Vitórias visíveis

Autoestima, família, trabalho: no Dia da Visibilidade Trans, leia três histórias que merecem ser celebradas

Mariana Gonzalez De Universa

Gabriela se olha no espelho e gosta do que vê. Alexya é mãe de três filhos. Amanda ocupa um cargo de liderança na profissão que escolheu.

Se você pertence a um grupo que é alvo constante de violência física e moral, é expulso de casa antes de completar 18 anos, dificilmente chega ao ensino superior e não vê chances mínimas de ingressar no mercado de trabalho formal, essas conquistas são ainda mais especiais. Há uma realidade trágica para a população transgênero no Brasil, país com a maior taxa de assassinatos de trans no mundo, mas também há vitórias. E o sucesso de uma significa abrir caminho para outras.

Hoje, Dia Nacional da Visibilidade Trans, Universa ouve duas mulheres transexuais e uma travesti cujas histórias devem ser comemoradas: a da atriz Gabriela Loran, que constrói sua autoestima a partir do afeto da família e da constante validação do amor-próprio; a da reverenda Alexya Salvador, primeira travesti a adotar no Brasil e, hoje, com três filhos; e a da advogada Amanda Souto Baliza, primeira trans a presidir uma comissão da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no país.

Lucas Landau Lucas Landau

"Não tem dinheiro que pague a satisfação de ver o que vejo no espelho"

Gabriela Loran, atriz e influenciadora digital, 28, Rio de Janeiro

"Minha maior conquista foi entender quem eu sou e ter desabrochado enquanto uma mulher trans — não digo que me descobri porque essa flor sempre esteve dentro de mim, só precisava desabrochar mesmo. E mais bonito ainda foi passar por tudo isso tendo o apoio da minha família.

Quando sofria transfobia na rua, tinha meu pai indo me buscar no ponto de ônibus para me proteger. Chegava em casa e tinha um prato de arroz e feijão quentinho, feito pela minha mãe, na mesa.

Hoje, posso dizer que não tem dinheiro no mundo que pague a satisfação de ver a Gabriela que eu vejo no espelho. Mas não foi do dia para a noite que eu aceitei minha imagem — fui aprendendo a lidar aos poucos.

Lucas Landau Lucas Landau

Com amor, a gente transforma o mundo.

GABRIELA LORAN

Nunca gostei das minhas entradas na testa, por exemplo, mas tive por muito tempo. Fui lidando até o momento em que surgiu a oportunidade de fazer uma frontoplastia [cirurgia plástica na região]. Foi uma decisão de Gabriela para Gabriela. Assim como também coloquei silicone.

A redesignação sexual, se um dia quiser fazer, se for um desejo meu e não para agradar outras pessoas ou ceder a pressões externas, tudo bem.

Minha sobrinha Maria Cecília, de 3 anos, olha para mim e fala: 'Olha, tia, meu cabelo está bonito igual o seu'. Ela me chama de tia e associa meu cabelo crespo à beleza. Não preciso de mais nada para me sentir bonita.

Minha autoestima foi construída — e é construída mais um pouquinho todos os dias — a partir do afeto da minha família e de muito amor próprio.

E também a partir do respeito comigo mesma, entendendo que está tudo bem se olhar no espelho de vez em quando e não gostar do que vê. A gente não precisa se achar bonita todos os dias. Temos que naturalizar isso.

Lucas Landau Lucas Landau

Quando estudava teatro, tive uma aula que foi um divisor de águas: a professora pediu que chegássemos em casa e explorássemos uma parte do nosso corpo que não conhecíamos bem. Pensei: 'Como assim?'. Fui para o banho, peguei o sabonete líquido e, tocando em determinadas partes de mim, tive uma crise de choro.

Entendi, ali, que a gente não conhece o nosso corpo. Desde então, tenho meu hidratante fiel e massageio o meu corpo todo, todos os dias, como um ritual de autocuidado."

"Nunca tive bebê na barriga. Meus três filhos nasceram de um abraço"

Alexya Salvador, reverenda e coordenadora pedagógica, 41, Mairiporã

"Pensava em ser mãe, ter filhos, desde pequena. Mas não imaginava ter a família que tenho hoje.

O processo para a adoção é desgastante, especialmente no meu caso, por ser a primeira travesti tentando fazer isso no Brasil. Se eu disser que sofri transfobia diretamente, estaria mentindo, mas testaram a minha boa vontade em muitos momentos durante todo o percurso.

Mas, a partir do momento em que a juíza concedeu a guarda do Gabriel para mim e para o Roberto, meu marido, em 2015, depois de quase um ano de muita luta, tudo valeu a pena.

Ao chegar na audiência, tinha certeza que receberia um 'não'. Mas a juíza me tratou com dignidade e viu que, àquela altura, eu já era mãe do Gabriel. Independente da autorização dela, já existia um laço afetivo.

Mariana Pekin Mariana Pekin

Nossa família estava ganhando forma, cheiro, cor, com a chegada do Gabriel. E, um ano depois, em 2016, ficaria ainda mais bonita com a chegada da Ana Maria. Era um sonho meu, além de ter filhos, ser mãe de uma menina trans e ter com ela a relação que eu não tive com a minha mãe, que não conseguiu me apoiar.

