Vítima do aborto ilegal

Há três anos, Jandira era sepultada após um aborto ilegal. Seu assassinato virou símbolo do debate no Brasil

Helena Bertho Da Universa Bruna Costa

Em 26 de agosto de 2014, Jandira Magdalena dos Santos Cruz morreu ao realizar um aborto em uma clínica clandestina no Rio de Janeiro. Seu corpo foi encontrado mutilado e carbonizado no dia seguinte. O funeral foi realizado no dia 28 de setembro, coincidentemente o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto.

Três anos depois, sua mãe, Maria Ângela Magdalena, 54, recebeu o UOL em sua casa, em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, para contar quem foi Jandira. Ela deixou duas filhas, inúmeros sonhos, lembranças, e ficou uma questão: como o Brasil está lidando com o fato de que, legais ou não, abortos são feitos no país?

Jandira era uma mulher comum

A mãe de Jandira lembra do sorriso da filha como a marca de sua personalidade alegre. Sem dúvida, é o traço que mais chama atenção em todas as fotos dela, desde menina. Era uma moça comum, do tipo que vivia cercada de pessoas e adorava pregar peças nos amigos.

Os momentos de menina e de mulher sempre se misturaram na vida de Jandira. Aos 15 anos, deu uma grande festa de debutante, com direito a troca de vestidos. Logo depois, engravidou do primeiro namorado.

Mãe duas vezes

Apesar de adolescente, a gestação não foi uma questão. A menina-mãe aparece sorridente nas fotografias, exibindo a barriga que crescia, entre familiares e amigos. Quando Camile nasceu, Jandira teve a ajuda da mãe para criá-la sem precisar largar a escola. Ela sonhava fazer faculdade, talvez de comunicação.

Um novo amor surgiu e, com ele, uma nova gestação, logo depois de terminar o ensino médio. Então Jandira trocou o sonho dos estudos por outro que sempre teve, também: formar uma família. Casou-se e teve Sara. A relação era conturbada, cheia de idas e vindas, e Jandira voltava a viver na casa da mãe.

Ela queria uma família

Na primeira separação, ela começou a trabalhar. Era secretária em uma concessionária de veículos e, com o que ganhava, podia encher as filhas de presentes e curtir os finais de semana no shopping com elas.

O sonho de ter uma família nunca deixou de existir. Jandira queria reatar com o marido, e viver na casa que a mãe estava construindo para ela, com as duas meninas, e ser feliz.

Durante uma das separações, um relacionamento rápido com outro homem resultou em uma terceira gravidez. Seu sonho estava ameaçado. Dona Ângela viu Jandira deixar de ser moleca. Ficou triste, chorava trancada no banheiro. Ela não queria mais um filho. Tomou remédios, que não funcionaram, e, por indicação de uma amiga, marcou o aborto em uma clínica clandestina.

No dia 26 de agosto de 2014, grávida de dois meses, Jandira saiu de casa para interromper a gestação indesejada, e teve a vida brutalmente interrompida.

"Com certeza, aborto na minha casa não vai ter mais"

Fé em Deus e na justiça

No dia do aborto, Jandira saiu de casa e foi para a rodoviária acompanhada do marido, Leandro Reis. Ela entrou sozinha no carro de uma mulher, que a levaria para a clínica. Depois disso, trocou algumas mensagens com Leandro, e sumiu.

A mãe acionou a mídia e a polícia. As buscas começaram e seu corpo foi encontrado mutilado e carbonizado dentro de um carro na Zona Oeste do Rio, no dia seguinte.

As investigações mostraram que Jandira teve complicações durante o procedimento realizado por um falso médico. Os membros da quadrilha que geria a clínica clandestina atiraram na cabeça dela e tentaram se desfazer do corpo de maneira que não fosse identificado.

Três anos depois, sua mãe vive na casa que estava construindo para a filha. A residência está em obras. "Depois de tudo que aconteceu, nunca consegui terminar", explica. Ela, agora, cria as netas, de quem tem a guarda. Na casa de classe média em Campo Grande, Zona Oeste do Rio, as três tentam seguir a vida normalmente, mas é difícil lidar com a dor da perda.

