Maga maravilha, ê

Com 34 anos de carreira, Margareth Menezes fala de racismo no axé e diz que canta só o que a toca

Nathália Geraldo De Universa João Milet Meirelles/UOL

"Ivete, por que Margareth Menezes não é tão gigante quanto você?". A pergunta partiu da atriz Taís Araújo em uma live com Ivete Sangalo no início da pandemia, em que as duas falavam sobre a pouca representatividade negra em diferentes espaços no país. "É um absurdo. É uma determinação totalmente intencional", respondeu Ivete, dando a entender que a questão racial também está presente no axé music.

Para Margareth, 58, precursora do movimento musical e uma das principais artistas do país, é o racismo estrutural que faz com que ela não tenha o mesmo apelo comercial e a visibilidade de suas colegas Ivete, Daniela Mercury e Claudia Leitte. "Está descrito no próprio sistema, né? Não vamos omitir os talentos individuais, com certeza alguma coisa especial elas têm para serem artistas", diz ela por videochamada a Universa, de sua casa em Salvador (BA).

Em fevereiro, enquanto algumas dessas cantoras já tinham patrocínio garantido para fazer lives no período que, se não fosse pela pandemia, seria de Carnaval nas ruas, Margareth não havia conseguido apoio. Foi apenas na Quarta-Feira de Cinzas que Maga, como os mais próximos a chamam desde pequena, fechou uma parceria com o canal Multishow para apresentar o "Baile da Maga".

A Bahia é um lugar de muito racismo estrutural, muito mesmo, dos blocos de Carnaval, dos grandes empresários. Os da indústria do axé music são todos brancos e sempre privilegiaram esse lugar, infelizmente. Então, até os grandes blocos afros daqui, o Olodum, Ilê Aiyê, têm dificuldade para ter patrocínio. É como se não tivessem valor. Mas a música que faz sucesso, que tem a estética da Bahia, é a trazida pelo povo negro daqui

Em 34 anos de carreira, Margareth acumula 23 turnês internacionais e quatro indicações ao Grammy. Em 2004, foi chamada de a "Aretha Franklin brasileira" pelo jornal Los Angeles Times — ela, no entanto, prefere reverenciar as artistas que fizeram com que "entendesse" seu lugar no mundo, como Ângela Maria, Clara Nunes e Zezé Motta.

Hoje, com tantos anos de estrada, diz que tem uma regra: só canta o que lhe toca o coração. "Com 34 anos de carreira, tenho essa chancela; o que não significa uma limitação. Mas, se não mexer no meu coração, fica difícil eu repetir."

João Milet Meirelles/UOL

"Minha mãe arrancou as cordas do violão para eu me dedicar à escola"

Mais velha entre cinco irmãos, ela conta que pediu um violão à mãe quando tinha três anos, por ver os tios e o avô materno tocando e por crescer acompanhando sambões, serestas e festas religiosas que agitavam as ruas do bairro de Boa Viagem, em Salvador. Mas, foi só com 15 anos, quando já cantava no coral da Congregação Mariana da Boa Viagem, que a artista ganhou o instrumento da mãe, dona Diva.

O violão era tão seu parceiro que a fez esquecer dos estudos: repetiu duas vezes o ano escolar. Dona Diva precisou arrancar as cordas do violão para que Margareth dedicasse atenção também aos cadernos. Apesar do episódio, que conta dando risadas, foi a mãe, morta em 2018, quem mais incentivou Maga para a arte. O pai, Adelicio, falecido em 2009, também teve sua parcela de influência: foi ele quem comprou uma vitrolinha para a família ouvir todo dia Clara Nunes, Alcione, Martinho da Vila, Luiz Gonzaga, Marinês, Dicró, Moreira da Silva e Trio Nordestino.

Na escola, Maga começou também a fazer teatro. "Até então, estudava para fazer direito. Mas, sabe de nada inocente", brinca. "E era bom porque era natural, não cantava com a ambição de ser cantora. Aí, já era. Já estava definido." E foi trabalhar no teatro amador da capital baiana.

Até que, em 1987, fez sua estreia na música e gravou "Faraó - Divindade do Egito", canção que há 34 anos é um dos hinos do Carnaval do Brasil e que lhe rendeu seu primeiro contrato com uma gravadora.

João Milet Meirelles/UOL João Milet Meirelles/UOL

"Por que se pode cantar sobre Deus, Jesus, e não falar de Xangô?"

Margareth é espírita, mas as referências em suas músicas a símbolos e rituais do candomblé evidenciam uma percepção mais ampla da espiritualidade. "Tenho uma coisa ecumênica na minha maneira de ser." Para ela, onde houver positividade e o coração for acolhido, há crença — o que também tem sido seu arrimo durante a pandemia.

