A unha tá OK

A unha-ostentação já foi símbolo de status na periferia, mas ganhou o asfalto e virou forma de expressão

Natália Eiras De Universa, em São Paulo Larissa Zaidan/UOL

"Hoje é dia de afiar as garrinhas". É isso o que passa pela cabeça da stylist Gabriela Rocha, 33, quando chega ao salão para fazer a manutenção do alongamento de acrílico que usa nas mãos. Ela passará as próximas três horas sentada em uma mesa de manicure para sair dali com unhas longas e com nail arts elaboradas. Para Gabriela, vale a pena. "Eu saio do salão me sentindo poderosa."

Thiaguinho MT canta, no hit "Tudo OK", que a melhor forma de uma mulher se vingar do ex-namorado é aparecer linda no bailão. Ele faz o checklist: "Cabelo ok, marquinha ok, sobrancelha ok, a unha tá ok." Faz sentido para as mulheres que começaram a usar garras em regiões da periferia. Elas usam as unhas compridas como uma forma de se impor. "É hoje que ele paga por todo mal que ele te fez", diz o hit.

Mais do que afronta e símbolo de feminilidade, as mãos dessas mulheres e de artistas do hip hop também se tornaram uma plataforma para se expressar. Elas levam nas unhas verdadeiras alegorias, com pingentes, piercings e aplicações. E não são apenas as cores e desenhos que querem passar mensagem. O formato e o comprimento também podem dizer muita coisa sobre si. Inclusive, quanto dinheiro você tem, já que o processo pode custar até R$ 600 em diversos salões do país.

Gabriela é apenas um exemplo de mulheres que transformaram a unha em um tipo de acessório, que complementa o look e retrata um estado de espírito. Se você já sentiu o movimento, percebeu que botar as garras de fora está deixando de ser algo "nichado", da periferia, e sendo adotado também pelas classes mais altas. Afinal, o alongamento extravagante se tornou um símbolo de status. Ter unhona é ter poder.

Botando as garras de fora

Nos anos 1980, Florence Griffith-Joyner, a Flo-Jo, chamava a atenção nas pistas de corrida, onde levou cinco medalhas em Jogos Olímpicos, e fora delas, por conta das unhas alongadas e coloridas. Ex-manicure, a esportista mantinha as garras para mostrar para os outros quem ela era e de onde ela tinha vindo.

Flo-Jo é uma das referências da modelo e empreendedora Stephani Maurício, 26, que tem uma marca de unhas postiças customizadas, a Flossy Mob. Moradora do bairro Tucuruvi, na zona norte de São Paulo, a jovem sempre gostou de fazer as próprias unhas, e hoje ostenta quatro centímetros de comprimento em garras. A influência veio da avó materna, que combinava a cor do esmalte com a roupa. "Um amigo diz que tenho uma doença, porque o tamanho das unhas só vem aumentando", ri.

Stephani cresceu na periferia de São Paulo, mas usa referências norte-americanas em seu trabalho. É que foi nos guetos dos EUA que as unhas decoradas e alongamento de acrílico se tornaram populares, nos anos 1970. "Para a mulher favelada, preta, periférica, a aparência sempre foi muito importante. Ela gosta de estar com a sobrancelha, a manicure em dia", afirma a empreendedora.

As unhas extravagantes, cheias de adorno, se tornaram um canal de escape. "Tem a ver com expressão. É um povo que não se vê na TV, na arte, então busca aparecer de outra forma: pela estética. Elas querem ser notadas", diz.

Mas já não é mais preciso ir tão longe para ver mulheres usando as unhas para mostram a que vieram. O unhão já está nos tapetes vermelhos e no Instagram de famosas. A diferença é que agora você respeita.

Me rendi às mãos de dondoca

Uma rolada na timeline de Kylie Jenner e pá, uma foto que é pura ostentação: a caçula da família Kardashian mostra a nail art da vez no volante de um carro de luxo. Ela tem tudo. Manicure impecável e um veículo de dar inveja. Uma mulher que usa as unhas longas é vista como mais feminina e privilegiada. É que é preciso fazer investimento para ostentá-las. De tempo e de dinheiro.

