O Tinder da reciclagem: Cataki conecta catadores e gera renda
Todas as quartas-feiras pela manhã, a calçada da minha rua aparece cheia de sacolas próprias para o descarte de materiais recicláveis. Moro em Perdizes, na zona oeste de São Paulo, uma das poucas regiões da cidade que é privilegiada com coleta seletiva municipal. Até o dia que parou de funcionar. Por mistérios da gestão urbana que desconhecemos, a coleta parou por duas semanas e as sacolas de recicláveis ficaram lá, da manhã até a noite, quando o caminhão de lixo convencional passou.
Carregar até um ecoponto não era uma opção muito viável para mim, mas também não poderia deixar de dar um fim adequado. Foi pesquisando por alternativas que conheci o Cataki, aplicativo que conecta qualquer pessoa que precise descartar algo, com catadores que tiram dessa atividade seu sustento. Decidi testar.
Veja mais:
Guia quer discutir como construir uma São Paulo mais justa para as mulheres
Slam das Minas: 'Ninguém precisa levar arte para a favela, ela já vive lá'
"O centro pulsa e existe", diz palestrante do Festival Path sobre São Paulo
O aplicativo é muito intuitivo. Com poucos cliques é possível ver o que cada catador coleta - pode ser desde garrafas plásticas a móveis e óleo usado - e a região que ele trabalha. Não tive dificuldade de encontrar Carlos José Flávio, que trabalhava perto da minha casa, e logo combinei a retirada. Deu certo.
Além do meu bairro (e de SP)
Diante a um teste bem-sucedido, fiquei pensando se fora do tal bairro privilegiado da zona oeste funcionaria bem também. Meus pais moram no Belém, na zona leste de São Paulo, bairro que apesar de ser menos periférico, e mais próximo ao centro, não é tão abastecido de serviços quanto o meu. Pedi para me ajudarem com um teste. Eliete Sobral, minha mãe precisa descartar material reciclável variado e um móvel. "Fiz duas tentativas, mas não tive resposta. Na terceira, enviei um áudio para um catador que logo me respondeu", comenta. Ela precisou tentar um pouco mais. Atribuiu isso à região. Mas também gostou de ter dado uma finalidade boa aos resíduos. "Eu recomendaria especialmente para quem não tem coleta seletiva em seu prédio ou rua", disse.
Mas não me contentei, fui atrás de mais gente que já tinha experimentado a ideia para ouvir outras opiniões. Queria conhecer pessoas de outras cidades e com materiais mais "complexos" do que reciclável convencional.
Uma das pessoas que conheci foi a publicitária Ana Luz Paulino, de Belo Horizonte, que testou o aplicativo num momento bastante delicado de sua vida. Ela já conhecia o projeto por acompanhar o Pimp My Carroça nas redes sociais e, quando sua mãe morreu no ano passado, passou por processos de desapego, como ela própria diz. O cunho social do app pesou na escolha. "Nesse momento, achei que o Cataki fosse ser uma ferramenta importante. Que não fosse apenas para descartar coisas".
Ela tentou alguns contatos no aplicativo, mas não encontrou alguém de primeira. O motivo? Nem todos os catadores que tentou tinham WhatsApp ou alguns números estavam errados. Após algumas tentativas, encontrou quem a ajudasse e já usou o aplicativo em mais de uma ocasião, tanto para o descarte de móveis, quanto de outros utensílios para a casa.
Outra pessoa que conheci foi o técnico de sistemas Fabio de Castro Pimenta, da zona norte do Rio de Janeiro. Precisando doar móveis, ele usou o aplicativo para encontrar alguém que pudesse ajudar. "Em uma semana, conseguimos conciliar as agendas e um catador veio retirar a doação", disse. Da segunda vez que precisou, já entrou em contato diretamente com a pessoa que o tinha ajudado da primeira vez, pois tinha seu telefone à mão.
Pensando em quem trabalha
A comunicação entre quem tem o reciclável e o catador é feita fora do ambiente do app, via WhatsApp ou chamada telefônica. Henrique Ruiz, coordenador do Cataki, explica que isso tem um motivo bem específico: o perfil dos profissionais. Nem todos os catadores têm plano de internet no celular, ou contam com planos mais simples que permitem o uso do WhatsApp até gratuitamente, às vezes, mas não suportariam o gasto de dados com com acesso constante que seria feito ao aplicativo. Ao contrário de exemplos como Uber ou Tinder, a localização não é em tempo real, é definida pelo catador na hora do cadastro, quando ele marca no mapa a área em que costuma trabalhar. "Além da questão da internet, isso faz com que o celular do catador não gaste tanta bateria e chegue ao final do dia", comenta Ruiz.
É uma parte importante do aplicativo. Uma vez que a comunicação é feita fora dele, muitas pessoas acabam conhecendo catadores de sua região e estabelecendo uma relação direta com eles. "Como muitos catadores não voltam para casa antes de terem conseguido um valor mínimo por dia, ouvíamos histórias de gente que simplesmente não tinha tempo de parar nem para almoçar. Hoje, vários saem com coletas agendadas e uma garantia de conseguir um dinheiro que permite até que eles se programem e parem para comer durante a jornada de trabalho", conta Ruiz. É um benefício além da renda. E a expansão pode acontecer com ajuda dos próprios usuários. A sugestão? Usar seu telefone para ajudar catadores da sua região a fazer o cadastro. Essa é uma das formas que o aplicativo tem encontrado para crescer. São mais de 2.500 catadores cadastrados, em 390 cidades, e 140 mil pessoas usando a aplicação.
O aplicativo é uma via de mão dupla. Ou tripla. Ajuda quem precisar descartar corretamente algum material, tira do meio ambiente objetos que demorariam anos para serem decompostos, e gera receita com a venda para os catadores. Para fomentar ainda mais essa receita, o Cataki sugere que cada usuário combine uma "caixinha" diretamente com o catador. Ter uma remuneração é justo, já que ele vai andar ao menos alguns quarteirões até sua casa, carregando uma carroça pesada. O aplicativo não fica com nenhum percentual disso. É tudo do profissional.
Ideia premiada
O aplicativo já tem alguma história. Foi criado em julho de 2017, dentro do movimento Pimp My Carroça, que é cheio de iniciativas para tirar catadores da invisibilidade. A ideia saiu do papel a partir do reaproveitamento de materiais. "Quando o aplicativo foi idealizado, a sede do projeto estava passando por uma reforma do piso de tacos, que seria trocado. Usamos o taco antigo para fazer esculturas de pequenas carroças. O dinheiro da venda foi todo usado no lançamento do aplicativo", explica Ruiz.
E já rendeu alguns prêmios. Um deles veio logo em 2018, quando o aplicativo foi reconhecido no Netexplo Award, prêmio de inovações digitais com chancela da Unesco. O mais recente chegou poucas semanas atrás, quando o Cataki foi premiado pelo Chivas Venture e levou 50 mil dólares (equivalente a quase 200 mil reais) para investir no próprio app.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.