Nós, negros, estaremos lá

Rapper vítima de racismo em shopping, Stella Yeshua cria canal no Youtube e questiona: "Não aceito desculpas"

Helaine Martins Especial para Universa Mariana Pekin/UOL

"Sai, menina feia." Stella Yeshua ouviu essa frase de um segurança de um shopping de São Paulo enquanto passeava com a mãe e as primas e parou para ver uma vitrine. Ela tinha 7 anos. Foi a primeira cena de racismo de que a rapper, hoje com 33 anos, tem lembrança.

"Fui embora arrasada, mas não conseguia entender. Por que ele não me achava bonita? Por que tinha falado aquilo tão alto?", lembra. "Eu me calei e só contei para minha mãe quando já estávamos perto de casa. Ela ficou muito nervosa e me explicou que aquilo era racismo."

A partir dali, Stella e a irmã passaram a ter um treinamento diário dentro de casa para que se sentissem fortes o suficiente para lidarem com o racismo no dia a dia. "Minha mãe nos colocava em frente ao espelho e nos mandava repetir frases como 'meu cabelo é lindo', 'meu nariz é lindo', 'minha cor é linda'. Eu achava isso um saco porque eu só queria brincar. Enquanto as outras crianças tinham toda a tarde livre, eu tinha que reproduzir um mantra antirracismo", conta.

"Mas quando eu ia pra rua, os meninos riam de mim. Entrei em conflito. Pensava 'ué, porque eles estão falando que eu sou feia se minha mãe falou que eu sou bonita?'. Chegou um momento em que comecei a pensar que ela era uma mentirosa." A ficha só caiu quando Stella, já adolescente, percebeu que não importava o que fizesse, nunca agradava ninguém. Se o problema era a roupa, ela mudava o estilo. Se era o jeito de falar, ela se adequava. Se era o cabelo, ela alisava. Mas nada adiantava. "O problema estava na minha cor. Rompi com isso, não ia mais ficar vivendo para agradar os outros."

Mais de vinte anos depois, o orgulho de ser quem é não impediu a rapper de reviver o trauma da infância. Em 2016, durante um almoço com amigas no mesmo shopping, uma senhora branca tropeçou com a bandeja de comida. Stella correu para ajudar e perguntou se estava tudo bem. "Ela pegou no meu braço e respondeu 'eu não preciso da sua ajuda. Mas ali está sujo, você precisa limpar'", relembra. Depois de um breve silêncio, ela explicou que não trabalhava no local, mas que estava acostumada a ser confundida. "Não fez diferença eu não uniformizada ou com algum crachá. Ela olhou para a cor da minha pele e me viu como uma funcionária da limpeza. Na cabeça das pessoas que frequentam esse shopping, os negros só podem estar ali na condição de serventes."

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

Indignadas, Stella e as amigas Beatrice Oliveira, Carol Silvano e Samantha Cristina decidiram gravar um vídeo ali mesmo, no banheiro do shopping. Com bom humor e uma linguagem carregada de ironia, o quarteto encenou a situação e questionou: "se é negro, então tem que servir?". No fim, um aviso: "onde quer que você esteja, estaremos lá." O vídeo repercutiu e chegou ao primeiro milhão de visualizações no Facebook em poucos dias. "A galera se identificou com a forma com a qual lidamos com a situação porque não dá mais para apenas lamentar. Quando não se tem para onde correr, a única alternativa é revidar com ironia. As pessoas se acham no direito de fazer piada com quem eu sou e eu não tenho mais lágrima no corpo para chorar por causa disso", diz.

Usando o bordão Estaremos Lá, elas iniciaram um canal no Youtube, hoje com mais de 13 mil inscritos, para continuar a conversa sobre racismo. Do canal, nasceu mais um fruto: a criação de um coletivo que, como elas gostam de dizer, atua como uma ouvidoria online. "A gente recebe muitas mensagens, todos os dias, de pessoas negras e não-negras falando sobre racismo, suas vivências, suas dúvidas. Nós nos propomos a ouvir e a conversar sobre o assunto."

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Apesar de episódios de racismo como o do shopping serem completamente rotineiros para Stella, ela acredita que o racismo pode e deve ser tratado por meio da educação. Mas nem sempre ela está disponível, nem tudo dá para tolerar.

"O shopping, por exemplo, mandou uma nota com pedido de desculpas, mas eu ignorei. Eu aceitaria se tomassem uma atitude no sentido de mudança. A situação humilhante é muito dolorosa e mostra o quanto o racismo é naturalizado na sociedade. Ninguém nos confunde com juízas ou médicas. No Brasil, os racistas agem sem medo, livremente. Quando o caso se torna público, a ação é um pedido de desculpas e só. Eu não aceito. E o Estaremos Lá é o nosso grito de liberdade. O sistema te fala que nós, negros, não podemos ocupar esses espaços, mas nós refutamos: 'Podemos, sim. E estaremos lá'."

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