A prisão do Camboja de onde menos de 2% dos detentos teriam saído vivos
Ao entrar na antiga prisão S-21, no coração de Phnom Penh, capital do Camboja, o turista se depara com uma imagem marcante: trata-se de uma placa que traz o desenho de um homem dando risada, mas com um grande X vermelho sobre sua face.
Nada que surpreenda: o símbolo, que pode ser interpretado como "é proibido sorrir ou fazer brincadeiras", destinado aos visitantes que hoje chegam ao local, tem tudo a ver com a atmosfera deste cárcere desativado.
Operando no lugar de uma escola, a S-21 se transformou, nos anos 1970 (quando o regime genocida do Khmer Vermelho tomou conta do Camboja), em um lugar temido: aqui, estiveram aprisionadas mais de 12 mil pessoas, a maioria acusada, injustamente, de ser opositora política do governo comandado pelo líder comunista Pol Pot. Calcula-se que menos de 2% destes detentos tenham saírdo vivos da prisão (mais sobre isso no final do texto).
Atualmente, este local é uma atração turística da capital cambojana, onde viajantes do mundo inteiro podem conhecer de perto os horrores de um dos governos mais brutais do século 20.
Ao ingressar na S-21 (que hoje tem status de museu), o visitante logo percebe que está no meio de um antigo complexo escolar: cercados por um pátio arborizado, surgem edifícios de três andares em cujos corredores se identifica entradas de salas de aula.
No lugar de lousas, entretanto, tais espaços abrigam celas e câmaras de tortura (exatamente como deixado pelo regime do Khmer Vermelho, há cerca de 40 anos).
Em uma das salas, aparece um estrado de cama de metal, com sua imagem reproduzida em uma enorme foto na parede: no retrato, há o corpo de um homem atado e estirado sobre o estrado.
Prisioneiros sofriam torturas com instrumentos pontiagudos e cortantes sobre estas estruturas (e muitos, logicamente, não sobreviviam à experiência).
Ali perto, outra imagem chocante: uma tábua retangular de madeira, levemente inclinada, onde os guardas da S-21 colocavam os detentos para lhes jogar água fervente na face. O "regador" usado para a tortura ainda está à mostra no local.
E, ao ingressar ainda mais nas entranhas da S-21, o visitante se depara com as celas, que nada mais são do que cubículos feitos com tijolo e cimento aparente (mas dos quais ninguém ousava tentar escapar).
No jardim da antiga escola, por sua vez, ainda está a estrutura de madeira em que os prisioneiros eram pendurados e torturados durante sessões de interrogatório (e nos quais eles tinham que confessar crimes que não tinham cometido, só para serem executados depois e enterrados em covas coletivas de lugares como o campo de Choeung Ek, nos arredores de Phnom Penh, onde os crânios de milhares destas pessoas estão hoje em exibição para turistas e cambojanos).
Sobrevivente
Na prisão S-21, hoje chamada oficialmente de Museu do Genocídio de Tuol Sleng, os turistas também entram em contato com os falecidos prisioneiros do lugar.
Dentro de diversas salas, aparecem centenas de retratos de pessoas que passaram por aqui, tirados pelos guardas do Khmer Vermelho, no exato momento em que elas davam entrada no cárcere.
Na maioria dos rostos (de homens, mulheres e até crianças), uma expressão de pavor. Parece que todos sabiam que seria quase impossível sair vivo do lugar.
Um dos poucos homens que conseguiu sobreviver à experiência foi o cambojano Vann Nath, que entrevistei quando estive no Camboja em 2008 (ele faleceu em setembro de 2011, aos 65 anos, depois de sofrer um infarto).
Nath foi preso na S-21 em setembro de 1977, acusado (segundo ele, injustamente) de instigar camponeses contra o regime do Khmer Vermelho.
Mas como ele conseguiu sair vivo de um lugar onde quase todos eram torturados até a morte ou executados?
Nath era pintor, e os chefes do cárcere ficaram sabendo de sua habilidade em realizar quadros. Pouco tempo depois, ele passou a ser convocado para pintar retratos de líderes do Khmer Vermelho e, por isso, começou a ter um tratamento diferenciado na S-21.
Ele, entretanto, presenciava diariamente o terror do dia a dia deste cárcere, ouvindo gritos de pessoas torturadas, vendo prisioneiros sendo levados para serem executados e presenciando gente morrendo de inanição a poucos metros de distância.
"Algumas pessoas que estavam presas comigo morriam de fome ao meu lado. Outras eram levadas para interrogatório e não voltavam mais", me contou ele, à época.
Ao sair da S-21, Nath começou a transformar suas lembranças da prisão em quadros, expostas em um ateliê na sua casa em Phnom Penh. As pinturas mostravam homens amarrados em troncos, sendo chicoteados, mães famintas segurando filhos pequenos no colo e muita gente morta.
O regime do Khmer Vermelho
Em 1975, o Khmer Vermelho venceu uma guerra de cinco anos contra o governo do general Lon Nol, que então comandava o que é hoje o Camboja (e que, à época, se chamava República Khmer).
Ao assumir o poder, o grupo, que seguia uma radical doutrina maoísta, rebatizou o país de Kampuchea Democrática e começou a transformá-lo em uma sociedade agrária onde dinheiro e a propriedade privada estavam abolidos. Populações das grandes cidades foram obrigadas a se mudar para o campo, que a partir daquele momento estava coletivizado e, portanto, deveria ser cultivado por todos.
Ao mesmo tempo, o Khmer Vermelho começou a considerar a maioria dos seus cidadãos como conspiradores em potencial, prontos para sabotar a revolução que organização queria implantar na Kampuchea Democrática. Milhares de pessoas foram presas em locais tenebrosos como a prisão S-21.
Vann Nath, por sua vez, conseguiu escapar deste cárcere em 1979, quando tropas do Vietnã, que travava uma guerra contra o Khmer Vermelho, invadiram Phnom Penh e possibilitaram a libertação das poucas pessoas que ainda estavam vivas na S-21.
Não há um número certo de quantos detentos saíram com vida de lá.
Durante muitos anos, aceitou-se que apenas sete pessoas haviam sobrevivido a este cárcere. Em 2007, por sua vez, a entidade Genocide Watch publicou um relatório com dados de 19 sobreviventes.
O Centro de Documentação do Camboja, por sua vez, que trabalha para registrar a história da S-21, já fez uma estimativa de que pelos menos 23 pessoas estavam vivas dentro da prisão quando ela foi liberada pelos vietnamitas, em 1979. A entidade também calcula que outras 179 pessoas tenham deixado (vivas) a prisão S-21 entre 1975 e 1978. Quase todas delas, entretanto, nunca mais foram vistas e são tidas como desaparecidas.
Somados, estes 202 sobreviventes representariam menos de 2% de todos os detentos que passaram pela S-21.
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