Viajar é baile de favela: moradores da periferia mostram como rodar o mundo
Viajar para fora do país não é uma exclusividade dos ricos ou da classe média. Com planejamento e economia, mesmo quem mora na periferia pode ter a chance de viver essa experiência. E cada vez mais os jovens conectados com o mundo pela internet sentem vontade de ir além dos limites das favelas e da sua realidade social.
Para mostrar que esse não é um sonho impossível, o ator Marcelo Magano, 28, morador da Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro (RJ), resolveu compartilhar vídeos da sua primeira viagem internacional à Colômbia no projeto que chamou de “Favelados pelo Mundo”. “Queria que meus diários de viagem fossem uma forma de incentivar outras pessoas a viajar. Normalmente, a gente não vê muita gente da nossa classe social viajando”, explica.
Junto com uma amiga, ele percorreu durante 20 dias as cidades de Bogotá, Medellín, Cartagena e também conheceu a Ilha de San Andrés, banhada pelo mar do Caribe. Para Marcelo, a oportunidade foi transformadora e possibilitou o contato com a cultura e a história do país, diferente dos estereótipos que ele via na TV. Visitar San Andrés também marcou o ator. “Fiquei surpreso de ver uma ilha em que toda a questão financeira é organizada por negros, que têm o poder econômico”, conta.
O ator acredita que, assim como ele, muitos jovens da favela teriam possibilidade de viajar se pensassem mais no assunto e fizessem desse objetivo uma prioridade. “Acaba que a subsistência vem em primeiro lugar e a viagem não costuma fazer parte do nosso planejamento”, diz. Para conseguir ir para a Colômbia, Marcelo precisou economizar durante um ano. “Essa é a diferença com a classe média, o favelado necessita de mais tempo para colocar a ideia em prática”, destaca.
Não é só falta de dinheiro
Para quem conhecia o poeta e escritor Jessé Andarilho, 34, autor do livro “Fiel” (Editora Objetiva), da época em que ele lavava carros na favela de Antares, na zona oeste do Rio de Janeiro (RJ), fica difícil acreditar que ele se tornou um viajante do mundo. “Desde pequeno sempre sonhei em andar de avião”, relembra. E isso demorou um pouco a se tornar realidade. O primeiro voo nacional aconteceu em 2009, mas a primeira vez que voou para terras gringas foi em setembro do ano passado, em uma viagem para os Estados Unidos.
Desde então já conheceu Paris, Roma, além de outras cidades europeias, e tem viagem marcada para Alemanha, Portugal e Espanha em outubro. Jessé, também criador do sarau “Marginow”, gosta de fazer turismo literário e programa seus destinos conforme as feiras de literatura internacionais. Mesmo sendo muitas vezes convidado como palestrante, o dinheiro para as temporadas fora do país saem do seu bolso. “É uma questão de escolha, tem que correr atrás, não troquei a moto para poder viajar”, diz.
Entre passagens, hospedagens e outros custos, Jessé gastou quase R$ 10 mil na viagem que fez à Europa em março deste ano. Para conseguir juntar dinheiro, ele revela que mantém o mesmo padrão de vida simples, mas agora mora em Campo Grande, bairro próximo à favela em que cresceu. “Prefiro abrir mão de tomar cerveja todo fim de semana e fazer churrasco, como muita gente na favela faz, para conhecer o mundo e trazer mais coisas para a minha literatura”, conta.
Para o escritor, a falta de dinheiro não é o único fator que impede que os favelados viajem mais, já que muitos usam roupas caras, têm carros, motos e outros bens de consumo de valor elevado. “Tem gente na favela que usa tênis de mil reais. Se deixar de comprar cinco pares de tênis já dá pra ir para Nova York”, compara Jessé.
Representatividade ajuda
A falta de exemplos faz com que o mundo do turismo pareça muito distante da favela. Jessé explica que, para muitos jovens, os traficantes e seus cordões de ouro e motos vistosas passam a ser heróis invejados. “Posto fotos nas redes sociais dos lugares em que vou para servir de inspiração e mostrar aos jovens outra saída. Não adianta ter dinheiro, roupas caras e não poder sair da favela”, reforça.
A ausência de representatividade também levou Letícia Oliveira Santanna, 27, formada em Turismo e Relações Internacionais, que atua na área de desenvolvimento social, a pensar que viajar era um sonho inatingível. “Achava que nunca conseguiria realizar, mas desde os 12 anos estudava idiomas e gostava de conversar com quem já tinha viajado”, conta.
