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Taise Spolti

Hepatotoxicidade em pequenas doses diárias: perigos escondidos na rotina

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

13/02/2022 04h00

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O caso da enfermeira que morreu devido a uma hepatite fulminante após consumo de um chá "emagrecedor" contendo 50 ervas acendeu um alerta na população: será que meu chá calmante pode estar me fazendo mal?

Essa pergunta foi a que mais recebi nesses últimos dias, visto que estou em plena especialização em fitoterapia, área específica para o nutricionista —e outros profissionais da saúde— ser apto a prescrição de fitoterápicos e fórmulas contendo extratos e, também, chás. O estudo de bioquímica é a base para o entendimento da estrutura química de cada nutriente, do composto de cada extrato padronizado ou da interação de determinados compostos com medicamentos e condições fisiológicas individuais.

Aquela máxima de que "mal não vai fazer", quando se refere a um chá ou compostos de chás para os mais diversos fins (melhorar a digestão, desinchar, diminuir o apetite, reduzir inflamações, melhorar a imunidade, ou então, emagrecer) vem do fato de que é natural, são plantas, nossas avós consumiam e também do rótulo milenar —usado para se referir às práticas milenares orientais, com ervas e temperos baseados na cultura oriental.

Um fato que não podemos nunca nos esquecermos é que a química usada para medicamentos vem da base molecular de itens naturais. Cria-se então os sintéticos e bioidênticos, e todo medicamento tem efeito colateral. Lembrando-se disso, como não se atentar ao fato de que algo "natural" também terá efeito colateral tão ou mais perigoso ou em maior escala?

Não usamos apenas o chá, ou o fitoterápico, estamos vivendo em uma época de alto consumo do que chamamos de drogas de amplo uso, ou seja, fármacos ou substâncias ingeridas em grandes quantidades ou com alta frequência por indivíduos que não possuem indicação do uso.

A mistura de inúmeras substâncias e a exposição a que nos colocamos constantemente frente ao uso dessas substâncias, como a mistura de tabagismo e alcoolismo (ou etilismo) com medicamentos para dor de cabeça, dor nas costas, nos joelhos, para pressão alta, para o intestino preso, doenças crônicas não transmissíveis, melhorar circulação linfática e tantos outros motivos, leva a uma hepatotoxicidade rotineira, independentemente de manifestação sintomática ou não. E algumas pessoas podem estar com sintomas dessa hepatotoxicidade sem perceber.

Em uma publicação da Sociedade Brasileira de Hepatologia, em 2011, apontou-se os principais compostos e drogas responsáveis por lesões hepáticas induzidas por drogas, as LHIS, sendo, por ordem: tuberculostáticos, fitoterápicos, paracetamol e a alfametildopa (usado em pacientes com pressão alta).

Vejam bem, fitoterápicos estão em segundo lugar das drogas que possuem maior frequência de causa em LHIS, sendo potencialmente capaz de levar à hepatite fulminante, exatamente como no caso da enfermeira.

O fígado é um dos órgãos responsáveis pela filtragem do nosso sangue. Exatamente como um filtro, ele faz com que substâncias que possam ser nocivas ao nosso cérebro não cheguem até ele, assim como impede que elas causem danos ao sistema nervoso periférico, central ou a qualquer outro órgão e sistema do nosso corpo. O fígado é então essencial para que haja controle da toxicidade do que consumimos ou a que somos expostos, evitando danos maiores.

Como você já deve estar imaginando agora, sendo ele um filtro, devemos ter então um maior cuidado com a frequência ou com a quantidade daquilo que expomos o fígado em níveis tóxicos. Já sabemos que nossos hábitos atualmente estão piorando, houve alta no consumo de álcool e alimentos ultraprocessados durante a pandemia, e queda do número de praticantes de atividades físicas, o que aumentou o nível de sedentarismo no país.

Outro ponto a ser observado é o maior consumo de calmantes, medicamentos para dormir e outros compostos usados para síndromes como burnout —que sabemos ter evoluído em números de casos no último ano. Definitivamente o comportamento do brasileiro —e do mundo também— mudou.

Se apenas observarmos o fato da diminuição de atividades físicas, que auxiliam na saúde de forma geral, inclusive na otimização de funções hepáticas e diminuição de dislipidemias, somado ao aumento de álcool (metabolizado pelo fígado) e maior consumo de fármacos, já podemos entender que o fígado estará sofrendo as consequências de uma hepatotoxicidade repetidamente. Analise quantas vezes você consumiu paracetamol no último mês, principalmente aqueles cuja noite anterior foi regada a álcool e no dia seguinte a dor de cabeça apareceu.

O fitoterápico, estando na lista em segundo lugar, é seguro, deve ser orientado por profissional capacitado, e jamais por pessoas cujos resultados foram aparentemente positivos após usar algumas cápsulas para perder peso ou diminuir circunferência abdominal.

Geralmente, quem indica boca a boca algum chá ou composto de ervas assim o faz porque lhe fez bem, deu resultado em si, no primo, na vizinha, na tia, e assim se dá a indicação de produtos que não possuem registro na Anvisa, ou sequer poderiam estar sendo comercializados. Destaco ainda para alguns locais onde se vende chás e extratos secos livremente.

Somos um país rico em biodiversidade, somos exportadores de matéria-prima para diversos fins em inúmeras aplicações, inclusive para o estudo das plantas medicinais e fármacos, sendo assim, aqui temos a cultura do uso de chás e ervas, que pode ter se perdido com o tempo em algumas regiões, mas que com a facilidade de acesso e a crescente busca pelas opções voltadas à saúde, bem-estar e emagrecimento, tiveram um retorno no mercado que devemos ficar alertas, ainda mais com os casos como da enfermeira: uso indiscriminado de ervas medicinais e chás ou compostos fitoquímicos sem prescrição ou orientação.

Então, afinal, o nosso chá de camomila para acalmar, ou chá verde para o metabolismo energético pode fazer mal? A resposta é depende.

Cada composto tem uma interação com seu organismo, começando pela digestão, passando pela função hepática (olha o fígado aqui novamente) e excreção, sendo assim, dizer que todo componente é livre para o consumo por todos os indivíduos é um erro e uma imprudência.

Nosso chá de cada dia só tem benefícios a serem contados, sabendo administrar o momento e a dose correta, principalmente para cada manifestação clinica que o indivíduo deseja. Por isso o estudo da fitoterapia, assim como outras áreas como a botânica, é cada vez mais importante para a sociedade. Administrar um componente natural no nosso organismo, de forma correta, traz tanto efeito positivo quanto um medicamento, mas com menores riscos de efeitos colaterais, e é justamente por isso que devemos sempre procurar profissionais capacitados para tal orientação.

Agora, espero eu que você esteja ciente de que o consumo de qualquer fitoterápico, medicamento, fármaco, drogas e químicos no geral (que provêm inclusive da alimentação ultraprocessada e cheia de químicos e conservantes, assim como as grandes doses químicas usadas na agricultura de larga escala) pode estar causando hepatotoxicidade de rotina em seu fígado, causando outras manifestações clinicas sintomáticas como dores de cabeça constante, alterações metabólicas e alterações hormonais, as quais você não imagina que podem estar vindo de lesões hepáticas causadas pelo excesso de consumo e constância na frequência do consumo de todos os químicos que citei, somados ao álcool e, para alguns, o cigarro.

Fontes: GED - gastroenterol.endosc.dig / OMS / SBH - Programa de Educação Médica Continuada.