Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Eu quero que o Luiz Carlos envelheça!
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"Eu roubei alguma coisa nessa loja, caramba? Eu vim aqui pra comprar alguma coisa e me chamam de ladrão!"
Segunda-feira, 9 de agosto de 2021. Enquanto reflito e respondo mensagens recebidas sobre o texto que escrevi sobre a associação que a sociedade faz entre doença e envelhecimento, mostrando que não olhamos de forma saudável o nosso processo de envelhecer, sou invadido e emocionalmente muito afetado pela notícia da violência sofrida pelo senhor Luiz Carlos da Silva, ocorrida no supermercado Assaí, no município de Limeira (SP), no dia 6 de agosto.
A pauta que escreveria não deveria ser essa. Talvez pandemia, algum assunto de saúde ou alguma alegria das aberturas para novos saberes que procuro incluir no campo da gerontologia brasileira e internacional.
Mas temos que falar de discriminação.
Temos que falar de corpos aos quais violências e quaisquer absurdos são possíveis e, politica ou socialmente, permitidos.
Raiva, dor, desânimo com o futuro da humanidade determinam a direção e o foco do que escrevo. Penso no caso do senhor Luiz Carlos que, por alguma razão, talvez por acreditar mais nessa rede de supermercados do que em uma outra, decidiu entrar, confiante de que ali seria bem tratado ou observado sem algum pré-conceito quanto a sua índole, o seu comportamento ou as suas intenções.
Andou por entre os corredores. E por andar livre como um corpo mais jovem e de pele clara, foi considerado suspeito. E quem dirá agora mascarado! O estranhamento aumenta a discriminação e olhar desumano, despreparado e preconceituoso de parte dos seguranças daquele supermercado.
O suspeito de pele escura não precisa ser jovem ou cantar música de funk. Basta estar em espaço público que as marcas do racismo, etarismo, machismo e elitismo classista aparecem automaticamente.
A cena que retrata o fato ocorrido é dura para eu assistir. Reluto uma, duas, três, quatro vezes. Penso em escrever já sabendo do final da cena. Não quero assistir a mais uma cena de humilhação. Mas preciso saber de tudo. E a cena é horrorosa, é semelhante aos filmes de Jordan Peele.
Coloco meus dedos tentando tapar os meus próprios olhos. Racionais já dizia: "Poderia ser eu no seu lugar!" Poderia ser o avô de alguém, o esposo de alguém, o pai de alguém.
A cena tem um ponto de crueldade e ausência máxima de empatia, mas de muito desrespeito: diante da dúvida que persiste, e que não precisa ser verbalizada, já que como seres humanos (?), desenvolvemos a comunicação não-verbal e, diante desse grito sem som dos seguranças, o homem negro tira a sua roupa e chora!
Ele não chora feito criança, ele chora feito um homem digno, um homem que não roubou, que não desviou dinheiro de vacina, que não passou na frente de seus funcionários para tomar vacina só porque era rico ou amigo de juiz, que não tomou mais de um tipo de vacina para garantir sua imunização, que não empregou familiares dentro dos ministérios ou do Planalto!
Ele chorou feito um homem adulto que viu que ser digno não valeu a pena naquele supermercado. O choro é marca da desumanidade, do descaso com a dor do outro. E alguns ainda querem classificar essa cena desesperante apenas como um constrangimento e não como um crime, desses inafiançáveis.
Por tudo isso, só quero que Luiz envelheça. Diversos são os estudos científicos que apontam o estrago celular que situações de discriminação são capazes de causar em um indivíduo ou na sua família. A qualidade e a velocidade da replicação celular, o que nos faz envelhecer a uma certa velocidade, fica muito comprometida e, com isso, encurtamos o tempo de vida de células e a morte precoce está a caminho. E se não for morte física, dessas que costumamos enterrar os corpos, a morte poderá ser social, dele ou de alguém que o ama!
Análises que realizei com os dados do estudo Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI), com uma amostra representativa de pessoas de 50 anos ou mais do Brasil, mostraram que pessoas negras e indígenas percebem o quanto a cor da sua pele ou a idade geram discriminação ou dupla discriminação no local onde residem.
A vida de quem sofre discriminação não vale muito para um sistema capitalista que procura e valoriza corpos consumidores de qualquer coisa! Vamos ver quais serão as ações para esfriar a situação. Escreveria reparação, mas muitas instituições não têm a mesma coragem e ousadia de fazer algo tão digno e grandioso se comparada a liberdade de discriminação que praticam com pessoas negras, com mulheres, com pobres, velhos pobres, velhos negros, velhas negras e tantas outras pessoas desse país.
"Eles pediram para que eu fosse até uma sala reservada e eu falei que não iria. Porque vai que eles colocassem alguma coisa lá e falassem que eu havia roubado. Como eu ia provar que não. Por isso fiquei ali na saída do mercado mesmo."
A velhice do senhor Luiz foi muito comprometida. E por isso repito que quero que o senhor Luiz envelheça! Essa passagem jamais sairá da sua mente quando ele chegar aos 60 anos. É uma obrigação desse supermercado e da empresa de segurança que o violentaram em rede nacional garantir esse direito!
A imagem da humilhação não sairá facilmente das noites já não mais tranquilas no travesseiro importado que será agora parte de uma indenização insuficiente para estancar essa ferida que nunca deixará de sangrar.
"É difícil esquecer. Vou dormir à noite e lembro."
Seus filhos, netos, sobrinhas e sobrinhas passarão também a sentir o efeito secundário dessa discriminação. Por ódio ou por medo também poderão adoecer antes da hora, por esse racional e injusto motivo.
E mais de saúde mental que vai por água abaixo, decorrente de uma instituição que fazia a liquidação da carne preta não jovem que estava no mercado lá de Limeira. Errou o supermercado e os seguranças: ali existe um homem, um cidadão, um potencial senhor que, repito, merece envelhecer com dignidade, assim como aqueles que não negros entram e saem do mesmo supermercado!
Daqui alguns meses, outro horror ocorrerá neste país. Tem sido assim. Em abril do ano passado, um negro idoso do município de Gravataí, no Rio Grande do Sul, foi também erroneamente acusado por roubar um celular em um hospital.
Descobriram, após a cena tão humilhante que levou sua esposa à morte por presenciá-la, que o aparelho estava em uma outra sala. Como disse anteriormente, corpos negros podem ser... É algo que cansa de escrever!
"E porque eu iria roubar agora, sendo que eu sempre trabalhei em uma comunidade que tem tudo? Se alguém precisa de alguma coisa, todos eles ajudam."
O envelhecimento que temos no Brasil não tem música clássica, nem samba, funk ou MPB como trilha sonora para um final feliz. Aqui, ainda lutamos para que a barbaridade não caia sempre na mesma casa e nos mesmos grupos sociais.
Não basta dizer que a discriminação não existe e que ela só está na cabeça de parte das pessoas que acredita que o mundo é redondo e que as vacinas funcionam, ou seja, em pessoas que procuram entender o mundo e o que se pode fazer para deixá-lo melhor.
A figura política de pessoas negras precisa falar e não ficar decorando o lado direito de quem nada faz para o estado e, com isso, dizer que não há racismo porque até amigos de pele escura ele tem. A estrutura social e fracamente democrática da nossa sociedade ainda deixa morrer quem envelhece, quem não enriqueceu, quem não conta com a herança e quem nunca teve a reparação, ainda que seus mais velhos e mais velhas tenham deixado esse país tão rico e desigual.
Tem coluna que a gente escreve porque precisa, não por prazer e alegria. Essa entrou na conta.
#assairacista #assaiidadista
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