A bruxa pornô

Maior cineasta erótica do mundo, a sueca Erika Lust diz como tem filmado na pandemia e com faturamento recorde

Camila Brandalise De Universa, em São Paulo Monica Figueras/Divulgação

"Há uma grande revolução sexual feminina em curso"

Ainda que em nosso imaginário infantil as bruxas sejam lembradas como figuras com aparência medonha, a história mostra o contrário. Muitas das mulheres queimadas em fogueiras durante a Idade Média eram jovens, solteiras ou viúvas, donas da própria sexualidade e que provocavam medo nos homens — ou um tesão inexplicável que, para eles, só poderia ser bruxaria.

"Eu sou uma bruxa", diz a sueca Erika Lust, 44, por videochamada a Universa, do apartamento onde vive em Barcelona. Dona de um império que leva seu nome, com quatro plataformas de streaming e assinantes ao redor do mundo (inclusive no Brasil), a cineasta revolucionou a indústria de filmes pornô justamente ao escancarar, sem medo de julgamentos, essa sexualidade feminina que até hoje provoca medo nos homens. Ela não vai para a fogueira.

Em vez de representar os delírios de desejo masculinos, como no pornô tradicional em que a mulher é apenas um acessório para que eles gozem, o olhar de Lust é direcionado ao prazer e à satisfação das personagens femininas. A ideia, diz, é mudar o discurso generalista sobre sexo, incitar as mulheres a explorar a própria libido e a não se ver como ferramenta à mercê do prazer do homem. "Há uma grande revolução sexual feminina em curso", afirma a diretora, que trocou seu sobrenome sueco Hallqvist, pelo artístico Lust (luxúria, em português).

Ao longo de 16 anos, suas produções também inovaram ao dar ao conteúdo pornográfico uma linguagem cinematográfica, com narrativa e qualidade estética de filmes "cult". Mas que não se restringem a um nicho de mercado: em 2020, com a pandemia, a ErikaLustFilms faturou R$ 40 milhões disponibilizando conteúdo adulto por meio de assinatura.

"Pornografia é mais do que entretenimento. É um discurso"

Na primeira vez em que viu um filme pornô, com uma amiga, aos 12 anos, a curiosidade de Lust deu lugar ao estranhamento. "Os personagens eram superagressivos uns com os outros", recorda. Aos 18, tentou de novo, com um namorado. "Fiquei excitada. Mas meu cérebro se perguntava por que tinha que ser daquele jeito." Conversando com amigos, percebeu que, para os homens, não havia problema. "Eles se serviam daquilo, se masturbavam, tinham uma boa experiência. Já minhas amigas tinham uma vivência parecida com a minha: havia algo esquisito."

Na faculdade, onde estudou ciências políticas e teoria de gênero, ela conheceu a obra da professora de cinema americana Linda Williams, que trata o pornô como um discurso sobre sexualidade e gênero.

É o homem que está no centro de tudo. As mulheres são mostradas como objetos belos ou canais para o prazer masculino, a função delas é agradá-los. Isso porque quem fazia pornô e faz, até hoje, são homens

Anos depois, em 2004, aos 27, Lust tinha que fazer um curta para um curso de cinema e começou a pensar em um filme erótico pela perspectiva feminina.

Seu primeiro trabalho, "The Good Girl" ("A Boa Menina", em tradução livre), rendeu um diploma, mas não interesse comercial.

Mostrei o filme para algumas empresas do ramo. Diziam: 'É ótimo, mas não há mercado para mulheres, elas não compram nada relacionado a sexo. Você as paga para fazer sexo com elas'. Desisti

Um ano depois, disponibilizou o curta em seu blog. Em algumas semanas, o filme acumulou dois milhões de downloads.

Monica Figueras/Divulgação Monica Figueras/Divulgação

"Pornô mainstream tem pouco a ver com a realidade"

"Até ali, a pornografia era uma visão muito estreita da sexualidade humana", diz Lust, que viu a carreira deslanchar após o primeiro filme, com prêmios e convites para festivais de cinema. "Muitos queriam uma representação mais igualitária de homens e mulheres, mais diversidade, corpos diferentes, outras etnias e faixas etárias. Queriam enredos, fotografia caprichada."

Para a diretora, apesar do pornô mainstream ser a principal referência sexual para a maioria das pessoas, ele tem pouco a ver com a realidade. Principalmente ao retratar a "performance" feminina ideal no sexo. "A maior parte do que existe nesses sites gratuitos envolve penetração intensa, mulheres gritando. 'Aaaah, aaaaah'. Isso é falso."

Lust também questiona o padrão heterossexual dos filmes. "Há uma ideia de que sempre é preciso ter um homem e uma mulher. Mas há muitas constelações. Tento mostrar em meus filmes o encontro de pessoas com identidades diferentes", diz.

Recentemente, estreamos um filme com um ator trans. Quanto mais pudermos incorporar a transexualidade em plataformas padrão, e não separá-la em vitrines específicas, mais as pessoas vão perceber que isso é uma parte do que significa ser humano. Aliás, homens costumam ser ainda mais empurrados para 'caixinhas' de sexualidade do que mulheres

Monica Figueras/Divulgação Monica Figueras/Divulgação

"Pandemia fez pessoas adaptarem sexualidade e consumir mais pornô"

Em 2020, a pandemia levou a ErikaLustFilms a registrar seu faturamento recorde. Foram cerca de R$ 40 milhões com assinaturas de streamings e acesso a conteúdo adulto. "A quarentena nos fez consumir mais pornografia. No nosso caso específico, vimos os assinantes passarem muito mais horas on-line", diz.

