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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sociedade não entende de cabelos, mulheres e envelhecimento

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

12/09/2022 04h00

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Confesso que, por diversas vezes, senti ódio das bonecas de cabelos lisos.

O domingo transcorria normalmente. Da correria do cotidiano e da busca para pagar as contas, enquanto um adulto saía para trabalhar em pleno domingo, outro ficava em casa. Dessa vez, eu ficaria com minhas duas filhas e o único compromisso fora de casa seria ir à feira.

Enquanto preparava o café, com toda a preguiça que um domingo de descanso pode trazer, recebo a fala da minha caçula que acerta o meu coração feito uma lança e muda todo o funcionamento da minha circulação sanguínea.

Meus hormônios deixaram de me proporcionar calma e prazer para enrijecer meu tônus muscular, desengavetar a fúria e aguçar a minha objetividade para encontrar quem é responsável por essa violência contra ela.

Agora, na casa, só há tristeza e raiva molhadas por lágrimas dela e minha.

- Pai, quero meu cabelo para baixo!

E essa fala não ocorre pela primeira vez.

A minha caçula é uma criança negra e, assim como milhões de crianças e de mulheres adultas, sofre com a pressão para que seu cabelo siga um padrão que não é compatível com a sua estética, herdada de pais, avós, bisavós e tataravós negros.

Até aí, infelizmente, não há qualquer novidade, já que é muito constante essa violência contra corpos femininos e negros. Lembro também que muitos homens sofrem com essa agressão.

E o que não deveria ser aceito, mas acontece diariamente no Brasil, é que esse lugar da repulsa ao cabelo que não é liso vai se mantendo durante toda uma vida. Já na fase adulta, mulheres precisam buscar esse padrão de cabelo liso para arrumar um bom emprego e ser aceita nos grupos de trabalho da faculdade.

Sim, há grandes riscos de mulheres que não se enquadram aos moldes da sua época ficarem de fora do "jogo que torna homogêneas" as estéticas de um país tão diverso como o nosso, jogando no lixo as oportunidades de troca e de aprendizados, seja nos cuidados, seja na admiração da beleza dos corpos humanos.

Essa boneca de cabelos lisos que mencionei já deve ter causado grandes transtornos e traumas em muitas mulheres jovens, adultas e velhas. Trata-se de um brinquedo muito desejado na infância. Quantas esperavam um ano todo para ganhar uma boneca de cabelos lisos? E quantas as consideravam como suas filhas nas brincadeiras que faziam com outras crianças?

E, como sempre, era difícil para muitas se enxergarem naquela boneca que, não somente o cabelo, mas todo o corpo não condizia com aquele da criança que brincava.

E aí nasce mais um trauma de infância que dura até os dias de hoje para muita gente que já não se lembra de como é o seu cabelo natural, pois viveu sempre alisando o mesmo.

Tudo isso fica registrado para sempre na vida de muitas pessoas do gênero feminino. Não se pode esquecer da vontade que muitos tinham de brincar com as bonecas de suas irmãs ou primas, mas foram duramente impedidos por pais, avós ou responsáveis.

Algumas dessas pessoas adultas chegavam a buscar tratamentos e orações para eliminar a "vontade" de um menino de brincar com a boneca. Considerando o envelhecimento, é assim que muitas mulheres são, sistematicamente, confrontadas com essa questão do cabelo.

Se não é o cabelo crespo que, para a sociedade, deveria ser liso, é o cabelo agora mais grisalho que, para essa mesma sociedade, deveria estar na cor de quando essa pessoa era mais jovem ou, em último caso, com uma tintura bem jovial, das cores mais utilizadas nos salões de beleza, mas nada exagerado ou muito chamativo.

Afinal, estamos falando de "velhinhas", de pessoas que precisam ter um certo "comportamento e postura". Veja que é discriminação sobre discriminação, uma constante vida vigiada por pessoas que nem sempre pensam antes de falar e manifestar seus preconceitos.

Sempre foi muita "química" contra a naturalidade dos cabelos de muitas mulheres. Quantas tiveram seus couros cabeludos queimados pelo uso de pentes quentes, ainda que manejados por outras mulheres com grandes habilidades com esse instrumento?

Quantas ficaram em estado de pura ansiedade e angústia quando o cabelo não estava "liso" o suficiente para começar a semana de trabalho ou para um encontro?

Lembro de muitas das minhas primas, tias, mãe e irmãs mais velhas que utilizavam esse e tantos outros recursos simplesmente para ser uma pessoa mais aceita no mundo.

Poderia existir a vontade de ter o cabelo daquele jeito? Sim, mas nunca com a intensidade, gastos financeiros e (des)construções sociais que afetaram as subjetividades dessas mulheres tão lindas!

