Zezé no Espelho

Em 78 anos, é a primeira vez que a atriz estrela comerciais de TV: 'Na minha época, ser negro não era bonito'

Mariana Gonzalez De Universa, no Rio de Janeiro Lucas Seixas/UOL

"Muito emocionada." Foi assim que Zezé Motta reagiu ao convite para ser garota-propaganda pela primeira vez na vida, aos 78 anos. Apesar de ter mais de cinco décadas de carreira e quase cem papéis no currículo, entre personagens na TV e no cinema, ela nunca havia feito uma campanha publicitária —na década de 1970, chegou a gravar um comercial que nunca foi ao ar, porque a empresa se recusou a ter uma mulher negra representando seu produto.

Agora, ela é o rosto de marcas globais de beleza, como L'Oréal, Natura, Avon, Nivea e Vichy—conquista que comemorou em julho, no Twitter, ao escrever: "Depois de idosa, me descobriram". Em todas as campanhas, celebra a pele com rugas e o cabelo crespo.

"Eu não tinha mais expectativa em relação a publicidade. Sou de uma época em que não se admitia de jeito nenhum que o negro era bonito. Então, pensava: 'Vou batalhar para que meus filhos e netos encontrem um mundo diferente, que tenham todas as portas abertas, e não limites, por causa da cor da pele'. Mantinha isso nas minhas orações. Mas agora que têm surgido vários convites, estou achando maravilhoso. Faz bem para mim", afirma, em entrevista a Universa na sala de seu apartamento no Leme, no Rio de Janeiro —imóvel que já pertenceu à escritora Clarice Lispector.

Após anos de luta antirracista e, mais recentemente, contra o etarismo, Zezé se diz orgulhosa das batalhas que travou —e na linha de frente. A atriz foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, na década de 1970, e já atuou como conselheira de Direitos Humanos em Brasília e superintendente da igualdade racial no Rio de Janeiro.

"Fico orgulhosa de mim por ter encarado todas essas lutas e, ao mesmo tempo, poder ajudar outras pessoas, mulheres negras, idosas, até mulheres jovens. Muitas falam para mim: 'Obrigada'. É gratificante, valeu a pena."

Tem essa coisa legal de ser uma pessoa idosa e estar bem, fazendo campanhas. É um incentivo para outras mulheres da minha idade, para que vejam que velho não é trapo, que uma mulher velha é uma mulher. Aliás: idosa. Velha não.

Zezé Motta

Black is beautiful

Muito antes de o termo "transição capilar" surgir, Zezé Motta passou pelo processo de abandonar o alisamento e abraçar os fios crespos naturais. Isso aconteceu em 1969, quando foi a Nova York pela primeira vez, em meio ao movimento "black is beautiful" [negro é lindo, em português], para apresentar a peça "Arena Conta Zumbi", de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri.

Na época, Zezé alisava o cabelo usando um ferro quente e vaselina. Por cima, usava uma peruca chanel com as pontas viradas para dentro. "Meu cabelo, mesmo liso, não fazia esse movimento", conta.

Em Nova York, foi a uma festa dos Panteras Negras e sentiu um impacto: "Eu olhava para aqueles homens e aquelas mulheres com os cabelos cheios, de cabeça erguida, todos empoderados, e pensava: 'Nossa, que gente bonita. Por que não andamos de cabeça erguida assim no Brasil?'. Cheguei à conclusão de que disseram que nós éramos feios e acreditamos nisso".

Na peça, em determinada cena, os atores tinham de cerrar o punho, erguê-lo e dizer: "Eu sou Zumbi". "Agora, imagina Zumbi de peruca chanel", brinca Zezé, aos risos.

"Cheguei ao hotel, tirei a peruca, me enfiei embaixo do chuveiro e meu cabelo fez 'tóin', ficou natural. Terminei a temporada já com o cabelo black. Segui adiante e nunca mais alisei. Aquilo foi um batismo", lembra. "Nada contra quem alisa, cada um faz o que quer com o seu cabelo, mas eu só alisava porque aqui diziam que meu cabelo era ruim."

O "batismo" foi uma virada de chave na vida da atriz, então com 25 anos. Na adolescência, além de alisar o cabelo, ela sonhava ter dinheiro para comprar lentes de contato coloridas —depois de ver uma mulher negra de olhos verdes na televisão— e para fazer uma cirurgia que reduzisse seu nariz.

