Mulheres ao ar

Dublês ganham visibilidade com novela sobre o tema e contam rotina de treinos intensos, lesões e adrenalina

Denise Meira do Amaral Colaboração para Universa, em São Paulo

Vestidas de preto da cabeça aos pés, elas costumam causar alvoroço no elenco tão logo chegam aos estúdios de filmagem. Se tem dublê no set, é sinal de cena perigosa à vista: explosão, briga, atropelamento, tiroteio, acidente de carro, rolamento de escada, afogamento ou queda de cavalo.

Embora apareçam por apenas alguns segundos —um rápido jogo de câmeras não deixa o público identificar quais cenas foram feitas pela atriz e quais foram realizadas pela dublê—, a preparação para o ofício é bastante árdua. E o reconhecimento também.

Durante muito tempo, eram homens caracterizados de mulheres que serviam de dublês para as atrizes em novelas e filmes. Somente no final da década de 1980, as dublês entraram nesse mercado, ainda que de maneira tímida. "Havia preconceito, achavam que a mulher não seria capaz de fazer uma cena de ação. Mas estamos aqui para provar o contrário. Somos mais cautelosas, calculamos melhor os movimentos e nos machucamos menos", compara Roberta Felipe, dublê de Paolla Oliveira na novela "Cara e Coragem", da TV Globo. Aos 37 anos, ela está no ramo há 17.

Na trama das 19h, Paolla Oliveira interpreta a dublê Pat, parceira de profissão de Moa, personagem de Marcelo Serrado. Como a adrenalina é o mote central da novela, em meio a cenas de saltos e rapel, a profissão ganhou evidência na vida real. "Antes da novela, as pessoas só se interessavam em saber como era tal ator ou tal atriz nos bastidores. Agora querem entender como é o meu trabalho de fato", revela Gisele Oliveira, 36 anos, dublê especialista em cenas com cavalos.

'Mulher só podia rolar escada'

Denise Naschpitz Só, 58 anos, primeira dublê mulher a trabalhar em cenas de ação na história da TV no Brasil, conta que no início da carreira a categoria era muito desvalorizada. "Na hierarquia do set, éramos os últimos a comer. Um pouco como os figurantes ainda são tratados hoje em dia, infelizmente. Mas, com os anos, fomos ganhando posições, e as produções aprenderam a respeitar nosso trabalho", diz. Deca, como é conhecida no meio, já dublou quase todas as atrizes em cenas de ação —de Aracy Balabanian a Deborah Secco. Depois de décadas de trabalho na Globo, atualmente está na Record.

Por ser um universo historicamente masculino, ainda existe machismo. Roberta lembra uma ocasião em que um homem disse que ela nunca tinha se machucado ao fazer cenas de cavalo por "sorte". Em outra, chamada para pilotar um carro que se chocava contra uma vitrine, foi desdenhada pelo funcionário da concessionária. "Ele falou: 'Mas é você que vai fazer a cena? Não vai ser um homem?' Eu não só fiz como acertei de primeira. Todo mundo aplaudiu. Fiz questão de entregar a chave na mão dele", orgulha-se.

No ramo desde a década de 1980, Denise também revela que já foi impedida de dirigir um carro por um ator famoso. Os roteiros das tramas também não favoreciam as dublês mulheres. "As atrizes não tinham muita cena de ação. Por muito tempo, o máximo permitido era que elas rolassem escada. Só hoje o leque está se abrindo", conta.

Não à toa, seu primeiro trabalho, aos 20 anos, foi como dublê de um ator homem na série "Armação Ilimitada", sucesso da Globo nos anos 1980. Gisele Oliveira conta que era muito comum chegar ao set e ouvir piadas do tipo: "É você mesmo que vai fazer essa cena? Desse tamanho? E ainda mulher?". "Felizmente, de uns anos para cá, as pessoas começaram a nos respeitar mais."

Acrobacia, parkour e arte marcial

Filipe Dias, fundador da Impacto Dublês, maior agência de dublês do Brasil, conta que o número de alunas vem crescendo —ainda que de forma tímida. Dos 50 profissionais agenciados por ele, sete são mulheres. "Antes, elas só faziam papéis de mocinhas. Agora, elas estão não só presentes em filmes de ação, como são as protagonistas. Isso tem feito o número de dublês mulheres crescer também", explica.

Além da paixão por aventura, para ser uma dublê de ação é preciso preencher requisitos específicos. De acordo com Renan Medeiros, da agência Ômega Action Design, se as cenas envolverem luta, rolar escadas ou cair de altura, a profissional precisa ter experiência em ao menos duas modalidades de artes marciais, nível intermediário de ginástica artística ou acrobacia e noções de parkour e natação. "Isso já garante à candidata um caminho mais curto para poder exercer a profissão com segurança. O controle emocional também é importante, já que estamos sempre sob algum nível de pressão. E disciplina é imprescindível."

Jéssica Tamochunas, 35 anos, que já foi dublê de Marina Ruy Barbosa, Dani Calabresa e Tatá Werneck, lembra que não basta ser atleta ou piloto para ter mérito na profissão. "O dublê precisa saber onde a câmera está, compreender o que deve ser escondido e o que deve ser mostrado. Uma vez contrataram um piloto de Fórmula 1 para fazer o próprio papel e não deu certo. O dublê sabe a hora de parar, de frear. O piloto não tem essa vivência", explica.

