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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Elza Laroyê Soares Epahey, do planeta fome: uma nonagenária de respeito

Jack Vartoogian/Getty Images
Imagem: Jack Vartoogian/Getty Images

Colunista do UOL

31/01/2022 04h00

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No último dia 20 de janeiro, a cantora e nonagenária Elza Soares fez a sua passagem. Segundo as informações obtidas, tudo ocorreu da forma como planejou: cantando até os últimos dias que sua saúde física permitiu.

E aqui, para além dos meus sentimentos a familiares e amigos, deixo o meu registro enquanto fã e admirador do seu legado. Elza Soares foi muito além de uma cantora, foi uma inspiração para diversas gerações que jamais deixarão seu nome ser esquecido.

Lembro-me das últimas vezes que a vi. A última mesmo, não vi a propriamente, foram diversas "Elzas". Falo do musical que a homenageou. Incrível a interpretação das atrizes que, simbolizando diversas fases de sua vida, traduziram muito bem a história dessa mulher tão importante para a história do nosso país.

Ouvindo as músicas que Elza interpretou fica para mim o recado que ela quis deixar para toda a sociedade: a liberdade, o direito de estar vivo, o viver o presente e a importância da comunicação com todas as gerações. E entendo que esses pontos cantados e interpretados por Elza tenham muita conexão entre si.

A intergeracionalidade é, sem dúvida, uma das soluções para a redução de muitas das discriminações presentes no nosso cotidiano e também um grande problema, já que uma parte das pessoas mais jovens não percebeu que está envelhecendo e nega, interna e externamente, a chegada dessa fase em suas vidas.

Falar de liberdade, como Elza fez, é pensar na desconstrução de muitos valores que mantém as desigualdades e injustiças no nosso país. Seja pela cor da pele, classe social, idade, gênero, tipo de trabalho que realiza ou lugar onde reside, brasileiras, brasileiros e quem aqui também reside perpetuam estruturas que fazem mal a muita gente e em nada ajuda o país a evoluir.

Se hoje você discrimina alguém por ser velho, está também permitindo que outras pessoas te discriminem no futuro, porque o velho ou a velha será você. E poderia dizer se hoje você não é pobre, mas discrimina quem é, pode ser que surja uma "pandemia" e mostre a sua fragilidade econômica e, só quando você realizar contas impensáveis alguns anos atrás, como qual carro terá que vender, quais viagens sairão do seu calendário e quais serviços você terá que fazer com suas próprias mãos, perceberá que julgar a outra pessoa só te fez mal.

Elza não era considerada como ultrapassada para todas as gerações que a viram cantar. Ela sobressaía porque cantava o que já sentiu na pele, na alma, nas articulações e na mente. Viveu com traumas e os superou, viu uma sociedade traumatizada e tentou ajudar para que algo mudasse.

Quando denunciava a violência contra as mulheres, Elza fazia uma enorme contribuição para encontrar ou acusar os agressores das pessoas do gênero feminino, jovens ou velhas. Conseguiu ser muito efetiva nessa forma de comunicação e reduziu, cantando, a ocorrência de novas e angustiantes cenas.

Quando transgrediu as normas da sua geração e decidiu que não queria mais viver no planeta fome, foi considerada uma estranha no novo mundo onde foi morar. Discriminada mais uma vez, quase deixou de cumprir seu legado na Terra, que era cantar. Foram os verdadeiros amigos que a trouxeram de volta para aquilo que mais gostava de fazer. E daí não parou mais.

Elza cantou "Exu nas escolas" que, para bons e boas entendedoras, é reivindicar a inclusão da temática racial, a verdadeira história e cultura afro-brasileira nas escolas, conforme preconiza a Lei 10.639 que, por insistência de muita gente boa e com muito profissionalismo, não deixa essa lei virar mais uma daquelas para "inglês ver".

Quando Elza trouxe batimentos cardíacos, suor, sangue, coração e corpo reais para a interpretação da música "A Carne", houve muita gente que se salvou de um quadro depressivo, que encontrou um grupo social para lhe dar acolhimento ou uma esperança para um país tão racista ainda.

Impossível não se emocionar com a voz de Elza convocando, mais uma vez, a sociedade brasileira para assumir esse compromisso, esse pacto. Ela usou e abusou de todos os ritmos musicais para alcançar todos as pessoas que a quisessem ou precisassem ouvi-la.

Na música "Meu Guri", é a mãe Elza que interpreta a mãe Maria, mãe Benedita, mãe Irene, mãe Georgina e tantas outras mães de todos os cantos do Brasil que sofrem com a luta de filhas e filhos para não perderem o direito de viver. Sim, Elza, nessa música, aposta que seu filho vencerá e será um cidadão com todos os seus direitos garantidos pela nossa Constituição.

As emoções que sinto ao ouvir na sua voz a música "Dindi" são maravilhosas, esperançosas e otimistas para que um mundo melhor seja construído por todas e todos nós, a partir de relacionamentos mais saudáveis, com maior respeito à Natureza e tudo que lá se encontra e vive. Estamos presenciando o que acontece quando desequilibramos e destruímos nossa flora e fauna.

Elza foi exemplar na arte de se comunicar. Filha de mãe Stella de Oxóssi, Elza era também filha de Iansã, uma divindade com a força de um búfalo e capaz de se comunicar com o vento e com a tempestade. Por isso que Elza não caía, não ficava derrubada. Tinha a ginga do vento, o tamanho de uma tempestade e força de um grande e respeitado animal.

Na minha ousadia literária, incluo que é também filha de Exu. Na mitologia africana, a divindade Exu é uma das mais respeitosas. É ele quem vem primeiro. Nada acontece sem a sua participação. Há um provérbio que diz que Exu acertou ontem a ave com a pedra que atirou hoje. Exu é o deus da comunicação, o orixá mensageiro, que faz a dinâmica do mundo não parar de existir, cria caminhos e novas possibilidades. E, por isso, é o deus da Comunicação.

A voz do milênio... Entende agora?

Elza Soares, sua presença sempre será percebida e enaltecida! A partir de hoje, nos espaços onde existir desigualdades que você sempre lutou contra, saberemos invocar sua força e poder de comunicação:

Elza Soares, presente!