PPKare é o novo skincare

Depois da beleza, o lucrativo mercado do autocuidado mira no sexo como caminho para o bem-estar feminino

Júlia Flores De Universa Alessandra Levtchenko

Dor, falta de lubrificação, vergonha do corpo. De acordo com uma pesquisa realizada em 2016 pelo Prosex (Projeto de Sexualidade da Universidade de São Paulo), metade das brasileiras não chegam ao orgasmo quando transam. Pior: falar sobre sexo ainda é um estigma para muitas.

Algumas empreendedoras, no entanto, estão tentando romper preconceitos e trazer a discussão sobre sexualidade feminina para o centro do debate —e também do consumo. Cada vez mais, marcas de bem-estar sexual feminino se destacam no mercado brasileiro, reinventando produtos e a maneira como as mulheres enxergam o prazer. Esse movimento busca distanciar o sexo e a masturbação da vergonha e de tabus para lá de datados e aproximá-los mais dos conceitos de saúde, bem-estar e autoconhecimento. Ganhou o nome de "sexual wellness" —e o status de autocuidado.

A masturbação é um momento de autocuidado, afinal de contas você está fazendo amor com você mesma

Essa é uma ideia defendida por Clariana Leal, sócia da Climaxxx, loja online focada no prazer da mulher que, além de vibradores, vende cremes, velas e outros itens eróticos. Produtos com cuidado estético (prontos para sair no Instagram), pegada holística e até veganos. Distantes das sex shops e mais próximos do seu ritual de beleza. É assim que o mercado do sexual wellness tenta reposicionar os produtos eróticos: agora, como o skincare, o "ppkcare" quer fazer parte da sua rotina de cuidados diários.

Alessandra Levtchenko/UOL

"Pleasure gap": a taxa de desfalque nos orgasmos femininos

Se a pandemia freou a atividade de vários setores da economia, o mercado de produtos adultos acabou impulsionado pelo confinamento e pela consequente falta de dates da quarentena: no período de março a maio de 2020 —quando comparado a 2019— houve um aumento de 50% na venda de vibradores, de acordo com dados do portal Mercado Erótico.

A tendência vem estimulando o surgimento de novas marcas, como Lubs, Feel e Lilit. Algumas delas, inclusive, já ficaram sem produtos em estoque, mostrando que, pelo visto, o problema nunca foi a demanda, e sim a falta de oferta.

"Quando descobri o que era 'pleasure gap', passei a conversar mais sobre sexo com as mulheres que estavam à minha volta", diz Marília Ponte, que largou a carreira no terceiro setor para criar a Lilit, startup que integra essa nova onda e que comercializa apenas um produto, o bullet, um vibrador de clitóris.

"Pleasure gap" (lacuna de prazer) é uma expressão em inglês para falar sobre a diferença entre o quanto homens e mulheres gozam. Segundo uma pesquisa feita pela Indiana University, nos EUA, 39% das mulheres gozam regularmente durante a relação. Entre os homens, o índice é de 91%.

Antes de lançar a empresa, em plena pandemia, Marília fez uma pesquisa virtual com 3.000 mulheres e também chegou a números desalentadores sobre a tal lacuna de prazer: 30% das brasileiras não gozam.

"No começo, eu achava que o problema era a falta de ferramenta, no caso, de vibrador. Com o tempo, me dei conta de que era falta de informação."

Marília resolveu, então, apostar na venda de um produto "com conteúdo". No site e nas redes sociais da marca, além do vibrador, também é possível encontrar manuais com dicas, contos eróticos e textos que discutem a sexualidade feminina. "Essa é uma grande diferença entre o mercado tradicional do prazer e as empresas focadas em sexual wellness: nós queremos educar e acabar com a desinformação", diz a empresária.

Mulheres que querem dar prazer a outras mulheres

Assim como a Lilit, a maior parte das empresas de bem-estar sexual são criadas por mulheres e têm o prazer feminino como foco —uma revolução em comparação às velhas sex shops e ao tradicional mercado erótico, que costumam ter o homem como centro das atenções.

A Climaxxx surgiu em 2016 para tentar suprir essa lacuna. "Víamos sex shops convencionais, sem focar no prazer feminino, mas sim em 'enlouquecer o parceiro na cama'. Como se a mulher só buscasse satisfazer o homem, e não a si mesma", diz Clariana, sócia da empresa. A sede da Clímaxxx (assim como as outras marcas de sexual wellness desta reportagem) fica em São Paulo. Também é de São Paulo a maior parte do público atendida pelo e-commerce (50%), formado em sua maioria por mulheres (90%) com idades entre 25 e 35 anos.

