Em teu seio, ó liberdade

Questionando o ideal de seio empinado e simétrico, sutiã arranca seu bojo para mostrar que bonito todo peito é

Natália Eiras e Natália Guadagnucci De Universa e colaboração para Universa Naira Mattia/UOL

Quando a mulher se libertou dos espartilhos, na década de 1910, surgiram outros tipos de amarras, ainda que sutis, para o corpo feminino. Nos anos 20, quando a moda ganhou tons mais dinâmicos, a estética predominante era a da "garçonne", com cortes de cabelo curtíssimos e silhuetas soltas, personificada pela estilista francesa Coco Chanel. Na época, usava-se faixas amarradas para achatar o busto. É quando começa a ideia de que "o corpo é o próprio espartilho", como conta a historiadora Denise Bernuzzi de Sant'anna, em que seios bonitos poderiam ser "construídos" por meio de esportes ou ginástica. "Hoje, a gente faz isso com cirurgia plástica, com o silicone. É a mesma ideia de interiorizar uma estrutura."

No começo da década de 1930, o estilo garçonne saiu de moda e a silhueta feminina voltou a ser valorizada. Com a criação de tecidos elásticos, os sutiãs começaram a ficar mais confortáveis, ganhando também maior variedade de tamanhos e modelos. O boom da peça viria com os primeiros anúncios. "As revistas faziam propagandas de mulheres muito bonitas com o sutiã, que virou objeto de sedução", diz Sant'anna. "O primeiro sutiã, então, vira símbolo de passagem para uma mulher adulta, que perdeu a inocência. Havia uma vergonha, porque o sutiã mostra publicamente que você já é uma mulher, que sabe das coisas, que é uma presa dos homens e cobiçada por eles", completa.

Agora, ele simboliza a essência de uma nova época, em que a liberdade sobre o próprio corpo volta à cena e dá mais liberdade à diversidade dos seios de todas nós. Conforto, autoestima e aceitação podem ser encontrados com mais facilidade nas araras das lojas, em que peças conseguem vestir uma mulher que não quer mais atender apenas às demandas por seios empinados, redondos, simétricos, aquele do imaginário masculino.

"É um momento bem interessante de transformação dessa peça, que agora parece estar mais relacionada ao conforto do à forma de opressão ao corpo feminino. O corpo natural está em alta, portanto bojo endurecido, enchimento, ou outros artifícios ficaram para trás. É hora de modelos com faixas de expansão de tamanho", diz a analista cultural Carol Althaller.

Junto deste texto, Universa apresenta uma seleção de sutiãs sem bojo disponíveis no mercado brasileiro, com e sem aro de sustentação e em diversos materiais, para alimentar os seus desejos por peitos mais livres.

Seu sutiã representa quem você é?

Séculos de objetificação do corpo feminino tiveram grande impacto na autoestima das mulheres. O sutiã, então, tornou-se a ferramenta mais acessível e popular para atingir o ideal do seio redondo, simétrico, empinado e grande. A analista cultural Carol Althaller ressalta que o Brasil ocupa o segundo lugar do ranking mundial de cirurgia plástica por causa das mamoplastias -o aumento de seios é a cirurgia mais procurada pelas brasileiras. Carol ressalta que, a partir de 2010, a qualidade dos implantes passou a ser questionada e, de lá para cá, muita coisa mudou em relação à imagem da mulher, que se deparou com mudanças significativas nos padrões de beleza.

"Se eu não sou idêntica àquela mulher padronizada, a mulher da revista, do Photoshop, e não tenho um seio perfeito, eu não sou adequada, meu corpo está errado. Não é à toa que as mulheres que perderam o seio têm dificuldade em entender, aceitar e amar esse novo corpo", complementa a psicóloga Andressa Crema. Pensando nisso, em outubro de 2018, a loja de departamentos Marisa lançou o "sutiã do recomeço", para mulheres mastectomizadas. Com foco na autoestima das mulheres que já enfrentaram o câncer de mama, o produto foi feito sem aro, com tecido 100% algodão e um compartimento interno para a prótese móvel, em uma parceria com a Sociedade Brasileira de Mastologia.

Mas por que mesmo agora, quando a necessidade do sutiã está sendo questionada, a peça ainda é associada à autoestima? Para a consultora de tendências Sofia Martellini, o sutiã está sendo pensado também como uma peça de prazer para si ou de empoderamento, que não busca necessariamente satisfazer o fetiche sexual masculino. "É usar para si mesma, para se sentir sexy, se fortalecendo nisso e não pedindo desculpas por isso." É a beleza das possibilidades: "Se a mulher quer usar uma calcinha bege ou um sutiã básico ela pode, e não vai se sentir menos mulher ou sexy por isso. Tem também o lado da mulher que quer ser supersensual, e nenhum dos dois é mais ou menos feminista. São só jeitos diferentes de encarar uma ideia", pondera.

