Com futuro incerto, Parque do Minhocão divide opinião de moradores
O Elevado João Goulart, mais conhecido pelos paulistanos como Minhocão, é dominado pelos automóveis no dia a dia. Mas das 21h30 às 6h30 e aos domingos e feriados, muita coisa muda por ali: é nessa hora que saem os estressados motoristas e entram em cena pedestres, skatistas, animais domésticos e muitas bicicletas, transformando o viaduto em um parque linear, ainda que não oficialmente.
A situação do local parecia se inverter finalmente com a criação de um projeto de lei, aprovado em 2018, que prevê o fechamento da via para os carros e a criação de uma área verde no local, o Parque do Minhocão, a partir do segundo semestre deste ano.
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Porém, já perto de sair do papel, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu a liminar que torna nula a lei municipal. O relator do caso no TJ, o desembargador Salles Rossi, atendeu a um pedido do procurador-geral de Justiça do Estado, Gianpaolo Smanio, que alega a falta de um estudo urbanístico capaz de prever os impactos da medida no conjunto da cidade.
Em seu despacho, realizado em 13 de junho, Rossi afirmou que a suspensão da lei "justifica-se na medida em que a abrupta desativação de importante via de circulação causaria grande impacto urbanístico, além do risco de irreversibilidade, caso criado o parque municipal no lugar do elevado".
Em nota, a Procuradoria Geral do Município (PGM) disse que foi notificada e que deve apresentar defesa em breve. No entanto, caso seja confirmada, a suspensão não impede o plano da prefeitura de São Paulo fazer com que o parque siga adiante. E nos bastidores, já se discute a edição de um decreto municipal do prefeito nos moldes da lei, prometendo assim novos capítulos à saga do Minhocão.
Via expressa, demolição ou parque?
Inaugurado no aniversário de São Paulo, em 25 de janeiro de 1971, pelo então prefeito Paulo Maluf, o Elevado Goulart foi reconhecido à época como a maior obra viária urbana da América Latina, ligando a Avenida Radial Leste-Oeste (no Centro) à Avenida Francisco Matarazzo (Zona Oeste), passando pelos bairros República, Consolação, Santa Cecília e Barra Funda.
Hoje, quase 50 anos depois, é considerado por arquitetos uma obra urbana desastrosa e o seu futuro vem sendo discutido por gestores, especialistas e representantes da sociedade, que se debruçam sobre o tema há décadas, em busca de uma solução criativa para o viaduto - até se chegar ao atual projeto do Parque Minhocão.
A transformação do local em parque é uma das grandes apostas do prefeito de São Paulo, Bruno Covas, para deixar sua marca na capital - algo similar aos projetos Cidade Limpa, do ex-prefeito Gilberto Kassab e Paulista Aberta, de Fernando Haddad. Covas promete integrá-lo a outros espaços da região, como o Parque Augusta e a Praça Roosevelt. No total, estão previstos mais de 17 mil metros quadrados de jardins, floreiras e deques, dispostos em módulos pré-fabricados para a construção do parque, que deve custar em torno de 38 milhões.
Antes da decisão da Justiça, Covas sinalizou a intenção de ouvir a população sobre a construção do parque antes de sair do papel. Em declaração recente ao Urban Taste, o secretário municipal de urbanismo e licenciamento, Fernando Chucre, confirmou que a previsão é discutir o projeto ao longo de todo este ano e que a implementação da obra deve ocorrer somente no ano que vem.
Mas se por um lado a proposta da prefeitura parece atender à parte de cima do viaduto, por outro ainda existem muitas dúvidas sobre as vantagens na área sob o concreto. Para a arquiteta Raquel Rolnik, a proposta apresentada por Covas é incompleta e se esquiva do debate sobre a transformação urbana da região para depois do parque implantado."Nenhuma intervenção urbanística pode ser pensada apenas em si mesma", afirma a arquiteta. ˜A população pode ganhar um parque, mas perder a excelente oportunidade de repensar a área central com generosidade e consistência", avalia.
Após muitas discussões, o destino do Minhocão permanece incerto e dividindo a opinião dos moradores - alguns querem que fique como está, outros que vire parque e há os que prefiram o seu desmonte. A única opinião que parece unânime até o momento é que nem todos os lados se sentem ouvidos e sobram críticas a uma aparente falta de diálogo para discutir outras possibilidades, em um processo que deveria ser participativo.
