Minha trança, nossa história

Prática ancestral de trançar cabelos ganha ares modernos, cada vez mais adeptas e salão 'de luxo' em SP

Rute Pina De Universa, em São Paulo

Começo esta reportagem compartilhando uma experiência pessoal que faz parte de uma história coletiva, mais antiga do que eu.

Fiz alisamento pela primeira vez aos 9 anos. Seria a dama de honra do casamento do meu irmão, e o penteado que escolhi como referência não era para um cabelo crespo. Foi o primeiro de muitos. Diziam que os fios lisos eram mais maleáveis e fáceis de cuidar, então, acabei fazendo o mesmo que a maioria das meninas negras.

Mas o processo químico me incomodava. No ensino médio, tive uma aula em que a professora nos apresentou ao formol e falou dos riscos. Senti o cheiro da substância, fiz uma careta por causa do odor forte e me lembrei do produto que passava no cabelo.

Foi só em 2013, aos 20, que passei a usar o estilo "black power". Estava no auge de uma trajetória de identificação racial e reconhecimento como mulher negra.

Trançar o cabelo não é uma técnica nova, pelo contrário: resgata uma prática ancestral, que envolve também as relações de afeto entre mães, filhas, avós, amigas. É também um ato de resistência repassado de geração a geração e que —sorte a nossa!— vem sendo cada vez mais adotado.

Tem até salão de luxo em São Paulo especializado em trançar cabelos, e eu fui lá para conferir.

Taynara Alves (à esquerda) é uma das sócias do salão Ras. Ela se juntou à amiga Caroline Pinto para fundar o salão especializado em tranças

Taynara Alves (à esquerda) é uma das sócias do salão Ras. Ela se juntou à amiga Caroline Pinto para fundar o salão especializado em tranças

Meio milhão na conta

O Ras, localizado na Barra Funda, zona oeste de São Paulo, foi inaugurado há um ano. As sócias, Taynara Alves, 32, e Caroline Pinto, 31, levaram as tranças ao programa de TV "Shark Tank".

Na atração, empreendedores expõem ideias de negócio na esperança de que empresários bem-sucedidos invistam nelas. A dupla apresentou um projeto que criava um segmento de luxo para o serviço de tranças afro. Deu certo: as duas receberam R$ 500 mil de aporte.

Em novembro, a reportagem de Universa foi ao Ras para experimentar os serviços do salão, que promete um espaço de luxo a quem busca trançar o cabelo

Em novembro, a reportagem de Universa foi ao Ras para experimentar os serviços do salão, que promete um espaço de luxo a quem busca trançar o cabelo

Histórias trançadas

Taynara e Caroline também não fogem à regra das mulheres negras. As duas tiveram experiências difíceis com seus cabelos até passarem a aceitar os fios naturais e começarem a usar penteados e técnicas afro.

Bacharela em química, Taynara alisava o cabelo para se sentir aceita na escola. Antes de alisar para valer, usou materiais sintéticos que imitam fios lisos. Atualmente o mais usado é o jumbo, que é mais leve. Mas, na época, ela usava uma versão menos sofisticada, o kanekalon.

"Sempre gostei dos meus fios, mas cedi por questões sociais. Lembro muito da minha tia trançando meu cabelo com kanekalon, nos anos 1990, quando ainda era criança. Só que entrei na pré-adolescência e fiquei ainda mais tímida do que já era antes. Meus cabelos crespos ou trançados chamavam muita atenção. Então enchi o saco dos meus pais e eles acabaram cedendo aos meus pedidos de alisar", conta.

O procedimento, porém, não deu certo. Em dois anos, os fios começaram a quebrar, e Taynara não ficava mais contente com o resultado.

Sua parceira de negócios também fez alisamento na pré-adolescência. "Tenho muito cabelo, então tudo ficava mais complicado. Minha mãe trabalhava muito e não tinha tempo para cuidar do meu cabelo. E mesmo quando já tinha idade suficiente, levava uma vida corrida, acordava bem cedo para atravessar a cidade para chegar ao trabalho, não sobrava tempo. Alisar acabava sendo mais prático", conta.

Trançar o cabelo leva tempo: o procedimento pode durar até 12 horas, dependendo dos fios e da espessura escolhida

Trançar o cabelo leva tempo: o procedimento pode durar até 12 horas, dependendo dos fios e da espessura escolhida

Pretas empreendedoras

Carolina e Taynara se conheceram em uma festa de amigos em comum há mais de dez anos. Em 2015, se aproximaram mais e ficaram amigas justamente por compartilharem a experiência de serem, com frequência, as únicas mulheres negras nos ambientes corporativos em que trabalhavam.

"Sempre fui a primeira funcionária negra em todas as empresas em que trabalhei. Me sentia sozinha em minha posição, sobretudo nas de liderança. Tinha que lidar diariamente com microagressões ou situações desconfortáveis", diz Carolina.

As conversas rendiam ideias. Surgiu, então, a de montar um negócio próprio. Os planos saíram do papel quando, em julho de 2021, Carolina teve uma experiência ruim em um salão. "O serviço era muito ruim. Infelizmente, não era a primeira vez, mas decidi que seria a última", diz.