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A gente não quer só ser sexy, a gente quer conforto

A busca pelo conforto tem dominado as tendências de moda mais significativas dos últimos anos: pense nos dad shoes, na mom jeans e nas inúmeras peças do universo esportivo que agora tomam as ruas e as passarelas - biker shorts, jaqueta corta-vento e por aí vai. Aos poucos, fica para trás a ideia de que o estilo precisa se sobrepor ao conforto como um pré-requisito para se estar bem vestido. Ambos, estilo e conforto, podem andar juntos.

A máxima agora se aplica também ao universo da lingerie, há até pouco tempo era tomado por peças quase inviáveis para o dia a dia. Para muitas mulheres, sutiã é ainda sinônimo de algo que aperta, pinica e incomoda -mas algo com o qual não se pode viver sem. Mas o cenário, salve, está mudando.

"Se as pessoas estão mais conectadas com o bem-estar, que tipo de peça representa isso? A peça com bojo acaba incomodando e aí a moda abre espaço para peças mais descomplicadas", diz a analista cultural Carol Althaller. "É um momento bem interessante de transformação dessa peça, que agora parece estar mais relacionada ao conforto do que como uma forma de opressão ao corpo feminino. O corpo natural está em alta, portanto bojo endurecido, enchimento, ou outros artifícios ficaram para trás. Agora é hora de modelos com faixas de expansão de tamanho."

De olho nas coleções das principais marcas de lingerie do país, uma das principais tendências é o sutiã sem bojo, em que se reduz a preocupação em esconder o bico do seio e se abre mão de modelar o peito feminino por meio de enchimentos ou estruturas costuradas ao longo do tecido.

Uma das primeiras marcas brasileiras a apostar no sutiã sem bojo, a Loungerie tem hoje o modelo como hit de vendas. "Nossa venda de sutiãs com bojo não diminuiu, mas há uma procura crescente por sutiãs sem bojo. O modelo é uma grande aposta da marca e temos diferentes versões: em renda com aro, em renda sem aro, em tule, tule com renda", conta Andrea Morales, diretora de produto da Loungerie. "Essa gama de opções foi desenvolvida para atender a atual busca das mulheres por mais bem-estar, liberdade e autenticidade em relação ao corpo, valorizando seus contornos reais."

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Conservadorismo e hiperssexualização

A santa e a pecadora, a amante, a fiel: os arquétipos de uma mulher que ou é comportada, recatada e submissa, ou permissiva, provocadora e erótica ainda dominam o imaginário coletivo. Muito pautadas pelas heranças culturais cristãs, essas imagens reforçam a dualidade que ainda rege valores e opiniões de grande parcela da sociedade. A mulher precisa estar sempre desejável, mas não sexy demais.

Quando há um estupro, um em cada três brasileiros acredita que a culpa é da mulher, segundo pesquisa do Datafolha de 2016. Para 30% dos homens, se a mulher veste roupas "provocativas", não pode reclamar caso seja estuprada. Nesse cenário, a fetichização dos seios aparece como mais uma ferramenta de controle masculino sobre o corpo feminino.

"O problema é que as pessoas que se compreendem conservadoras geralmente se dão ao direito de quebrar regras. Existe uma dupla moral sexual, em especial dirigida às mulheres. Quem cria as regras são homens e quem as obedece são mulheres, que não podem quebrá-las", comenta Oswaldo Rodrigues Jr., psicólogo do Instituto Paulista de Sexualidade.

Para a psicóloga Andressa Crema, é como se o corpo da mulher fosse de domínio público. "Há uma autorização para as pessoas falarem sobre o corpo feminino, se engordou, emagreceu, se a roupa está justa demais. Uma sensação muito forte de inadequação, de que o corpo é pecado, de que eu é que estou fazendo aquela pessoa ser desrespeitosa comigo. A mulher não pode amamentar na rua, mas pode aparecer de lingerie num outdoor. Não se pode nem publicar um mamilo no Instagram. Os dois lados são muito violentos contra a mulher."

O sutiã é uma faca de dois gumes. Foi criado como um símbolo de sedução feminina, de malícia. Ao mesmo tempo, ele é algo que afasta o corpo da roupa e dos outros, não deixa de ser um espartilho. Então ele é paradoxal, e talvez seja este seja o charme. Ele esconde, mas também é símbolo de prazer

Denise Bernuzzi de Sant?anna, historiadora e professora da PUC-SP

O fetiche masculino é uma prisão

De onde vem a conexão masculina com os seios? É biológica ou comportamental? "Existe, sim, uma associação dos seios ao primeiro contato com o amor da mãe, com a nutrição. Mas a ligação do homem com os seios é mais uma construção idealizada do corpo da mulher", responde a psicóloga Andressa Crema.

Essa relação, que ainda hoje exerce grande influência sobre o comportamento de homens e mulheres, vem de séculos. "A partir da aristocracia europeia, com os filhos sendo amamentados por outras mulheres, de castas sociais mais baixas, temos a valorização crescente das mamas enquanto objeto erótico. Os homens, então, pressupõem que as mulheres que estejam mostrando os seios, parcialmente ou inteiramente, tenham intenção de seduzir", completa o psicólogo Oswaldo Rodrigues Jr.