Para saber o que pensam sobre a construção do parque do Minhocão, o Urban Taste conversou com moradores e frequentadores da região. Poluição, mobilidade, habitação e falta de segurança e de planejamento urbano são alguns dos principais desafios a serem enfrentados, de acordo com eles. Confira alguns relatos:
Criando novos modelos de cidade
Para a arquiteta Stephanie Ribeiro, moradora da região central, existe uma visão muito romantizada sobre o Minhocão, que ignora o peso e o significado histórico da obra. "Quem não vive ali de fato, esquece muitas vezes da realidade que ele representa. Os carros são colocados em um grau de importância muito maior que as vidas das pessoas que estão ali no entorno", aponta. Stephanie é crítica em relação ao elevado como se encontra hoje, mas também não se coloca a favor do projeto Parque do Minhocão. Isso porque acredita que o desmonte do viaduto seja viável e defende que é preciso repensar o modelo atual de cidade. Para ela, o primeiro ponto que deve ser levado em consideração em um projeto urbano são as pessoas, em especial a população em situação de rua. "Se o parque é um projeto de mudança, essas pessoas não podem continuar ali em uma vida vulnerável e precarizada", argumenta.
Faltam alternativas e políticas públicas
Beto Cruz, programador, se mudou com a família para a região do Minhocão há cerca de quatro anos, motivado pelo acesso fácil e pela infraestrutura do centro da cidade. Ele acredita que a criação do parque, a princípio, pode valorizar os prédios no entorno do viaduto, mas questiona a capacidade da prefeitura em conservar corretamente a área verde. "A longo prazo, será que passaria por manutenção? E se não der certo, a gente vai gastar dinheiro público para reestruturar o Minhocão novamente como uma via?", indaga. Entre todas as opções discutidas, defende que o Minhocão fique como está, por desconhecer projetos alternativos que desafoguem o trânsito na região. "O modelo atual, que fecha aos finais de semana para a população curtir e passear, é um modelo que funciona e valoriza o lugar por trazer mais qualidade de vida para quem vive e mora aqui", diz. Ele também argumenta que, em contrapartida, isso pode pesar nos aluguéis dos atuais moradores e que deve se pensar em políticas públicas que considerem a população em situação de rua.
Solução pode estar no nível do chão
Segundo Francisco Gomes Machado, o Minhocão foi uma obra imposta, passando no meio de prédios residenciais, sem nenhum estudo de impacto ambiental. Diretor do Movimento Desmonte do Minhocão, Francisco acredita que a melhor opção para a região seria a desativação do viaduto e que a proposta de parque sobre o viaduto só deve agravar os problemas de segurança, trânsito e saúde dos milhares de moradores do local. "O Minhocão tem níveis altíssimos de poluição, que não se dispersam devido a esse tampão que são as pistas do elevado. Se fechar em cima para o trânsito, os carros vão engarrafar embaixo do local, já poluído ao extremo", diz. Atualmente, cerca de 80 mil veículos circulam diariamente no Minhocão. Por fim, Francisco alega que ninguém é contra a construção de parques, mas acredita que "tudo o que se pode fazer em cima, se fará melhor embaixo", em menção à fala do arquiteto e urbanista Valter Caldana, figura presente nos debates sobre o futuro do Minhocão.
Obras pioneiras podem inspirar Minhocão
O projeto do Parque Minhocão foi inspirado no High Line Park, um jardim suspenso em plena Nova Iorque, criado a partir de um movimento da população local para evitar que uma linha de trem abandonada fosse destruída. A região havia se transformado em um local crítico da cidade por atrair usuários de drogas, criminalidade e prostituição. Após a mobilização de recursos privados e públicos, o parque urbano foi inaugurado em 2008. Hoje é definitivamente um dos espaços públicos mais celebrados e visitados na cidade.
Mas vale atentar que o processo até a sua criação não foi tão simples: da primeira audiência pública ao seu lançamento, foram realizadas diversas discussões e um concurso de ideias com mais de 700 participantes, além de campanhas de engajamento que duraram anos.
O High Line teve como precursor o pioneiro Coulée Verte, o primeiro jardim suspenso do mundo, também conhecido como Promenade Plantée. Localizado em Paris, este elevado foi projetado em 1993 pelo arquiteto Mathieux e pelo paisagista Jacques Vergely. O projeto aproveitou a estrutura de uma antiga linha de trem, que funcionou ali de 1859 até a sua desativação, em 1969 juntamente com a estação Bastille, onde encontra-se atualmente a Ópera Bastille.
Projetos como esses, assim como outros elevados pelo mundo, partiram de antigas ferrovias ou de obras que necessitavam de novas construções e que foram então transformadas em grandes projetos paisagísticos originais e não somente em um "arremedo".
Mas também há casos diferentes, que ao contrário do High Line e do Coulée Verte, não foram construídos em área privada, mas em vias públicas já muito utilizadas. É o caso do Perimetral, no Rio de Janeiro, que veio abaixo em 2014. Considerada pela prefeitura um marco da revitalização da Zona Portuária, esse foi o primeiro passo para o redescobrimento da orla na cidade e possibilitou novamente a ligação da cidade com o mar.
Para os próximos capítulos do Minhocão, fica a dúvida se seguirá o mesmo caminho do Perimetral ou se terá o mesmo destino do High Line e do Coulée Verte.
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