um tempão sem falar comigo. Antes de ela morrer, eu pedi desculpas por tê-la feito sofrer. De alguma forma, eu sentia culpa.

Aos 26, conheci minha ex-mulher. A gente viveu bem por 23 anos: nos amávamos e respeitávamos. Só que ela entrou na menopausa e eu não soube lidar com a falta de libido dela, as mudanças de humor. Pedi o divórcio e me arrependi no dia seguinte. A pior parte é que todas as nossas fotos estão com ela. Comigo, só lembranças. Agora estou solteira, não estou procurando ninguém, não. A gente vai se ajeitando, ajeitando."

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"Meus filhos já tiveram que fazer lembrancinha de Dia dos Pais"

Atriz e professora universitária, Adélia Carvalho, 43, chegou ao teatro em que iria se apresentar em Ouro Preto, Minas Gerais, e viu a historiadora Ana Jardim, 50 anos, que trabalhava por lá. Ela nunca tinha namorado uma mulher. E há 18 anos, vive tudo com ela: "A única questão é que era uma mulher". Mulher com a qual hoje cria dois filhos, driblando barreiras e preconceitos:

"Eu sou do teatro, onde o ambiente costuma ser menos hostil às pessoas LGBT. Eu tive sorte, como muitas não têm. Ninguém se afastou.

Quem é da minha geração é um pouco mais retraída. Hoje, a gente vê os jovens andando de mãos dadas nas ruas. Acho que são mais livres para expor as relações. Antes, a gente tinha aquilo de ser mais discreta. Por ser negra e lésbica, vivencio uma sobreposição de preconceitos, em várias camadas. Ainda mais porque estamos vivendo tempos em que as pessoas estão se sentindo mais à vontade para serem preconceituosas, racistas.

Depois de um tempo, começamos a pensar em construir nossa família. Tínhamos união estável. Quando decidimos adotar, percebemos que seria mais fácil se tivéssemos os papéis do casamento civil. Fizemos uma celebração simples, com alguns amigos, em 2014. Em 2015, fomos atrás da adoção. E, em nove meses, Miguel e Francisco, gêmeos, então com sete meses, estavam no nosso colo.

Meus filhos, além de negros, ainda são adotados e têm duas mães. Hoje, eles têm 4 anos e meio e estão começando na vida escolar. Já teve aquilo de ter que fazer lembrancinha do Dia dos Pais...E já aconteceu de irem a um parquinho e as crianças não quererem brincar com eles pelo fato de serem negros. Nesses momentos, a gente contorna de outras formas porque eles ainda são pequenos, ainda não têm noção".

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"Sua sapatão, vai lavar louça"

Fernanda Machado diz ter sorte. Aos 38, faz força para lembrar os episódios de intolerância que sofreu. Da família e dos amigos, só teve acolhimento. Quem enche o saco, atualmente, é a vizinha, que insiste em varrer o lixo para a frente do portão da casa em que Fernanda mora com a mulher. Ela é secretária da Liga de Futebol de Florianópolis (SC), onde nasceu e mora ainda hoje:

"A única vez em que conversei com meus pais sobre minha sexualidade foi num dia qualquer, dentro do carro. Eu estava sentada no banco de trás. Meu pai me encarou pelo retrovisor e disse: 'E tu, minha filha, gosta de homem ou de mulher?'. Eu, olhando nos olhos dele pelo espelhinho, respondi: 'Pai, por enquanto acho que dos dois'. Ele e minha mãe se olharam e o assunto acabou ali.

A mãe da minha companheira, que é idosa, tinha preconceito. Morou 12 anos na nossa casa e esse período foi bem difícil. Até fiquei em dúvida sobre ter filhos porque a velhice é uma incógnita, quem vai cuidar de mim? Daí, já estou procurando asilos legais.

Apesar do carinho da minha família, vivi episódios chatos. O que mais me machucou foi a agressão verbal de um torcedor num jogo de futebol. Eu ganhava uma renda extra anotando tudo sobre o jogo. O torcedor se enfezou com o árbitro e me xingou de tudo. 'Sua sapatão, vai lavar a louça, aqui não é lugar de mulher'. Todo mundo ouviu. Abri mão da grana. Fiquei com medo de passar por isso de novo.