Um dos sucessos do ano passado é justamente um filme rodado à distância, "Sex and Love In The Time of Quarantine" ("Sexo e Amor Em Tempos de Quarentena", em tradução livre). O filme foi dirigido remotamente por Lust e gravado pelos próprios atores em suas casas, sob as orientações dela, de Barcelona, onde vive.

"As pessoas se identificaram com aquele momento do meu filme. Por exemplo, há um casal da Flórida que fala como teve que se trancar no quarto para transar porque tinha filhos e o cara de Nova York, adepto do poliamor, mas que não podia ver ninguém na quarentena — então só tinha a si próprio", conta. "Foi interessante ver como as pessoas tiveram que adaptar sua sexualidade à pandemia."

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"A sexualidade feminina é muito poderosa"

Submeter o desejo feminino à satisfação do homem é uma constante nos filmes adultos tradicionais, mas a premissa não é de hoje. A repressão da nossa sexualidade, para Lust, acompanha a história da humanidade.

Voltemos ao homem das cavernas, que ficava tenso ao ver a mulher sangrar e nem por isso morrer. Devíamos ter algo de mágico para que isso acontecesse. Ou então voltemos ao tempo em que mulheres eram queimadas como bruxas. Eles têm tido medo da gente há muito tempo. Nossa sexualidade é mesmo muito poderosa

Ainda que haja opressão, afirma, há também rebeldia. "Há uma grande revolução sexual em curso para as mulheres. Nos jovens de hoje, percebo muito mais autoconfiança e menos culpa", fala. "Vivemos em uma sociedade que nos representou de modo restrito e estamos percebendo isso. Recebo muitos e-mails de jovens dizendo que tentaram repetir, sem sucesso, o que assistiram nesses sites de compartilhamento de vídeos pornô."

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"Precisamos falar de pornografia com nossos filhos"

Mãe de uma garota de dez anos e outra de 13, Lust diz que as filhas sabem muito bem qual é o trabalho da mãe. Para ela, é "absolutamente necessário" falar de pornografia com os mais jovens.

Sei que, quando digo isso, as pessoas respondem: 'O que você está falando? Não quero conversar sobre pornografia com meus filhos'. Mas é preciso, da mesma forma como é preciso falar de sexo. O pornô deveria funcionar como entretenimento adulto, mas, como está disponível de graça nessas plataformas, está sendo usado como educação sexual, goste-se ou não

"Se você quer preparar seus filhos para a vida adulta, precisa tratar desse assunto, da mesma forma que fala sobre bebida, cigarro e drogas. Queria que os pais achassem formas de criticar. 'Ei, você viu aquilo? Eu assisto às vezes, mas não gosto do jeito como estão desrespeitando as mulheres. Não concordo com isso e quero que você saiba que é uma representação exagerada do sexo.'"

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"Única maneira de melhorar o pornô é com mais mulheres no controle"

Lust acumula elogios, prêmios, assinantes e críticas, inclusive de parte do movimento feminista que vê como opressão qualquer tentativa de se fazer pornô, mesmo que comandada por uma equipe majoritariamente de mulheres.

A oposição entre as pró-sexo e as antipornografia sempre existiu no feminismo. Não concordo com as críticas. Sendo mãe de duas meninas que estão crescendo, desejo a elas a melhor experiência sexual que puderem ter

Para ela, o reforço negativo que os filmes adultos dão à violência de gênero são um "espelho da nossa sociedade". "É problemático que tantas cenas disponíveis on-line mostrem situações agressivas, que dão pouca importância às mulheres submetidas à violência masculina. Mas, como ainda temos vergonha de falar de pornografia, essas práticas não são abertamente criticadas."

O problema seria parcialmente resolvido se, em vez de se oferecer vídeos gratuitos, todo o conteúdo adulto fosse pago. "Um jeito fácil de controlar isso é impor a barreira do pagamento, pedir um cartão de crédito", sugere. Porque acabar, não vai.

"É o que as pessoas querem assistir e sempre haverá formas de criar imagens ligadas à sexualidade. Antes de existirem câmeras, o sexo era retratado em desenhos. A única maneira de melhorar o pornô é mais e mais mulheres assumindo o seu controle e, assim, criar as imagens que nós queremos efetivamente assistir."

Monica Figueras/Divulgação Monica Figueras/Divulgação

Para conhecer Erika Lust

  • "The Good Girl"

    "A Boa Garota" foi o primeiro filme da diretora, feito em 2004, e brinca com o clichê do "entregador de pizza". A protagonista é uma mulher solteira e bem-sucedida que decide viver uma fantasia sexual

    Imagem: Divulgação
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  • "Sex & Love in the Time of Quarantine"

    Filmado remotamente em 2020, "Sexo e Amor em Tempos de Quarentena" retrata pessoas ao redor do mundo contando como se satisfazem sexualmente no isolamento

    Imagem: Divulgação
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  • "Three"

    Na série "Três", a diretora retrata a vida de um trio poliamoroso e traz para o pornô um tabu, a menstruação. Em uma das cenas, uma personagem aparece se tocando durante o seu período menstrual

    Imagem: Sabela Eiriz/Divulgação
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  • "Super Femmes"

    O filme "Superfêmeas" fez história no pornô porque as atrizes, entre elas uma trans, ganharam um prêmio europeu de melhor cena de sexo lésbico, que até então só indicava mulheres cisgênero

    Imagem: Divulgação
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