A Ana estava em outro estado, a aproximação com ela foi por videochamada e nosso encontro foi a coisa mais linda. Até então, no abrigo, ela era obrigada a se vestir como menino, mas saímos com ela do fórum, depois de concedida a adoção, vestida de menina, pois chegamos lá com uma mala cheia de roupinhas, calcinhas, maiô.

Foi um nascimento lindo, recheado de amor. E eu mal sabia que não pararia por ali. Em 2019, minha terceira filha estava chegando: a Dayse. Quando vi aquela coisinha mais linda do mundo, toda vestida de rosa... Ela estava tremendo, eu também. Mas quando coloquei ela no colo, as duas se acalmaram.

Não tive uma barriga com bebê dentro, mas meus três filhos nasceram de abraços.

Mariana Pekin Mariana Pekin

Sou uma mãe travesti. Essa é a minha identidade.

ALEXYA SALVADOR

Mariana Pekin Mariana Pekin

Amo e educo três filhos: um menino de 16 anos, uma menina de 15 e outra de 7. Até o momento, as duas são trans, mas deixo livres para expressarem suas identidades — com erros e acertos, como qualquer mãe. Mas vejo que a sociedade espera algum deslize para falar: "Está vendo? Ela não pode ser mãe".

Viver essa experiência, que é historicamente negada às travestis, é uma enorme vitória. Dedico toda a minha felicidade às minhas ancestrais, travestis que vieram antes de mim, lutaram e ocuparam espaços.

Ainda existem juízes fascistas, que levam a Bíblia para dentro dos fóruns e usam argumentos religiosos, antiquados e transfóbicos para não autorizar a adoção por homens e mulheres trans, mas me alegro porque, hoje, outras pessoas, como eu, têm filhos, família. A Justiça já entendeu que nós temos esse direito."

"Há quem lute para barrar a diversidade, mas não vejo chance de isso acontecer"

Amanda Souto Baliza, advogada, 30, Goiânia

"Terminei a faculdade aos 21 anos, já tinha passado na OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e comecei a advogar.

Naquela época, ainda não tinha começado a transição por medo da família e das coisas que poderiam acontecer comigo.

Trabalhei em alguns escritórios no interior de Goiás, até que surgiu a oportunidade de trabalhar na capital, Goiânia. Tinha 27 anos e estava há dois em um emprego quando as coisas começaram a ficar mais complicadas: iniciei a transição de gênero e logo fui demitida. Não tenho como afirmar [que foi transfobia], mas o timing foi bem esquisito.

Passei dois anos desempregada.

Nesse período, cheguei a fazer uma especialização direcionada para entrar em uma empresa onde queria muito trabalhar. Quando a pessoa da área de recursos humanos responsável pelas contratações me ligou, perguntando pela Amanda, e ouviu minha voz no telefone, desligou. Sem falar nada. Nunca mais me procuraram.

Se tivesse começado a transição mais jovem, talvez nem faculdade teria conseguido fazer.

Tive acesso a uma série de privilégios que, depois da transição, me foram negados: antes de perder o emprego, consegui comprar um apartamento e um carro. Isso me ajudou muito quando fiquei desempregada porque, se tivesse que pagar aluguel, teria ido morar debaixo da ponte.

O direito é muito conservador, exige muito em relação à imagem, e não só na aparência física. Lembra da história da ligação do RH, quando a moça desligou o telefone ao ouvir minha voz e perceber que sou trans? É isso.

Tallyton Alves Tallyton Alves

Em 2020, fui a primeira advogada do meu estado a retificar o registro civil na OAB — depois disso, senti a transfobia diminuir um pouco. Antes, quando eu mostrava o documento antigo, com o nome anterior, a pessoa não falava nada, mas me olhava de um jeito esquisito.

A essa altura, eu já fazia parte da Comissão de Diversidade da OAB-GO, e a advogada Thaisa Stetter, que era presidente da comissão e é minha amiga, recebeu uma proposta de emprego no Recife. Por isso, queria que eu assumisse a gestão. Ela indicou meu nome para o então presidente da OAB-GO, que concordou, e tomei posse.

Assim, também fui a primeira pessoa trans a presidir uma comissão da OAB em todo o Brasil — e minha posse repercutiu bastante na época.

Também sou conselheira da OAB estadual. Claro que são muitas vozes, e eu ainda sou a única trans entre 100 conselheiros em Goiás, mas é importante ter cada vez mais pessoas com um olhar sensível às nossas pautas. Quanto mais plural a entidade for, melhor para todo mundo. Existem grupos que lutam contra, que tentam barrar a diversidade, mas não vejo chance de isso acontecer."

Tallyton Alves Tallyton Alves

As eleições aconteceram em novembro e, pela primeira vez, mulheres trans foram eleitas para os conselhos da OAB, eu em Goiás e a Márcia Rocha em São Paulo. Duas de uma vez.

AMANDA SOUTO

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