Denúncia sem sair de casa

A sociedade se movimenta para proteger as mulheres de um dos efeitos colaterais da Covid-19: a violência

Mariana Kotscho Colaboração para Universa Studio Oz

O aplicativo PenhaS funciona como um botão de pânico no celular - gratuito, permite acionar a rede de proteção da mulher vítima de violência doméstica em situações de emergência. No Facebook, além dos tradicionais grupos de apoio, o ISA.bot, atualizado durante a pandemia, permite acessar recursos para segurança online. No estado de São Paulo, a delegacia eletrônica já permite registrar boletins de ocorrência de violência doméstica pela internet.

Durante o isolamento, em que as agressões contra mulheres dentro de suas próprias casas se intensificaram, recursos como esses nunca se fizeram tão necessários. Ainda assim, diante de graves ameaças, a busca por proteção ainda acontece por meios tradicionais.

Na quinta-feira 16 de abril, durante a quarentena imposta como medida de controle da Covid-19, a advogada Gabriella Nicaretta deixou sua casa, em São Paulo. Disse ao marido que ia visitar os pais e, mesmo saindo sem nenhum de seus pertences, não voltou mais. O basta que ela finalmente teve coragem de dar a um relacionamento violento veio depois de um acesso de raiva do companheiro. Ele a agrediu e tentou enforcá-la com as mãos.

Gabriella tem 29 anos e uma filha de 8, de um relacionamento anterior. Por pouco ela não entrou para as assustadoras estatísticas de feminicídios do país. Há um ano e meio neste relacionamento, ela começou a sofrer violência em junho de 2019. Em meados de março, a convivência intensificou-se quando o marido passou a fazer home office, por causa do isolamento social.

Embora ele estivesse calmo nos primeiros dias, naquela quinta-feira, por causa de um "comentário bobo" de Gabriella, o parceiro se descontrolou. "Ele quebrou meu notebook com um tapa, me empurrou da cadeira e, por fim, tentou me enforcar", relata. "Dessa vez eu não pensei duas vezes: fui à delegacia da mulher e registrei a ocorrência."

Como a advogada, muitas mulheres estão confinadas agora, em tempos de isolamento social, na mesma casa que seus parceiros violentos. "A primeira coisa que pensei quando ouvi a notícia do isolamento social foi: e agora? Como ficarão as mulheres que estão em relacionamentos abusivos, o tempo todo confinadas com seus agressores?", afirma Maria da Penha Maia Fernandes, a mulher que batizou a lei emblemática no combate à violência de gênero.

"Eu mesma, que passei por um relacionamento abusivo, sei bem o que isso significa. Só me sentia segura e só tinha paz para conviver com minhas filhas quando o meu agressor saía para trabalhar. Era quando podíamos brincar, fazer barulho e nos sentir livres", diz ela.

"Sabemos que em países como a França, China, Estados Unidos, Itália e aqui no Brasil houve aumento no número de denúncias de violência doméstica. Para as mulheres os efeitos da quarentena estão sendo ainda mais pesados, especialmente pelos abusos e pela violência. Ficar em casa, que é o mais necessário neste momento, para muitas mulheres representa um verdadeiro tormento."

Por que isso acontece? Quantas mulheres estão em situação de vulnerabilidade com a pandemia? O que pode e o que de fato está sendo feito?

Ações que têm dado resultado

Em março de 2019, pela primeira vez uma mulher assumiu o comando da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo. Até então, Elza Paulina de Souza estava na coordenação do Programa Guardiã Maria da Penha, que existe desde 2014 e tem como objetivo fiscalizar o cumprimento das medidas protetivas para garantir a segurança das vítimas de violência doméstica no município de São Paulo.

"Durante a pandemia, o Programa Guardiã Maria da Penha continua desenvolvendo suas atividades, em especial da fiscalização de medida protetiva expedida pela Justiça, através de rondas", diz. Segundo ela, houve aumento em atendimentos como retirada de pertences, condução, apoio ao abrigo da vítima e condução do autor da agressão.

