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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Oscar, Sawabona, Shikoba e ancestralidade: falando de Will e Chris

Will e Jada Smith no Oscar. A cerimônia de premiação ficou marcada pelo tapa que o ator deu em Chris Rock - Lionel Hahn/Getty Images
Will e Jada Smith no Oscar. A cerimônia de premiação ficou marcada pelo tapa que o ator deu em Chris Rock Imagem: Lionel Hahn/Getty Images

Colunista do UOL

11/04/2022 04h00

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Um dos assuntos mais delicados das últimas semanas e que ousarei falar um pouco é sobre a cena constrangedora ocorrida na última premiação do Oscar, que envolveu dois artistas consagrados. Na plateia e prestes a ser reconhecido como o melhor ator no filme "King Richards - Criando Campeãs", Will Smith, 53 anos. E, como um dos mestres de cerimônia Chris Rock, de 57 anos.

Não vou defender uma opinião sobre o ato do tapa desferido por Will em Chris, muito menos apontar uma pessoa mais culpada, para não correr o risco de precisar mudar de opinião após mais fatos serem descobertos, envolvendo ou não processos de adoecimento de Will Smith, por exemplo, ou a forma como o humor lá nos Estados Unidos é realizado e quais os limites aceitos naquela cultura.

O que vou escrever aqui é o quanto a conexão com a ancestralidade poderia ter mudado o desfecho daquela noite para essas duas pessoas e também para Jada Pinkett Smith, companheira de Will Smith, que foi outra pessoa agredida em frente à plateia mundial, pois o programa foi transmitido para praticamente todo o planeta.

Cabe contextualizar o quanto de expectativa havia para que Will Smith fosse consagrado com um prêmio de uma instituição que, na concessão desse prêmio a artistas, produtores, diretores e demais profissionais envolvidos, viabiliza a realização de mais obras e, dessa forma, permite a extensão de suas trajetórias no mundo das artes.

A ocorrência daquela cena mexeu comigo e, acredito, com muitos leitores e leitoras. Mas o que foi suportado, interpretado e vivido, na vida real, por Will Smith para que tomasse aquela atitude? Lembrei de uma prática de um povo africano, mais precisamente da África do Sul, que, quando um dos membros comete um ato que infringe as normas e valores daquele grupo, ocorre um encontro de todos e todas e a pessoa que cometeu a ação é colocada no centro dessa roda. Cada pessoa que forma a roda conta, em detalhes, um fato positivo e digno de admiração realizado pela pessoa que está no centro. Esse ritual pode durar até dois dias. Dessa forma, a pessoa que errou começa a refletir sobre o seu último ato e, daí em diante, começa uma nova etapa da sua vida.

Sawabona é o nome dado a parte desse ritual e significa: "Eu te respeito, eu te valorizo, você é importante para mim!" Essa frase é sempre direcionada para quem está no centro da roda e repetida por todos os componentes dessa.

A pessoa que cometeu o ato responde: "Shikoba!" Isso significa: "Então eu existo para você!" E "Sawabona Shikoba" juntas significam: "Eu sou uma pessoa boa!".

Para esse grupo, toda pessoa está na Terra para fazer algo bom e, durante essa busca, pode se perder e cabe a sua comunidade resgatá-la e dar a nova oportunidade —e jamais esquecer o seu passado. Em um outro ensinamento africano, aprende-se a importância de se olhar para trás para saber de onde veio e onde se quer chegar.

Entendo que haverá punições decorrentes das normas vigentes, nos Estados Unidos e no mundo, que refletirão em cancelamentos e perdas de patrocínio, seja para Will, seja para Chris. Mas acho injusto e desumano que dois grandes atores sofram para o resto das suas vidas por esse ato cometido.

Chris Rock sabe muito bem o que significa o cabelo para mulheres negras. Em 2009 produziu um filme sobre cabelos de mulheres negras. "Good hair" foi uma obra bem recebida e valorizada ao abordar o assunto cabelo que, como boa parte da sociedade brasileira sabe, sempre será um ponto muito delicado, pois acaba fazendo parte da construção de muitas identidades, não apenas femininas.

Jada Pinkett Smith  - Getty Images - Getty Images
Jada Smith tem alopecia, condição autoimune que pode provocar a perda de cabelo
Imagem: Getty Images

Ainda assim, Chris foi atravessado pela mesma situação que o levou a produzir o filme e agrediu, se de forma recreativa ou não, Jada Smith, de 50 anos. Fatos de um modelo de discriminação racial que envolve toda uma sociedade. Sim, falo do racismo operando e gerando entretenimento para milhões de pessoas, em um dos horários mais nobres da TV no mundo.

Dois senhores de mais de 50 anos brigando foi uma das cenas mais horríveis televisionadas até hoje! Lamento por todas as pessoas mais velhas que vieram antes deles e que esperavam que aquele momento fosse histórico, com outro mais velho na plateia, Denzel Washington, de 67 anos, que previamente, talvez com aquela sabedoria ancestral, advertiu Will dos perigos que o sucesso pode trazer.

O que disseram ou diriam as mais velhas e os mais velhos de Will e Chris, digo pais, mães, irmãos, irmãs, tios e tias? Já não seriam suficientes essas conversas íntimas, talvez pesadas, mas, ao mesmo tempo, acolhedoras, preocupadas, repletas de muito amor porque o que essas pessoas mais querem é que Will e Chris continuem a crescer, a evoluir e servirem de exemplo para filhos, filhas, netas, netos e, como celebridades, para outras pessoas espalhadas pelo mundo todo. Will e Chris mexem com nossas emoções, nos comovem e, atravessados pelo que repreendem até nas suas obras e entrevistas, foram pegos de forma repentina e avassaladora.

O diálogo seria uma solução muito interessante para aquele momento no palco, talvez com ironia, em tom de piada, ou com a dramatização que são capazes de praticar. Tudo isso seria melhor que o tapa executado. Se foi real ou aparente, isso pouco importa agora. Mas aquele gesto, na linguagem dos não atores, foi interpretado com algo real.

Querer culpabilizar alguém sem ouvir todas as pessoas envolvidas e entender o contexto pode não gerar bons resultados para todas as pessoas envolvidas, incluindo seus fãs ou quem admira seus trabalhos.

Jada também precisa ser ouvida, acolhida e ter sua oportunidade de agir, caso queira. Já disse, após esse fato, que agora o tempo é de cura, talvez dela mesma, talvez de Will, talvez da forma como os relacionamentos ocorrem, talvez sobre o que o mundo considera como certo ou errado.

O cancelamento dessas pessoas não irá evitar que nossas cenas ocorram em qualquer parte do mundo. Precisamos aprender com o fato ocorrido e sairmos melhor. Em tempos de transmissões de grande audiência de cenas de fome, de morte, de brigas, de mísseis, de corrupção, de violência decorrente da idade, pele, gênero, classe social ou condição de saúde que se tem, deixar de valorizar o trabalho de tanta gente boa que, por ter errado uma vez em espaço público, poderá ser uma atitude incoerente nossa enquanto sociedade que, cada vez mais, é carregada de um olhar e valores punitivos, de exclusão e cancelamento de oportunidades.

Sawabona para quem você gosta!