Acredito nessa força espiritual de Jesus e acredito também nas forças espirituais da natureza, dos orixás. Onde me sentir bem, para mim ali tem um socorro

Por exaltar as crenças de matrizes africanas, no entanto, conta que já sofreu discriminação. "Uma vez, fui cantar na TV e estava com uma blusa com um orixá na frente. E não mostravam, só mostravam a minha cara. E teve outra situação em que não pude cantar a música 'Elegibô' [nome de referência a uma cidade nigeriana]. E isso é uma mistura muito grande na cabeça desse povo, porque as músicas com essa temática também são cultura", diz.

"Quantas músicas não falam 'Ai, meu Deus do céu', 'Ô, meu Jesus Cristo', 'Nossa Senhora, rogai por nós'? Por que não pode falar de Xangô? Graças a Deus, isso não impede o povo de cantar."

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"Não dou satisfação a ninguém, já tenho quase 60 anos"

Mesmo sendo acompanhada no Instagram por mais de 300 mil pessoas, Margareth não gosta de expor sua vida privada nas redes sociais. E diz que, se há cobranças sobre sua chegada aos 60, maternidade, relacionamentos — assuntos que frequentemente são motivo de pressão sobre as mulheres —, não está disposta a cumprir as expectativas das outras pessoas.

"Não vou prestar satisfação de coisas que não acho que devo", afirma. Por exemplo, o fato de não ter filhos. Ela conta que já tentou engravidar e agora tenta decidir se a adoção ainda está entre seus planos. "Ser mãe é uma coisa especial, amo as crianças, mas no meu caso foi diferente e não transformei isso em um peso para minha vida."

Ser uma mulher negra no país em que a beleza tem padrões europeus, voltados para brancos, deixou de ser algo que a coloca em situação de sofrimento, diz. Para isso, aposta na reafirmação de sua ancestralidade, de sua cor e de seus traços.

Busco a dignidade da minha origem. Quando penso que minha família vem de remanescentes de pessoas escravizadas e que estou como sobrevivente, isso me fortalece. Já sofri discriminação, tiveram coisas que me deixaram down, hoje, não mais.

Ela vibra com o fato de mulheres negras mais jovens, da atual geração, estarem se empoderando, por exemplo, mudando os cabelos —"cacheado, cacheadinho, cacheadão" — e dialogando mais abertamente com o feminismo negro. "Cheguei na geração errada, me identifico muito com o jeito dessa galera."

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Elas estão atrás do trio Margareth

Divulgação

Luedji Luna, cantora

"Ela é uma grande referência para mim como cantora, compositora, uma artista completa. E acredito que é também para outras cantoras negras. Pude cantar com ela no Carnaval e ali tive um dos maiores aprendizados da minha carreira, ao ver o domínio que ela tem do trio e do público. Vida longa a Margareth Menezes, uma das maiores que a gente tem!"

Reprodução/Instagram

Gaby Amarantos, cantora

"Mesmo sendo uma cantora do Pará, sempre consumi o axé, que amo. Ela é a rainha real, por sua representatividade em um estilo que é preto neste país. E ela me impacta e me atravessa com sua genialidade, porque é cantora e compositora. É uma potência no palco e tem a força dos ancestrais quando canta. Sou grata por tê-la como uma representatividade!"

Jonathan Estrella/Divulgação

Elisa Lucinda, cantora

"Ela é uma explosão, um choque e tem um coração poético. Sempre que estou diante de Margareth, parece que estou diante de uma tribo, de um povo, uma revolução. Ela nunca está só. Já a vi assim muito perto em um show e parecia que tinha um Olodum inteiro acompanhando, mas era só ela com sua força ancestral.

João Millet Meirelles/UOL João Millet Meirelles/UOL

"Não acredito que o Carnaval 2022 será na rua e jamais votarei em Bolsonaro"

Crítica à forma como o Governo Federal tem lidado com a pandemia de covid-19, Margareth não acha que o Carnaval de 2022 será nas ruas por não saber se a população toda já estará vacinada até lá. "Nosso trabalho é direto com público, é na aglomeração que a arte funciona. Para ter Carnaval, precisaria que o esforço da vacinação fosse muito maior, e isso a gente não está vendo. Nos Estados Unidos, quando mudou o presidente, eles começaram a ter mais de 1 milhão de pessoas vacinadas por dia. Aqui, há falta de pensamento no sentido da coletividade", diz.

A cantora, que apoiou abertamente a candidatura de Dilma Rousseff (PT) à Presidência da República, afirma que nas próximas eleições votará no candidato que for contra Bolsonaro.

"Jamais vou votar em alguém que propague a morte do povo brasileiro, o desmonte da educação, o desrespeito à ciência. Isso não é meu time", afirma. "Como pode um país onde vemos muita gente começar a passar fome enquanto uma parcela de pessoas fica mais rica ainda? O agronegócio pujante e o povo passando fome. Isso é uma vergonha."

João Milet Meirelles/UOL João Milet Meirelles/UOL

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