Quando eu me aceitei e desisti de operar o nariz, parei com aquele delírio de lente de contato verde e assumi meu cabelo, foi um renascimento. Imagina passar 24 horas querendo ser outra pessoa e, de repente, você se aceitar. É um alívio enorme.

Zezé Motta

Arquivo Zezé Motta em ensaio fotográfico nos anos 1980

Zezé Motta em ensaio fotográfico nos anos 1980

'Aos 32 anos, me tornei símbolo sexual'

A escolha da carreira, para Zezé, estava feita: o teatro e a música. Mas essa convicção não deixou os pais menos preocupados.

A mãe queria que ela seguisse seus passos e se tornasse modelista. Ela era uma mulher "profissionalmente realizada", como lembra Zezé, e manteve um ateliê por mais de 40 anos, no Rio de Janeiro.

O pai não se opôs à carreira artística da filha quando ela recebeu uma bolsa para estudar teatro no Tablado, mas exigiu que ela tirasse um diploma para ter segurança. "Você está diante de uma contadora", afirma a atriz, que nunca exerceu a profissão e nem sequer foi buscar o diploma, porque decidiu não ir à cerimônia de formatura para fazer o teste de elenco do que seria sua primeira peça, "Roda Viva", escrita por Chico Buarque.

Criada em um colégio interno em que as meninas não podiam ficar nuas nem para tomar banho —elas se lavavam usando camisolas—, a atriz e cantora foi alçada ao posto de símbolo sexual aos 32 anos, quando foi escolhida pelo diretor Cacá Diegues para ser a protagonista do longa "Xica da Silva" (1976).

No filme, ela protagonizava cenas de nudez, que encarou como "uma libertação" frente à criação conservadora que teve. Seu corpo virou assunto na imprensa junto a comentários racistas. Mesmo assim, encarou —e ainda encara, 46 anos mais tarde— o papel como uma vitória.

"Saiu o seguinte: 'Atriz que ganhou papel para protagonista é uma mulher feia, porém exuberante'. Para amenizar o racismo, eles usavam palavras como 'exótica', 'exuberante'", lembra. "O movimento negro ficou um pouco incomodado com isso, mas eu gostei."

Antes de me tornar símbolo sexual, eu fazia parte de um grupo que as pessoas diziam que era feio. Meu nariz era chato, meu cabelo era ruim, minha bunda era grande. E aí, de repente, me elegeram um símbolo de beleza. Quem ficou mais feliz foi a militante do que a mulher. Falei: 'Está valendo a pena lutar'.

Zezé Motta

Racismo fora das telas

Ainda viriam outras batalhas.

Em 1984, Zezé interpretou a paisagista Sônia, na novela "Corpo a Corpo" (Globo). Ela estava feliz por representar um papel fora do espectro de escravidão e trabalho doméstico. "Nada contra fazer a empregada doméstica, mas eu estava um pouco cansada da mesma personagem", diz.

"Pensava: 'Será que vou ficar sempre fazendo essa empregada que abre porta, fecha porta e serve cafezinho?'." Mas o público não aceitou bem a personagem, porque ela fazia par romântico com Marcos Paulo, um ator branco.

"Foi uma experiência terrível, as pessoas reagiam de maneira muito violenta", lembra. Ela conta que, enquanto a novela era exibida, Marcos Paulo recebia recados em sua secretária eletrônica que diziam coisas como: "Que nojo te ver beijando aquela negra horrorosa".

"Uma pessoa chegou a dizer que o Marcos Paulo devia estar precisando de dinheiro para aceitar passar por essa humilhação", conta a atriz. "As pessoas perdem a noção, enlouquecem."

Quem tem um amigo tem tudo

De parcerias a homenagens, três pessoas que estenderam a mão para Zezé

Aline Fonseca / Divulgação

Caetano Veloso

"Fez apenas 'Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel. Uma mulher, uma beleza, que me aconteceu'. Um privilégio ter sido musa do Caetano. As pessoas perguntam se rolou, mas não: somos amigos, irmãos."