Além do programa, há no Brasil várias outras ações bem-sucedidas que estão em pleno funcionamento durante a pandemia. Um exemplo é a Casa da Mulher Brasileira de São Paulo. No mesmo endereço fica a 1ª Delegacia de Defesa da Mulher e outros serviços, como Defensoria Pública e Ministério Público — que conta com a ação de uma promotora experiente e combativa, Juliana Mendonça Gentil Tocunduva.

Ainda na Casa as vítimas encontram atendimento psicossocial, Guarda Civil Metropolitana e abrigo para acolhimento provisório (a Casa de Passagem). Essa concentração possibilita um atendimento global e integral da vítima, para evitar que ela volte para a situação de violência e agiliza os pedidos de medidas protetivas de urgência. Outras cidades do país contam com uma Casa da Mulher Brasileira — e todas estão funcionando na pandemia.

Ainda em São Paulo, a comunidade judaica mantém um programa de acolhimento à mulher vítima de violência doméstica. A iniciativa é da Federação Israelita do Estado e a coordenadora do grupo é Miriam Vasserman, que já constatou um aumento significativo de busca por ajuda durante a quarentena. Lá, a vítima — que é qualquer mulher em situação de violência, não apenas da comunidade judaica — recebe suporte com uma rede de profissionais como assistentes sociais, psicólogas, advogadas, psiquiatras e mediadores. O atendimento é sigiloso para garantir a segurança.

Virtualmente, o aplicativo PenhaS pode ser baixado gratuitamente e permite que a mulher cadastre pessoas que devem ser acionadas em casos de emergência. Ele funciona como um botão de pânico para a vítima pedir socorro.

Também online, promotora de Justiça Valéria Scarance desenvolveu uma cartilha, a Namoro Legal, voltada para o público jovem e com uma linguagem simples. É um mecanismo de prevenção, com informações sobre relacionamentos abusivos, que conta também com uma "amiga virtual", a Maia, que ajuda a esclarecer dúvidas sobre violência de gênero.

A organização Think Olga e o Mapa do Acolhimento criaram durante a pandemia uma atualização da ISA.bot com recursos para segurança online das mulheres. A bot — que pode ser acessada pelo Facebook e pelo Google Assistente — agora tem informações e ferramentas para mulheres em situação de violência doméstica. São dicas e orientações para mulheres que estejam passando por essa situação ou para pessoas que possam estar em condições de ajudar.

Também no Facebook, o grupo fechado "Grupo de Apoio - Violência Doméstica" existe desde 2016 e já atendeu 4 mil vítimas. Todos os dias entram mais mulheres colocando ali depoimentos assustadores e pedindo socorro. O grupo conta com voluntários como advogadas, psicólogas e outros profissionais que atendem os pedidos e os encaminham para os serviços públicos de apoio, dando o passo a passo — informações que a maioria não sabe sequer que existe.

Na mesma rede social, o Grupo Mulheres do Brasil, fundado pela empresária Luiza Trajano, tem uma série de comitês que atuam em várias áreas. O Comitê Maria Bonita é voltado para o combate à violência doméstica e trabalha com palestras educativas, orientação de profissionais em salões de beleza para reconhecer a violência e encaminhar as vítimas, atuação em delegacias da mulher para melhorar o atendimento, além de alertar para o acolhimento através de posts em redes sociais.

Quando ficar em casa não é seguro

"A pandemia não transforma homens pacíficos em homens violentos. Eles já eram violentos e reproduzem esse padrão", afirma a promotora Valéria Scarance, do Ministério Público de São Paulo, que é coordenadora do grupo de gênero do MP/SP. Há, segundo a promotora, quatro fatores de risco neste momento que fazem aumentar a violência: o isolamento, que gera uma tensão maior; a possibilidade de maior controle e de vigilância sobre a mulher; o consumo de bebida alcoólica, que cresce, e problemas financeiros.