Apesar de não ter vivido na favela, Letícia, que cresceu em Queimados, na Baixada Fluminense, não teve a chance de fazer nenhuma viagem na infância com a família, sustentada com o salário de professora da mãe. Aos 23, foi para Salvador e no ano passado fez seu primeiro mochilão pela América do Sul. “Estava superemocionada, fui chorando o voo inteiro”, relembra.
Letícia também destaca algo que chamou sua atenção em sua primeira viagem internacional. “Estava saindo do país mais negro da América do Sul e indo para o segundo mais negro, que é a Colômbia, e eu era a única pessoa negra no avião”, destaca. Para Letícia, essa falta de representatividade atrapalha tanto quanto o baixo poder aquisitivo. “A questão é ousar pensar que você pode”, diz ela, que se inspirou na página “Travel Noire” do Instagram, que mostra belas fotos de viajantes negros pelo mundo.
Planejamento e alternativas
Para conseguir realizar seu mochilão pela Colômbia, Peru e Bolívia, durante um mês, Letícia foi guardando dinheiro em uma conta poupança. No total, ela conta que gastou R$ 4 mil, incluindo passagens e hospedagens em albergue.
De janeiro a julho deste ano, ela viajou pelo Egito, Quênia e Tanzânia. Dessa vez, porém, ela deu aulas de inglês em uma escola particular para ajudar a custear seus passeios, além de fazer um trabalho voluntário de professora para refugiados. Trouxe lembranças inesquecíveis desse período no continente africano. “Fiz um safari de três dias no Quênia e tive um momento muito forte com a tribo Masai. Parecia um reencontro de teste de DNA, sou a cara deles”, relata, nostálgica.
Para Letícia, o momento econômico, que deu mais acesso aos bens de consumo para todas as classes sociais, criou uma chance real para muitas pessoas viajarem. É preciso, é claro, que haja foco e organização. “Muita gente tem a ideia de que é caro porque olha o valor cheio, mas dá para parcelar, juntar aos poucos”, opina. Ela insiste que o investimento vale a pena: “para mim a vida só faz sentido assim, fora da zona de conforto, viajando e aprendendo”.
Marcelo Magano também acredita que existem muitas formas de gastar menos, procurando roteiros alternativos, hospedando-se em albergues e pesquisando bastante para economizar. Apesar disso, a viagem de 22 dias com a amiga saiu por R$ 6 mil para os dois, praticamente o dobro do planejado. “Tem que pensar nos imprevistos e tentar não usar cartão lá fora”, recomenda.
Levando a família
O carioca Bruno Lima, 34, analista de melhoria contínua, que nasceu e cresceu na Cidade de Deus, levou 30 anos para fazer sua primeira viagem. “Moro numa das cidades que mais recebe turistas e eu também sonhava em ser um deles. O mundo inteiro conhece a Cidade de Deus por causa do filme e eu também quero conhecer o mundo”, diz. Quando teve oportunidade de sair do Rio, optou logo por uma viagem internacional: foi com a noiva, em 2013, para o Uruguai. “Queria uma experiência nova, ter contato com outra cultura, em um país que não fosse tão caro”, explica.
Bruno ficou encantado com o nível de desenvolvimento do Uruguai e com a educação do povo. Foi lá também que ele aprendeu a apreciar bons vinhos. Gostou tanto da experiência de viajar que quis proporcionar o mesmo prazer para sua mãe, que só tinha deixado a Cidade de Deus para ir até Sergipe de ônibus visitar a família.
Junto com a noiva e também a sogra, eles visitaram Mendoza e Buenos Aires, na Argentina, em 2014. “Minha mãe sofreu muito na vida, foi bom fazer algo por ela agora que cresci. Fizemos um passeio na Cordilheira dos Andes e vimos neve pela primeira vez”, conta.
De casamento marcado para abril do próximo ano, Bruno não vai perder a oportunidade de fazer mais uma viagem na lua-de-mel. O destino deve ser Nova York ou Cancún. Mas ele tem certeza que essa será apenas mais uma de muitas que vêm pela frente. O casal decidiu não trocar o carro para poder investir nestas experiências. “Viajar vicia, expande a mente, não tem como voltar atrás”, relata, empolgado.
Economiza que dá
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