Nas últimas décadas, além de mudanças nos padrões estéticos, a própria relação da mulher com o sexo tem passado por transformações expressivas. "A sexualidade feminina foi renegada durante muitos anos. Recentemente é que isso tem sido questionado e estudado. Os seios, afinal, são uma zona erógena para uma mulher. Compreender essa área como fonte de prazer também feminina é algo novo", diz a psicóloga. "O movimento feminista mostra que somos sujeitos desejantes, e não objetos para satisfazer os homens."

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O novo sexy

A definição do que é sexy mudou? Talvez não. Mas ela definitivamente se expandiu. Não existe mais um só modelo, uma fórmula de alcançar o visual considerado sensual, erótico ou simplesmente atraente para o outro. Está aí, aliás, a verdadeira mudança: o foco deixa de estar no outro e passa a ser o próprio indivíduo. A mulher deixa de ser vista como objeto de prazer e passa a ser sujeito desejante.

Nada ilustra melhor esse cenário do que a trajetória da Victoria's Secret, marca gigante de lingerie dos EUA, conhecida pelo desfile anual que levava supermodelos à passarela vestindo calcinhas, sutiãs e asas de anjo. Apostando em um casting pouco diverso e em peças nada confortáveis, a marca agora soa ultrapassada. Tanto que este ano, pela primeira vez desde sua criação em 1995, o show foi cancelado.

Entra aí a Fenty, grife fundada por Rihanna, que caminha na direção oposta: em seu desfile de estreia, em setembro de 2018, o casting era plural. Bella e Gigi Hadid, que também desfilam para a Victoria's Secret, estavam lá, mas não eram, nem de longe, o padrão. Modelos e não-modelos, grávidas, gordas, altas e baixas cruzavam a passarela com uma atitude genuinamente confiante.

É o exemplo claro da ideia de se vestir para o outro versus se vestir para si. Mais do que isso, dialoga com a sensação que a mulher tem ao usar determinada peça de roupa, e não com a sua aparência. Especialmente em uma lingerie que foi criada tendo o homem em mente.

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Queimando sutiãs

Em 7 de setembro de 1968, 400 ativistas se reuniram em Atlantic City, nos EUA, para uma manifestação contra a exploração comercial das mulheres durante o concurso de beleza Miss America. Como forma de protesto, elementos considerados tipicamente femininos, como sutiãs, sapatos de salto alto, maquiagens e revistas femininas foram colocados no chão.

"O movimento contra o sutiã existe desde a década de 1960, mas estamos em um momento que nos leva a refletir sobre por que fazemos o que fazemos, seja por convicções feministas ou por questões de saúde. Não usar sutiã tem uma associação direta com o bem-estar e, para algumas mulheres, com o rompimento das regras impostas", explica Carol Althaller. "Existe um olhar mais enfático sobre o que eu realmente quero, o que eu realmente preciso e o que me fazem acreditar que seria o modelo a seguir."

A postura de romper padrões não é nova, mas agora parece estar ligada a uma busca por identidade, separando os desejos individuais daquilo que é socialmente esperado ou imposto. Para a historiadora e professora Denise Bernuzzi de Sant'anna, nos anos 60, o movimento estava atrelado a uma ideia de libertação social. Hoje, é algo mais individualizado. "É muito mais uma escolha pessoal, que tem a ver com uma nova concepção do que é ser mulher. Hoje, [o movimento] não está mais só na classe média estudantil, é maior. Na década de 1960, tratava-se de provar que ela era importante. Agora ela não só é importante como tem um roteiro próprio."

De olho no futuro

Hoje, as múltiplas possibilidades já estão aqui: sem aro, com aro, com ou sem bojo, de renda ou esportivo? No futuro, o que se espera é que a "opção" ocupe de vez o espaço da "obrigação". O movimento Free the nipple, que incentiva o abandono do sutiã, já existe há alguns anos e, de acordo com a analista cultural Carol Althaller, só tende a crescer.

"Tenho visto esse movimento nos Estados Unidos, França, Coreia do Sul. Inclusive com várias celebridades se tornando porta-vozes. Mulheres estão cada vez mais livres e estão desafiando os padrões de beleza, seja questionando depilação, uso de sutiã, de maquiagem ou de salto alto. Veremos mais e mais movimentos como esses ganhando espaço", diz Carol.

Para Sofia Martellini, a tendência é que a mulher, cada vez mais, escolha comprar algo porque quer, não para mostrar a alguém.

A mulher entende que a sensualidade e a sexualidade vêm muito da autoconfiança, então tem que se sentir bem em primeiro lugar. O sutiã pode até continuar atrelado a esse lado sexual, mas não só. É ser mais para a mulher do que para o homem

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