No mesmo dia, a advogada fez a proposta de sociedade para a amiga. "Topei na hora", diz Taynara, que já estava cansada do ambiente de trabalho racista e machista.

"Imaginamos o conceito de um salão sofisticado, que tem o diferencial de ter um atendimento ágil e espaço confortável", conta Carolina.

O Ras preza pela agilidade: nossa repórter terminou o procedimento em três horas, tempo menor que o usual

O Ras preza pela agilidade: nossa repórter terminou o procedimento em três horas, tempo menor que o usual

12 horas trançando

Fazer tranças é um procedimento que pode demorar muito. Dependendo da espessura e tamanho, chega a 12 horas. Por isso, as sócias do Ras prometem "conforto", "agilidade" e "luxo" ao vender o conceito do salão. Atualmente, a dupla conta com dez funcionárias, nove trancistas e uma recepcionista.

O salão atende, em média, oito pessoas por dia e, com o investimento do "Shark Tank", terá uma unidade em novo endereço. As sócias também vão criar, em breve, uma linha de produtos própria, como shampoo para a higienização do penteado. "É uma parceria com um laboratório e já está no forninho", contam.

O Ras fica no quinto andar de um prédio com dezenas de salas comerciais, dentistas a escritórios de contabilidade. Eu havia estado no endereço para uma consulta odontológica alguns meses antes de marcar uma hora para trançar o cabelo. Jamais imaginaria que, ali, havia um espaço de mulheres negras dedicado a mulheres negras.

A repórter de Universa, Rute Pina, trança os cabelos há dois anos e experimentou o procedimento depois de deixar de alisar os cabelos

A repórter de Universa, Rute Pina, trança os cabelos há dois anos e experimentou o procedimento depois de deixar de alisar os cabelos

Bom serviço e tempo recorde

Desde que aderi às tranças, em 2020, já fui atendida em lugares bastante diferentes. A primeira vez foi com a Esther, uma trancista nigeriana que atende na zona sul de São Paulo e fez o procedimento com uma técnica assustadoramente rápida: estava pronta em duas horas.

Experimentei também um salão especializado, no centro de São Paulo, que atende influenciadores e artistas negros famosos. Os donos prezam pelo aquilombamento, ou seja, uma comunhão de pessoas negras em torno da cultura afro. Ali, enquanto as trancistas trabalham, rola hip hop.

Só mais tarde tive a sorte de conhecer quem hoje chamo de "minha trancista", a Karen Rufino, que atende em casa e com quem quebrei a fidelidade para fazer esta reportagem.

O ambiente do Ras não é muito diferente de outros onde já estive. Luxuoso talvez não seja o melhor adjetivo. É um espaço pequeno, de 70 metros quadrados, mas aconchegante. Tem duas bancadas e, em cada uma delas, se encaixam duas poltronas para clientes. A conexão de wi-fi é boa e há tomadas suficientes para carregar todos os gadgets para trabalhar no local —isso, sim, uma diferença para os outros espaços.

Fui lá em novembro de 2022. Quem cuidou das minhas tranças foi Maria Laura Martins, 20. Ela, que mora no Tucuruvi, zona norte de São Paulo, nunca fez um curso de especialização —o que hoje já é mais comum na área. Aprendeu como a maioria das trancistas: sozinha, no seu próprio cabelo ou no de amigas e familiares.

O resultado das tranças no meu cabelo também foi parecido com outros que já fiz. Mas a agilidade foi um ponto forte: em três horas, Maria, que recebeu a ajuda de uma colega para acelerar o processo, finalizou o penteado. Normalmente levo mais de quatro horas.

"Às vezes, são oito mãos em uma cabeça, tudo para garantir agilidade", diz Maria.

Cliente faz uma "trança base": penteado é utilizado para esconder os fios naturais ao fazer extensões e alongamentos

Cliente faz uma "trança base": penteado é utilizado para esconder os fios naturais ao fazer extensões e alongamentos

Pela liberdade capilar

Em um ano à frente do Ras, Carolina conta que ficou surpresa com um dado: metade das clientes que procuram o salão são mulheres negras adultas que chegam para fazer tranças pela primeira vez. Na sua percepção, há um "boom" do penteado.

"Passamos por um período da obrigação de usar o cabelo natural. Também vivi isso. Mas mudar seu cabelo por opção sua ou mudar por uma imposição são coisas muito diferentes", analisa.

Essa percepção a ajudou a conhecer e aceitar o próprio cabelo e a conquistar o que chama de liberdade capilar, para ousar experimentar diferentes penteados e apliques. "Assim, brincamos com cores e texturas, como o trançado", diz a empresária.

Outro fator para essa alta procura pelas tranças está, é claro, relacionado a uma questão de identidade: há mais mulheres se reconhecendo como negras e resgatando, por isso, traços de sua ancestralidade. "A trança é um elemento muito negro. Talvez ainda mais do que o cabelo crespo ou cacheado", diz.

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