De posse dos dois -e para escrever essa matéria- fui até o salão Senhoritas.ars, de Roberta Munis, no bairro do Limão, em São Paulo. Fiquei cerca de cinco horas sentada na mesa da profissional. O processo de manicure começa parecido com o tradicional. Primeiro, a nail artist lixa a unha natural, faz a cutícula e coloca um líquido para tirar a oleosidade. Tudo para que a porcelana grude com eficiência. Moldes de papel laminados são colocados nas pontas dos dedos. O acrílico é, então, moldado com a ajuda de um pincel e muita paciência. Uma pinça ajuda a deixar o material com a curvatura natural da unha.

Quando o produto está seco, vem a parte mais trabalhosa: a manicure passa horas lixando, lixando e lixando as garras que agora são minhas, mas de material sintético. O esforço todo é para acertar o formato, a espessura da porcelana na unha e textura. Nesse processo, a mesa, as mãos e suas roupas ficam cheias de pó. Já a bunda, por sua vez, parece que perde o formato, a cadeira fica dura. A parte divertida do processo todo, que é pintar e fazer a nail art, representa apenas uma das quatro horas que gastei no salão.

Sai do salão com unhas do tamanho médio, transparentes, cheias de pedrarias. O alongamento durou perfeitamente 21 dias, tempo aconselhável para fazer a manutenção. Depois disso, as unhas dos indicadores começaram a se soltar, mas as pedras e outros adereços continuaram intactos até o dia de refazer o serviço, um mês depois.

Durante o mês que usei a nail art, minha mão fez muito sucesso. As pessoas comentavam toda vez que viam as minhas unhas. Fui abordada no ônibus, em lojas, em bares e até nos mercados de eletrônicos na avenida Paulista. "Achei que isso só tinha na China", falou uma vendedora com forte sotaque chinês. Os alongamentos viraram assunto até na rodinha de amigos que só falavam de futebol e política. Os sorrisos e elogios murchavam quando eu falava o valor do serviço. Minhas unhas eram uma joia preciosa, inclusive no valor desembolsado: o trabalho me custou R$ 380, mas o processo pode sair até por R$ 600 em diversos lugares. Ou seja, puro luxo.

Nas mãos da Kardashian, o acessório deixou de ser "do gueto" para ser descolado e atingir essa pequena fortuna. Um movimento muito comum na história da beleza, quando o serviço ganha visibilidade e o preço bomba, tornando inacessível o acesso a quem desfrutava dele antes.

"Não preciso fazer tarefa de casa"

O batom vermelho e o cabelo impecável já adiantam a que a empresária Patrícia Veneziano, 42, veio. Dona de uma produtora, ela não se importa que as pessoas achem que ela é uma dondoca. Esta é exatamente a impressão que quer passar com as unhas quadradas enormes, sempre pintadas de preto. "Quero que as vejam e percebam que não preciso fazer tarefas de casa", fala ela, que optou pelo visual há seis anos, depois de pirar ao ver a mão de uma mulher em um restaurante em Miami, nos EUA. "Unha grande não é moda, é um poder."

Porém, nem todo mundo que gosta dessa impressão. Gabriela Rocha é mãe de duas crianças pequenas. Troca fralda, faz comida e isso não impede que a manicure esteja em dia. "As pessoas acham que não faço mais nada da minha vida só porque quero me sentir bonita."

Na mão das famosas

O look existe desde os anos 1970, mas tem bombado no Instagram e no tapete vermelho

Kylie Jenner

A caçula da família Kardashian gosta de usar as unhas compridas no formato quadrado e em cores nudes. Ela mostra suas nail arts em seu Instagram, junto com outras dicas de moda e beleza

Getty Images

Lizzo

A cantora combinou as unhas postiças com o badalado Versace branco no tapete vermelho do Grammy 2020. O look ficou luxuoso da cabeça às pontas dos dedos.

Rosalía

A cantora espanhola chamou atenção pelas músicas com pegada flamenca e pelas unhas postiças, que estão sempre em evidência.