Cinco ovos e seis bifes por dia

Como o trabalho corporal é muito requisitado, as dublês encaram uma rotina intensa de treinos. Roberta faz musculação com personal, para proteger as articulações, e corre regularmente. Quando sobra tempo, pratica mergulho, rapel, rafting e luta MMA no Rio de Janeiro, onde mora. Para ensaiar as cenas de ação antes das gravações, ela conta com um centro de treinamento específico, da agência de dublês em que é contratada.

"Se vou fazer uma cena de atropelamento, por exemplo, treino de dois a três dias antes. Lá temos andaime para praticar saltos, ancoragem para fazer descidas de cordas, escada com rodinhas, camas de ar para as quedas, protótipos de carro e os equipamentos de proteção necessários", conta Roberta, antes de entrar em uma sessão de massoterapia para aliviar dores musculares, frutos da rotina de exercícios.

A alimentação também precisa ser moldada de acordo com o papel. Para ser dublê de Paolla Oliveira, Roberta aderiu a uma dieta rica em proteínas. "Como preciso ganhar massa muscular, já que a Pat é mais gostosona, estou comendo o triplo de proteínas. São dois ou três filés de carne ou de frango por refeição, além de cinco ovos ao longo do dia. Não aguento mais ovo", confessa.

Policial do Bope

Mesmo com a extensa preparação técnica, existe ainda uma série de artimanhas para que as cenas pareçam mais perigosas do que realmente são. No caso de gravações com carros em alta velocidade, uma rápida movimentação de câmera cria uma percepção de velocidade acima da realidade. O carro é ainda todo modificado por dentro para que os dublês não se machuquem. Além disso, eles sempre estão com um aparato de segurança invisível em cena, como o protetor de coluna e o cinto de segurança de cinco pontos.

"Em uma batida de carro, a impressão que se tem na TV é que estamos dirigindo muito rápido, quando a velocidade está no máximo 30 ou 40 km por hora", revela Gisele, que costuma ser confundida com uma policial do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) ao buscar os filhos no colégio com o uniforme preto da agência de dublês.

Já em cenas de rolagem de escada, os dublês estão geralmente aparados por joelheira, caneleira, cotoveleira e protetor de coluna por baixo do figurino, enrolados em plástico filme. Por isso, os atores costumam cair de escadas com calças e mangas compridas, para que os equipamentos não fiquem visíveis. Em cenas com fogo, é costume usar balaclavas, toucas que cobrem todo o rosto, tecidos antitérmicos e um gel específico que resfria a temperatura do corpo.

Não basta pular e correr

Apesar das dublês de ação apresentarem certa semelhança física com as atrizes com quem trabalham, o mérito é, em grande parte, do departamento de caracterização da TV ou do filme, que faz uso certeiro de maquiagem, perucas, etc. "Muita gente confunde a gente na gravação. Como estamos vestidas com o mesmo figurino, não sabem se sou eu ou a Paolla", diverte-se Roberta, que já foi dublê da atriz na novela "A Força do Querer" (2017). Ela também substituiu Débora Falabella, no mesmo folhetim; Adriana Esteves, como Carminha, em "Avenida Brasil" (2012); e Marina Ruy Barbosa, em "O Sétimo Guardião" (2018).

Em "Cara e Coragem", embora Taís Araújo não faça cenas de ação, ela tem uma dublê para chamar de sua. Greice Fontes, 23 anos, contracena com a atriz em muitos momentos já que sua personagem tem uma sósia idêntica na trama. "Faço muita cena de longe como se fosse a Taís, ou algumas mais próximas sem mostrar o rosto."

Moradora de Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, Greice tinha o sonho de trabalhar com a atriz. "Sempre me espelhei nela. E está sendo uma honra ainda maior ser dublê da Taís como uma grande empresária. A novela está sendo brilhante acima de tudo por trazer essa representatividade. Já não somos empregados ou escravizados. Estamos conquistando papéis melhores. Isso é maravilhoso para outras mulheres pretas como eu. Espero que esse espaço só cresça."

Coadjuvante, eu?

Diferentemente das protagonistas das novelas, o reconhecimento do trabalho dessas mulheres não vem a galope. Mas elas explicam a grande recompensa em ser dublê. "Vai ter hematoma, corte, braço quebrado... Não é uma rotina fácil. Mas quando as pessoas confundem e acham que o ator fez muito bem a cena, é porque realizei um bom trabalho. Se eu fosse atriz, seria apenas mais uma. Como dublê, sou uma das melhores", orgulha-se Denise, a mais antiga do Brasil.

"Tem gente que paga para pular de um bungee jump e para sentir a mesma adrenalina que eu quando sou atropelada por um ônibus. Eu ganho para isso. E assistir a uma cena em que me matei de treinar sendo adorada pelo público, mesmo que ninguém saiba que fui eu, é mágico", acredita Jéssica.

Já para Roberta, a grande magia da profissão é criar sonhos. "As novelas, as séries e os filmes exercem uma função catártica na vida das pessoas. Elas sonham com a história de amor e vibram com cenas de ação. Ajudar a produzir isso me faz um bem enorme. Não tem preço."

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