Fundadora da Sophie Sensual Feelings, Chris Marcello também enxergou nessa falta de atenção à sexualidade feminina um possível nicho de atuação. "Vi no mundo erótico uma oportunidade de trazer um olhar diferente para a sexualidade, um olhar feminino. No Brasil, ainda temos uma visão muito masculina", diz a empresária que, em 2017, abriu mão de uma carreira tradicional em empresas de cosméticos para apostar no setor. Como explica Marília Pontes, da Lilit:

O que a nova geração de empreendedoras do sexual wellness quer fazer é um reposicionamento de marca do mercado erótico: queremos sentar na mesa de reunião junto com investidores e falar de negócios sem parecer algo vulgar nem desconfortável

Os planos de Marília têm tudo para se concretizar num futuro próximo. De acordo com uma pesquisa do Instituto Allied Market Research, a expectativa é que o mercado das sex techs (empresas que criam produtos tecnológicos voltados para o prazer feminino) alcance um faturamento global de US$ 108 bilhões em 2027.

Alessandra Levtchenko/UOL

Seria a sexualidade a última fronteira da beleza?

"Vejo no sexual wellness um mercado de mulheres investindo em mulheres que produzem produtos para mulheres", resume Marina Ratton, fundadora da Feel, que comercializa dois produtos, um lubrificante e um óleo para a região íntima.

"Hoje, no universo das startups, as empresas lideradas por mulheres não recebem nem 1% dos investimentos. É um absurdo", diz Marina. "Há uns anos, tivemos o boom do fitness, com o foco no corpo. Depois, tivemos o auge do skincare e a atenção se voltou para a pele. Agora, a última fronteira do bem-estar é a sexualidade. Se você faz ioga, tem uma vida saudável e passa um supercreme no rosto, não vai querer cuidar da sua intimidade?"

Para a sexóloga Andréia Paro, essa mudança na maneira de encarar a sexualidade já está acontecendo. "A sexualidade começa a ser vista de outra forma, como questão de saúde, algo mais naturalizado. Comprar um produto íntimo não é mais ir a um sex shop e escolher um vibrador: agora é adquirir um artigo de bem-estar", explica.

"A mulher sempre foi a principal compradora de produtos eróticos, mas antes esses acessórios eram uma forma de 'apimentar' a relação. Agora, os itens passaram a ser mais uma maneira de a mulher se dar prazer e se conhecer."

Chris Marcello, da Sophie, concorda com a sexóloga. "O autocuidado íntimo vem de uma reconstrução do papel da mulher na sociedade". Ainda assim, ela alerta para o risco de banalização do termo. "O mercado de cosméticos fez com que a palavra autocuidado começasse a ser vinculada ao corpo. Mas ela vai bem além disso: autocuidado é estar física e mentalmente saudável."

Clariana, da Climaxxx, destaca outro ponto positivo do prazer usado como forma de autocuidado:

Eu me masturbo quando tenho dor de cabeça, dor muscular. Prefiro me tocar a tomar um remédio porque sei que o orgasmo vai liberar serotonina, ocitocina, hormônios que trazem esse bem-estar

Para ela, masturbação é cuidado. "Começa com esse movimento de se olhar com carinho no espelho e de reconhecer a potência que o corpo tem", diz.

"Mal-comida, eu?"

No site da Climaxxx, é possível encontrar desde vibradores até velas, cremes e lubrificantes. A empresa também vende kits temáticos voltados para o prazer feminino e oferece consultoria sexual para clientes que desejam comprar um brinquedo erótico. A Sophie também oferece produtos como cremes excitantes, géis com sabor e sabonetes para as partes íntimas.

Para além de oferecer um arsenal de produtos voltados —até que enfim— para o prazer das mulheres, o mercado de sexual wellness, no Brasil e no mundo, também pode contribuir com a quebra de estereótipos e velhos preconceitos. "Antigamente, ouvíamos que a mulher solteira que ia ao sex shop era mal-amada, mal comida. Estamos em um processo de ressignificar o prazer", diz Clariana.

"A gente fala de poder feminino, mas a maior parte das mulheres não goza. Com tantas conquistas, deixamos a sexualidade de lado", diz Chris Marcello. "Ao criar uma marca com foco na mulher, vi uma oportunidade de negócio e a chance de defender uma causa."

Marina Ratton, criadora da Feel Lube, marca que comercializa cosméticos veganos para o autocuidado íntimo, pontua que as mulheres se acostumaram "a um sexo ruim, no tempo do homem" e que era preciso fazer algo em relação a isso. "Quando perguntamos qual seria o lubrificante ideal para solucionar esse problema, veio muito forte a questão estética. Talvez as mulheres não comprem lubrificantes de farmácias porque eles são feios e elas ficam com vergonha", diz.