Divulgação

Marília Pêra

"Trabalhamos juntas na minha primeira peça, 'Roda Viva'. Depois morei com ela em São Paulo, ficamos amigas, e eu tive a honra de batizar a caçulinha dela. Éramos amigas, irmãs, comadres, tudo ao mesmo tempo."

Pascal Le Segretain/Getty Images

Cacá Diegues

"Cacá, claro, por motivos óbvios [ele dirigiu o longa-metragem 'Xica da Silva', filme que alçou Zezé Motta à fama]. Mas, independentemente de 'Xica da Silva', nós ficamos muito amigos, irmãos. Eu o adoro."

'A ditadura foi uma tragédia'

Durante as quase duas horas de entrevista e sessão de fotos, Zezé foi só sorrisos, inclusive ao falar de temas difíceis, como racismo e abortos espontâneos. Fechou a expressão em poucos momentos da conversa: ao se lembrar da ditadura militar brasileira, período em que sofreu com a censura e a invasão de teatros em que estava em cartaz, e ao comentar o atual governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).

Em 1968, no mesmo ano em que a ditadura endureceu o regime com a publicação do Ato Institucional nº 5, Zezé, então com 24 anos, estreou nos palcos na peça "Roda Viva", escrita por Chico Buarque e dirigida por Zé Celso Martinez, duas figuras perseguidas pelos militares.

No Rio de Janeiro, a peça chegou a ser proibida e voltou a ser apresentada após fortes protestos de artistas e estudantes, mas, durante uma apresentação em São Paulo, o teatro Ruth Escobar foi invadido por "um grupo de extrema direita, com soco inglês e cassetetes", que destruiu os camarins e agrediu atores.

"Foi uma experiência horrorosa. Na fuga, levei uma pancada com o cassetete no braço, que inchou um pouco, doeu alguns dias, mas não foi grave como aconteceu com outros atores, que foram parar no hospital", lembra.

Ainda antes da volta ao regime democrático, o que aconteceu apenas em 1985, Zezé recebeu a visita da censura em ensaios para shows e teve trechos de espetáculos vetados pelos censores —como a introdução da música "Estranho Sorriso", que era dedicada a um amigo preso político.

Agora, quando perguntada sobre as ameaças de golpe e os pedidos de uma parcela da extrema-direita pela volta do regime, responde: "Deus me livre, Deus é pai".

É muito triste ver o país voltando quantos mil passos para trás. Muito triste. Depois de tanta luta, tanto sofrimento, [arriscar] causas que a gente considerava ganhas, liberdade de imprensa, a liberdade de exercer a profissão.

Zezé Motta

'Nem lembro que não pari'

"Eu sou do signo de Câncer, a mãe do Zodíaco", fala Zezé, quando perguntada sobre os filhos —Luciana, Nadine, Cíntia, Carla e Sirlene, todos adotivos, além de duas sobrinhas, que ela também criou. "Sou apaixonada, não me imagino sem eles. Nem lembro que não pari."

A atriz prefere não falar sobre a chegada dos filhos, diz que "cada um chegou de um jeito", mas que não gostam que ela conte a história deles.

"Eu tinha útero infantil, e meus filhos não vingavam. Antes dos dois meses de gestação, eu perdia", lembra. A atriz chegou a ter pelo menos três abortos espontâneos, entre os 25 e os 36 anos. No quarto dos cinco casamentos, buscou tratamento, mas, ao final, estava com 39 anos e "meus filhos já tinham chegado de outras formas".

Hoje avó de três netos pequenos, Zezé passa com eles quase todo o tempo livre de trabalho —além das campanhas de publicidade, ela está no ar na série "Arcanjo Renegado", da Globoplay, tem três roteiros em mãos para gravar e apresentações marcadas por todo o Brasil com a turnê "Zezé Canta Caetano".

Também dedica espaço na agenda para o namorado de 64 anos, um amor antigo que reencontrou durante a pandemia. Assim como em seus outros relacionamentos, a atriz é discreta ao comentar o atual; diz apenas que ele mora em São Paulo e que, apesar da distância, não ficam muito tempo sem se ver.

"Eu sempre fui namoradeira", conta, quando perguntada sobre o relacionamento. "Estava havia alguns anos quietinha no meu canto, mas reencontrei meu namorado. Agora estamos mais maduros, em paz, não tem ciúme, não tem nhenhenhém."

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

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