Eu só consigo seguir em frente porque tenho Deus.

Ângela, depois de tudo o que aconteceu, é totalmente contra a legalização do aborto. "Abortar, para mim, é o mesmo que homicídio".

Além da fé, Ângela encontra consolo em saber que quem matou sua filha está na cadeia. Em 2014, a investigação do caso levou nove envolvidos na morte para a prisão, todos membros da quadrilha que mantinha clínicas clandestinas na cidade.

Deles, cinco continuam presos, enquanto aguardam julgamento: Carlos Augusto Graça de Oliveira, Rosemere Aparecida Ferreira, Vanusa Vais Baldacine, Carlos Antônio de Oliveira Júnior e Marcelo Eduardo de Medeiros. Os demais estão em prisão domiciliar, respondem em liberdade ou tiveram o processo suspenso.

A repercussão do caso na imprensa intensificou o debate nacional sobre a questão do aborto do país. Jandira se tornou símbolo da luta pela vida das mulheres que optam por interromper a gravidez. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, do Anis - Instituto de Bioética, estima-se que, só no ano seguinte da morte de Jandira, 416 mil mulheres abortaram na ilegalidade.

Foto: Bruna Prado Foto: Bruna Prado

"As verdadeiras vítimas da criminalização do aborto são as mulheres"

A história de Jandira é chocante, porém não é única. Desde que ela morreu, Aline dos Reis, Caroline de Souza e Tatiana Camilato foram algumas das mulheres que perderam suas vidas de maneira parecida. Para a antropóloga responsável pela Pesquisa Nacional do Aborto, Débora Diniz, essas mortes são sintomas de uma violação de direitos humanos que acontece no Brasil.

A criminalização do aborto é uma grave violação de direitos humanos, com consequências para a saúde pública e a saúde da mulher. Ela viola direitos fundamentais, como a dignidade, a liberdade e a autonomia."

Somente sendo livre para escolher quando e como ter filhos, a mulher pode ter uma vida digna, segundo a especialista.

No Brasil, o aborto é legal apenas em três casos: estupro, quando a gravidez representa um risco para a mulher ou em caso de anencefalia do feto.

Débora ressalta que, exatamente pela ilegalidade, os dados existentes sobre a prática são poucos e podem subestimar a realidade. Mesmo assim, mostram que o aborto por opção continua sendo feito, independentemente de ser ilegal.

"As verdadeiras vítimas da criminalização do aborto é claro que são as mulheres. No início da gestação, não temos um bebê ainda, mas tem uma mulher ali, que, pelo aborto ser crime, corre o risco de ser presa ou até morrer".

A descriminalização, segundo a especialista, é essencial para oferecer condições seguras para mulheres que já fazem a interrupção da gravidez, além de orientação e acompanhamento médico e psicológico antes e depois do procedimento.

Em março de 2017, Débora entrou com uma ação no Supremo Tribunal pela descriminalização do aborto. "Nós temos a chance de que o STF olhe para a questão do aborto. Mas, ao mesmo tempo, há um processo em curso na Câmara para proibir completamente o aborto". Ela se refere às PEC 29 e 181, que mudariam o artigo 5º da Constituição, propondo o direito à vida desde a concepção.

Ela acredita que é difícil prever qual cenário é mais provável. "O processo de revisão legislativa, para ser mais restritivo, já está em curso, e talvez seja mais rápido do que o do Supremo. São forças paralelas que refletem a disputa política que está acontecendo no país", diz.

Débora usa o vizinho Uruguai como exemplo de legislação sobre o aborto, onde a prática é legal desde 2012 e oferecida pelo sistema público de saúde.

Descriminalizar o aborto não desprotege a crença de ninguém. As pessoas que acham que o aborto não deve ser feito vão poder passar a vida sem fazer um".

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