Alessandra Levtchenko/UOL

Dildo de vidro e lubrificante sustentável

Além de uma mudança de comportamento, as marcas de sexual wellness querem causar uma transformação estética no mundo dos produtos eróticos. Tudo começa pelas embalagens, bem distantes daquelas caixas coloridas com fotos de gosto duvidoso, habitués das velhas sex shops.

"Quando começamos a Climaxxx, tínhamos dificuldade de encontrar coisas legais. As embalagens dos brinquedos eróticos estampavam fotos de pênis e mulheres peladas. Por que alguém compraria aquilo?", indaga Clariana.

Chris explica que as embalagens da Sophie fazem o estilo clean e minimalista. "Trouxemos códigos de cosméticos que as mulheres reconhecem como delas. Se você deixa do lado da cama, ninguém vai ter a curiosidade de saber o que é."

Consumidora de produtos eróticos há cerca de 15 anos, a empresária Alessandra Noberto elogia a transformação desse mercado.

Antigamente ir a sex shops era desconfortável, os produtos eram feios. Com esses novos produtos, eu me sinto à vontade

Além do visual, a composição dos produtos é também uma preocupação da Lubs, marca de lubrificantes, cremes e shots de bebida natural lançada pela empresária Chiara Sandri em 2020. "Nossas fórmulas são veganas e as embalagens são sustentáveis. Falamos que nossos produtos são de cuidado íntimo mesmo. Nosso lubrificante, por exemplo, é enriquecido com d-pantenol, um cicatrizante natural supereficiente", diz.

Outra nova pegada do mercado de sexual care é conectar o prazer feminino a práticas holísticas de autocuidado. Foi o que levou a empresária Tatiane Freitas a criar dildos de cristais para sua marca, Mitra. "Criei produtos para as mulheres explorarem o corpo todo, não um objeto que precisa ser introduzido em algum lugar", diz a designer. São sete modelos feitos com sete cristais diferentes. "Prefiro chamá-los de massageadores corporais. São objetos de descoberta, para sentir prazer além do lugar que te foi ensinado."

Demanda em alta, vibradores em falta

O estoque de produtos da Lubs, lançada em outubro de 2020, acabou em poucas semanas. "Estava muito difícil encontrar matéria-prima", justifica Chiara, sobre a falta de extratos naturais para a fabricação dos óleos. A falta de material —e não de demanda por produtos — é o principal impacto negativo da pandemia no setor. Mas a Lubs avisa que o estoque já foi reabastecido. Durante cerca de um mês, a Lilit também ficou sem produtos disponíveis.

Já Tatiane, da Mitra, revela enfrentar dificuldades para conseguir as pedras para a produção de seus massageadores, agora que a pandemia aumentou em 300% a demanda pelas peças. "Está difícil encontrar os cristais. Compro de mineradoras diferentes, mas a lapidação sou eu quem faço no Rio Grande do Sul", explica.

Alessandra Levtchenko/UOL

Papo de elite

Se os produtos de sexual wellness são desenvolvidos com design clean e moderno, ou seja, com enorme potencial instagramável, outra dificuldade que o setor encontra são as normas de publicidade de redes sociais. "As sex techs têm dificuldades em divulgar seus produtos em plataformas tradicionais de marketing, como as redes sociais. Por ser uma marca de vibrador, não consigo patrocinar nenhum post nem criar uma loja no Instagram", diz Marília, da Lilit. "O crescimento dessas marcas acaba sendo quase totalmente orgânico."

Contatado, o Instagram confirmou a Universa que "as diretrizes de comunidade do aplicativo não permitem anúncios que promovam a compra, venda ou utilização de produtos para adultos".

No boca a boca, os produtos ganham fama. Mas isso não significa que se tornem acessíveis. O preço de lubrificantes orgânicos, cremes naturais e brinquedos eróticos é alto (um creme da Lubs, por exemplo, pode custar R$ 99, um dildo de cristal chega a R$ 400) e não cabe no orçamento da maioria das brasileiras.

Como disseminar seus produtos pelos quartos de grande parte das mulheres é uma missão quase impossível, as marcas de sexual wellness buscam "furar a bolha social" disseminando conhecimento sobre bem-estar íntimo e quebrando tabus. Outra tarefa árdua em um país conservador como o Brasil.

"Falar de bem-estar sexual ainda é um papo elitizado. Muitas mulheres poderiam ser impactadas por essa conversa", diz Marília Pontes, da Lilit. "Todo mundo tem corpo, metade da população brasileira tem vulva e clitóris, as pessoas transam.

A gente trata um mercado grande como se fosse um assunto de nicho. E esse deveria ser um assunto de todos.

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