Uma vez, quase atropelei uma senhora que caminhava com cinco poodles sem coleira. Pedi que ela tivesse cuidado, já que amo cachorros. Pra quê, menina. Ela me xingou de sapatão e mais um monte de coisa. Eu fiquei com tanta raiva que arranquei meu tênis número 42 e gritei: 'Vou te mostrar o que é um sapatão'.

Eu e minha companheira nos conhecemos num inferninho. Temos três cachorros e três gatos. Não pensamos em ter dependentes humanos. O único problema é uma vizinha preconceituosa que já mandou a gente procurar um macho. Nem ligo. A gente é feliz demais".

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"Quando os filhos saem do armário, os pais entram"

O primeiro amor da atriz e designer carioca Letícia Lobo, de 24 anos, chegou aos 14. Era uma colega do curso de teatro. Ela conta detalhes da angústia ao tentar entender que estava apaixonada por uma mulher. Para a mãe de Letícia, também não foi nada fácil:

"Desde pequena, nunca gostei de meninos. Só que, como todas as meninas gostavam, eu escolhia um para gostar também. Gostava de beijar, mas não da companhia deles. Nunca questionei isso até, no teatro, conhecer uma menina. Ela tinha 16 anos, eu tinha 14. Foi meu primeiro amor.

Ela era mais experiente, já tinha ficado e transado com homens. Até que, enquanto ela me contava uma dessas histórias, falou que tinha ficado com uma menina. E aí eu pensei: 'Será que gosto dela?'.

Eu tinha um monte de amigos gays. Só que, quando me vi nessa situação, me assustei. Pedi que uns amigos me levassem a uma festa LGBT - se liga, eu tinha 14 anos. Lá, tinha um casal de mulheres se beijando e eu pedi para entrar no beijo. Me surpreendi com a maciez do beijo, com o cheiro, que é muito mais atraente. No ensaio seguinte, ia dizer à minha paixão o que sentia por ela, mas ela tomou a frente: 'Estou apaixonada por você', disse, enquanto voltávamos para casa, debaixo de chuva. Eu, medrosa, saí correndo.

Começamos a namorar. Ela viu um anel de compromisso que custava R$ 70, mas eu, adolescente, não tinha um real. Pedi para a minha mãe, que não entendeu nada: 'Ela é sua namorada agora?'. Gritei que sim e saí correndo. Minha mãe não reagiu bem, disse que eu queria chamar atenção. Quando os filhos saem do armário, os pais entram. Foi difícil para ela.

Meu namoro acabou porque minha ex teve medo de se assumir. Sofri muito, mas tirei coisas boas disso: me apaixonei de novo, e minha relação com a minha mãe, hoje, é maravilhosa. Ela não só aceita como quer que minha namorada participe da família. Ela não tem mais vergonha de mim."

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"Não vamos voltar para o armário"

No site que reúne todos os detalhes do casamento de Rafaella Ferreira, 29, uma frase anuncia o tipo de união que está por vir: "Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale amar". A empresária e a médica Tainá Bertolini Coutinho, 28, de Cuiabá (MT), vão celebrar o amor e a diversidade em uma festa intimista em novembro:

"O nosso casamento também é um ato político. A gente vive um tempo de polarização, em que ascenderam a homofobia, o racismo, a intolerância racial. Só que as pessoas achavam que a gente ia voltar para o armário, e não é bem assim. Não vamos voltar.
Nós duas vamos de vestido de noiva, com véu, e os padrinhos com detalhes na roupa nas cores da bandeira LGBT. A Tainá vai cantar samba, e os amigos e a família vão estar lá para dividir a felicidade com a gente.

Quando me assumi, minha mãe me acolheu, mas me alertou: 'Vão tentar te definir apenas por isso'. Mas não correspondo ao estereótipo lésbico. Com Tainá, é mais surpreendente ainda: ela é muito princesinha, usa batom, vestido. Mas faz questão de dizer que é lésbica, ainda mais na profissão dela, que é muito homofóbica.

Apesar de eu fazer parte de uma minoria, sou privilegiada, por conta da minha classe social. Então, não nos vemos tão marginalizadas como, infelizmente, nosso grupo é".

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