Nota técnica divulgada pelo MP mostra que, no estado, em março, quando o isolamento social teve início, houve um aumento de 51% das prisões em flagrante em casos de violência doméstica e de 29% de solicitações de medidas protetivas em relação ao mês anterior. Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública também revelou um aumento de 44% de procura pela Polícia Militar em casos de violência contra a mulher.

Especialistas dizem que o momento atual traz consigo ainda um agravante: a sensação de impunidade que o agressor experimenta. Como a rede de apoio que poderia acolher a vítima, como parentes e amigos, não está tão disponível, o marido violento não se sente intimidado. Os números acima, divulgados pelo Ministério Público, provam isso. Mas também corroboram o alerta dos especialistas: é preciso denunciar.

Os números da pandemia mascaram a realidade

Órgãos internacionais como a ONU (Organização das Nações Unidas) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) vêm alertando que as agressões contra mulheres em casa estão aumentando durante a pandemia em praticamente todo o planeta. Por outro lado, alguns estados brasileiros divulgaram dados sobre crimes cometidos nesse período que mostram queda nos registros de ocorrência de violência doméstica.

O que explica isso? A resposta também vem sendo ventilada há algum tempo: as vítimas não têm como sair de casa para denunciar. Por isso canais virtuais são cada vez mais necessários. O governo não tem ainda dados nacionais atualizados (eles só saem no fim de maio), mas alguns registros estaduais ajudam a ilustrar o cenário.

Abuso psicológico: um tipo "invisível"de violência

A médica Lúcia, casada fazia 10 anos com um gerente de finanças, sofria agressões desde o começo do relacionamento. Eram sempre verbais: xingamentos e abuso psicológico. A violência psicológica, que também é contemplada na Lei Maria da Penha, é caracterizada por constantes ofensas, humilhações, ameaças, chantagens e perseguições — e desencadeiam stress pós-traumático, depressão e crises de pânico.

Lúcia, como grande parte das mulheres, não percebia aquilo como uma violência.

Há um mês, logo no início do isolamento social em São Paulo, ela saiu de casa com os dois filhos, três malas e três caixas. Deixou todo o resto para trás. "É resultado do machismo estrutural. A gente não percebe a agressão, acha que tem que ser tratada desse jeito e aceita", afirma.

Em seu caso, as violências que sofria desde sempre foram piorando com o passar do tempo, conforme a médica relata, com o aumento do ritmo de trabalho dela, na época em que fazia residência médica. "Nunca nada estava bom para ele. Eu de alguma forma não era adequada. Em uma época de problemas dele no trabalho, a questão da bebida se intensificou, assim como os ataques de raiva, os xingamentos a mim, a minhas amigas e família. Numa ocasião, ele jogou bebida em mim. Outras vezes me acordava gritando na madrugada ou não deixava eu dormir ou trabalhar — às vezes ficava ligando seguidamente enquanto eu estava de plantão."

A médica, também como grande parte das vítimas de abuso psicológico, acreditava que o agressor mudaria caso passasse por tratamento psiquiátrico. Mas, como nunca veio o tratamento nem a cura, ela finalmente tomou a decisão de se separar.

"Resolvi que iria me separar no começo deste ano. Me dá um intenso alívio ter saído antes de isso tudo [isolamento social] se intensificar. Devo tudo às minhas amigas, que foram meu sustento e minha força nos últimos meses. No começo, ninguém da família entende ou apoia, mas agora sinto eles mais do meu lado. Mas não tive coragem de contar nem 50% do que passei."

Pandemia de feminicídios

"Sempre achei que isso não me atingiria pela minha profissão, por ser instruída. Por lidar no dia a dia com mulheres em violência, acreditei que pudesse identificar qualquer perfil de agressor, mas não foi assim. Na quarentena as coisas ficaram muito intensas, e percebi que ele poderia um dia me matar."