Lembro que minhas irmãs não tinham referências de bonecas negras na infância. Cresceram, assim como milhões de outras mulheres, sem se verem nos brinquedos, na televisão ou enaltecidas nos livros de história.

Enfim, coisas de um mundo de bonecas de cabelo liso que as exibem diariamente, por muitas horas, seja nos desenhos animados, filmes de princesas e nos corpos de modelos de muitas marcas de moda que almejam vestir os corpos de suas clientes, inclusive aqueles que não são representados nas suas próprias propagandas.

É muito provável que a leitora ou o leitor mais atento ao passado de familiares possam se lembrar de uma ou mais cenas que envolveram a estética capilar própria ou de alguém que gosta muito. Ainda mais se o seu cabelo for do tipo 4A, 4B ou 4C.

Para quem nunca ouviu falar desses termos, é provável que sua filha, e talvez sua neta, não passará pelos constrangimentos que minhas filhas e tantas outras filhas e netas com cabelos classificados técnica e friamente dessa forma passam e passarão por décadas de suas vidas.

E mulheres enfrentam essa repressão contra seus cabelos até o seu fim, já que tantas agressões e estresses sofridos podem levar a uma situação de alopecia (perda de cabelo) para muitas delas, infelizmente. E mulheres mais velhas sofrem também quando já não existe mais cabelo ou se a vontade foi de raspá-los. São cicatrizes físicas e emocionais que marcarão para sempre couros cabeludos e mentes.

Será que você já se permitiu olhar para uma mulher careca com brincos grandes? São lindas, sejam jovens ou mais velhas.
Se mulheres mais velhas assumem seus cabelos mais ondulados e crespos, também precisam explicar quais motivos as levaram a tal atitude. Onde já se viu? Agora, depois de velha vai "desleixar" e não mais cuidar de seus cabelos?

Mal sabe a pessoa desatenta ou cheia de preconceitos que cabelos ondulados e crespos são muito bem cuidados. Falo, agora com conhecimento e vivência, dos cuidados que temos para com nossas filhas para que essas se sintam princesas ou rainhas com seus fios crespos.

São situações como essas que a sociedade não está preparada: deixar que mulheres decidam o que querem fazer com os seus cabelos.

Ainda bem que milhares de mulheres não vieram ao mundo para somente deixar um registro ou acompanhar a vida de outra pessoa. Muitas vieram com um plano de transgressão, não importando a idade na qual começariam esse ato. E essas, muitas vezes, são as mulheres mais velhas com seus cabelos coloridos, sabe? Azul, roxo, laranja, rosa, pink ou magenta.

E, se não bastasse, ainda insatisfeitas com essa "transgressão", essas mulheres mais velhas e outras também exploram, acompanhadas de suas bengalas, seus andadores ou trabalhando naquele setor onde só há pessoas mais jovens que ela, os cortes assimétricos que só ficam bem em pessoas com muita personalidade e beleza. Basta você olhar ao seu redor e você as encontrará e perceberá que eu não exagerei ao falar tão bem delas.

Minha dor e lamento pelo sofrimento de minhas filhas pelos seus cabelos crespos me torna um guerreiro que se agiganta e que não anda sozinho. Tenho muitas pessoas, de todos os gêneros e cores de pele, ao meu lado e que sabem muito bem o que sentimos com essa agressão.

Eu escrevo para as minhas e também para as crianças, mulheres e pessoas de qualquer gênero que tiveram seus cabelos julgados em algum momento de sua vida.

Por mais pessoas com cabelos livres, nada presos!

Por mais pessoas com cortes assimétricos e coloridos!

Por mais mulheres carecas!

Por idosas negras com seus cabelos crespos, grisalhos e soltos!

O mundo que lute para entendê-las!

As pessoas que aprendam a respeitá-las. Se ainda não for suficiente, usemos nossas estratégias para denunciar e desconstruir essas práticas.

Por uma igualdade de representatividade nas mídias, no consciente e no inconsciente de todos e de todas nós. Que princesas como Tiana e Deusas como Iemanjá e Oxum possam também imperar com seus cabelos crespos e para cima. Que essas protejam e mantenham livres e sob menos olhares discriminatórios todas as mulheres e pessoas que já foram uma vez ofendidas e agredidas em razão dos seus cabelos.

Das crianças até às mais velhas: muita longevidade e penteados livres e diversos!

Não sou de finalizar um texto dessa forma, mas, dessa vez, peço que compartilhe com muitas pessoas, que espalhe, que deixe recados nas minhas redes sociais, pelo Instagram ou LinkedIn. Que esse texto possa ajudar, acolher ou homenagear alguém.!