Afrontosas, vocês são

"Mas como você faz faxina?". "Você não lava louça, não?". "Como é que você limpa a bunda?". Essas foram algumas perguntas que ouvi durante o mês que usei as unhas com pedrarias. E não foi uma vez. Foram várias.

Cozinhar, colocar bijuterias, digitar no computador e pegar o cartão na carteira realmente se tornaram tarefas árduas. Meu marido se tornou meus dedos e braço direito. Lancei mão de tutoriais de internet de como fazer coisas básicas, como pegar uma moeda no chão.

Chegou um momento em que desisti de colocar colares, me tornei uma grande adepta dos áudios de WhatsApp e do recurso de ditado para evitar a luta que era escrever com unhão. Isso, no entanto, não significava que deixei de fazer coisas básicas da minha vida como me limpar adequadamente, ok?

Esses questionamentos também irritam a nail artist Roberta Munis, 34, manicure de Patrícia e Gabriela. Ela é famosa por já ter feito as mãos de Anitta, Ludmilla e Bruna Marquezine. "As pessoas chegam a ser invasivas, falam coisas constrangedoras, só porque decidi usar uma unha maior do que o convencional. Isso mostra como sempre vão tentar controlar o nosso visual", diz a profissional.

Quando o assunto unha surge, muita gente pode pensar que é pura futilidade. Conversa "de mulherzinha". Não para quem usa as mãos para se expressar. Para elas, um alongamento trabalhado, extravagante, também serve para afrontar. "Como nos vestimos, a forma das nossas unhas, falam muito mais sobre nós do que pensamos. Cada um se expressa como pode", diz Patrícia.

Como profissional, Roberta vê as unhas como telas em branco onde ela faz sua arte. O estranhamento surge, conta a profissional, porque as garras alongadas fogem do padrão. "O que uma mulher faz e foge do que se espera dela causa um desconforto, por isso é uma maneira de afrontar a sociedade que quer ficar te reprimindo."

Nail arts que estão em alta

Com pedrarias

As nail arts com aplicação de cristais e contas têm inspiração coreana e transforma a sua unha em uma verdadeira joia preciosa.

Encapsulada

A técnica inclui glitter e outros adereços no processo de construção do alongamento. Assim, os enfeites ficam encapsulados na unha, dando um efeito translúcido.

Cromado

Um pó metálico dá o efeito cromado ao alongamento. As cores podem ser diversas, mas a mais popular é o rosé.

O poder do unhão vira um vício

De fato, unhas compridas se tornam um vício. Não consigo parar de olhar para as minhas próprias mãos —fiz isso ao longo de toda a confecção dessa matéria. Gosto de vê-las nas fotos, já que meus gestos parecem mais graciosos, elegantes.

Roberta diz que não é psicóloga, mas que a mesinha onde ela passa horas fazendo alongamentos é um espaço de autoconhecimento para a cliente. "Para escolher um formato de unha, uma cor de esmalte, uma nail art, você precisa entender em que momento de vida está", fala a profissional.

A visita mensal ao salão pode se tornar uma viagem ao seu mundo interior. Gabriela, por exemplo, costuma combinar a nail art da vez com seu estado de espírito. "Ela sempre representa quem eu sou, mas passo por momentos diferentes. Tem fases que eu quero a unha maior, às vezes eu quero ela mais curta. Quando vou a um evento muito bafo, eu quero uma unha que chame mais atenção." Atualmente, ela anda "basiquinha". "Estou em uma fase mais minimalista, porque estou sem tempo e precisava de algo que combinasse com tudo o que vestisse."

É comum ouvir de uma cliente que tenha acabado de fazer a mão no salão de Roberta: "Nossa, finalmente voltei a me sentir eu mesma". O tempo na manicure é, ainda, uma forma de entrar em contato com seu feminino. "Mexe muito com a nossa autoestima, com a sensação de poder que temos", fala Gabriela. Stephani concorda. "Quando faço a unha, a minha vida fica resolvida." Já estou, inclusive, planejando a próxima nail art para meu horário no salão.

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