A advogada Gabriella Nicaretta, que abre esta reportagem, decidiu que não queria entrar para a estatística dos feminicídios do país durante a quarentena — e pediu uma medida protetiva, que saiu na última quinta-feira de abril, e a encheu de coragem não apenas para revelar seu nome à reportagem, mas também para fazer postagens em suas redes sociais que alertam para esse tipo de crime.

Embora não haja números atualizados ainda, é possível supor que os casos de feminicídio devem aumentar muito no período de isolamento social. Apenas de 24 de março (início da quarentena em São Paulo) até 13 de abril, 16 mulheres foram assassinadas dentro de casa no estado, de acordo com o Ministério Público. No mesmo período de 2019, foram nove. Dados consolidados mostram que 66% dos feminicídios consumados ou tentados acontecem dentro da casa da vítima. E, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de cada dez vítimas de feminicídio no país, nove são mortas por parceiros ou ex.

"O silêncio da mulher é um dos maiores perigos que podem existir", afirma a promotora Valéria Scarance.

"Quando a violência acaba, a vida recomeça", diz Maria da Penha

Após sofrer dupla tentativa de feminicídio, das quais escapou paraplégica, Maria da Penha passou 19 anos buscando justiça. Em 2009, três anos depois da lei que leva seu nome, fundou o Instituto Maria da Penha, em Fortaleza. O objetivo é trabalhar, sobretudo, com a prevenção da violência doméstica. Cumprindo o isolamento social na sua casa em Fortaleza, ela concedeu a Universa esta entrevista exclusiva.

Com o isolamento necessário na pandemia, qual o papel dos vizinhos e parentes de mulheres? Ficar mais atentos a brigas e denunciar?
Sim. É imprescindível que a família, os amigos e vizinhos mantenham contato virtual com as mulheres, principalmente quando sabem que elas estão em isolamento social com seus agressores. Em caso de ouvir gritos e pedidos de socorro, deve-se chamar imediatamente a polícia.

Medidas protetivas realmente protegem? Como fazer com que sejam cumpridas?
Sim. Na grande maioria dos casos, as medidas protetivas protegem a vítima de algo muito pior. Existem as patrulhas Maria da Penha (ou Guardas Maria da Penha) que fazem o monitoramento das mulheres que estão sob medida protetivas e ainda o tornozelamento eletrônico para o agressor. Essas são iniciativas para ajudar na eficiência das medidas protetivas.

Algum recado para mulheres que estão ainda sofrendo uma situação de violência doméstica?
Denuncie. Procure um canal que mais se adeque às condições que esteja vivenciando e denuncie a violência que está sofrendo. Conte para uma amiga de sua confiança, para alguém da família. Busque informações na internet de como fazer para denunciar. Você não precisa mais sofrer calada. Eu sei e posso dizer, não é fácil -- mas é melhor. Quando a violência acaba, a vida recomeça.

A senhora está em isolamento em casa. Qual a primeira coisa que pretende fazer quando tudo isso passar?
Quero reunir minha família e abraçar meus netos.

Quais os canais de denúncia?

Durante o isolamento social, saiba como denunciar o agressor

PRESENCIALMENTE

Se sair de casa puder ser uma opção, os locais para denúncia estão abertos. As Delegacias da Mulher estão em funcionamento e as Casas da Mulher Brasileira, nas capitais onde existem, também.

VIRTUALMENTE

Quase todos os estados adotaram o Boletim Eletrônico de Ocorrência, com um campo específico para violência doméstica. Não deixe de avisar no registro se é necessária a medida protetiva.

PELO NÚMERO 180

O Ligue 180, serviço telefônico do governo federal, funciona como um disque-denúncia e também orienta sobre os equipamentos e horários de funcionamento das políticas públicas.

PELO 190 DA PM

Em caso de emergência, violência física ou sexual, por exemplo, ligue 190. Essa denúncia também pode ser feita por parentes, vizinhos e amigos, inclusive de forma anônima.

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