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Taise Spolti

Alimentação 'pode tudo': dietas da moda que liberam calorias funcionam?

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Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

06/03/2022 04h00

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Você deve ter percebido em vários posts e vídeos, nas últimas semanas, principalmente no Instagram, muita publicidade por trás de um novo padrão de dieta, que se intitula: tenha resultado comendo de tudo.

De fato, quem me segue e lê minhas matérias aqui, sabe que há uma crescente na defesa da alimentação mais livre, controlada em quantidade e qualidade, mas não restritiva, visando apenas peso ou estética e resultados rápidos. Porém, alimentação é muito além do simples comer.

Temos a separação entre comer fisiológico (fome fisiológica) e o comer emocional, aquele no qual lidamos com nossas emoções através da comida, gerando compulsão, em primeiro estágio, e como resultado muitas doenças dentro do espectro de doenças crônicas não transmissíveis, as conhecidas: dislipidemias, diabetes tipo 2 e 3 (atualmente sendo muito estudada, pois é conhecida como o diabetes do sistema nervoso central) e hipertensão arterial.

Todas as doenças relacionadas à alimentação e que hoje chamamos de síndrome alimentar aliada à síndrome metabólica são causadas diariamente, ano após ano. Ela é crônica, não aguda, e isso explica o fato de estarmos atentos ao hábito e aos fatores culturais e sociais de cada indivíduo, pois são seus padrões da vida toda, e não apenas uma única dieta, que será temporária em determinado momento daquele indivíduo.

Porém, cada dieta tem um efeito agudo no nosso corpo, que poderá ser crônico. Um exemplo é a dieta para resistência à insulina, que tem como reposta aguda o controle da glicose e resistência à insulina, fazendo com que o efeito crônico seja restaurar os efeitos deletérios do excesso de açúcar no sangue, como a glicação e o estresse oxidativo, ou melhor, uma perda de peso ponderal que pode ser mantida pelos próximos anos de vida.

Sendo assim, fica fácil entender que um efeito agudo e curto de cada dieta causa um efeito a longo prazo, tornando-se crônico. Pensando assim, é notório entender que o somatório de dietas ao longo dos anos poderá acarretar em danos à saúde, em níveis hormonais, metabólicos ou então comportamentais, e é isso que me preocupa.

A dieta do "pode tudo" prega que:

Diferentes alimentos possuem a mesma quantidade calórica. Alimentos ultraprocessados ou bem calóricos podem ter, inclusive, menor carga e índice glicêmico por conterem mais gorduras e, alguns, proteínas. Diferentes alimentos considerados saudáveis podem receber ingredientes 'poderosos' que fazem com que a carga e o índice glicêmico baixem. Sendo assim, pizza ou hambúrguer também poderiam se beneficiar de uma colher de chia ou de aveia, tornando-se uma opção ainda melhor do que os ditos saudáveis. Caloria por caloria, uma pessoa é capaz de emagrecer comendo hambúrguer, brigadeiro, pizza e demais alimentos o dia todo, desde que coma menos e faça atividade física para compensar a ingesta dessas calorias.

Não é preciso ser um especialista para saber que isso não dará certo, assim como a dieta restritiva e o boom de dietas malucas com excesso de atividade física não deram certo nas ultimas décadas, pregando uma irrealidade para a grande massa. Esse pensamento se posiciona de forma contrária a um momento de movimentação positiva no comportamento alimentar da sociedade, além de ser uma jogada de marketing pesada (que você deve evitar fazer parte), sendo perigoso a longo prazo.

Se há 20 anos tivessem nos alertado de que comer pouco, comer poucos grupos alimentares, enquadrar-se em um padrão estético e tomar medicamentos para emagrecer fossem causar tanto estrago no comportamento, emoções e relacionamento com a comida, como está sendo visto hoje, nós não acreditaríamos —mas se tivéssemos acreditado, hoje estaríamos vivenciando outro padrão social, ao invés de enfrentar milhões de mortes anuais relacionadas a doenças crônicas devido aos hábitos alimentares e sedentarismo.

Assim se dá com o dito padrão livre alimentar que aqui estou propondo reflexão. Da mesma forma que muitos anos se passaram e os danos do mal vinculo e relacionamento com a comida estão no ápice, muito provavelmente daqui alguns anos estaremos novamente debatendo que a população deve diminuir o consumo alarmante de pizzas, hambúrgueres e outros alimentos extremamente calóricos, e buscar pelo equilíbrio nutricional. Ou seja, nem uma ponta nem outra estarão sendo benéficas para a sociedade.

Levando em consideração esse comportamento alimentar descompensado, que faz a grande maioria da nossa população (tanto brasileira quanto mundial) enfrentar distúrbios alimentares e de peso, doenças crônicas e metabólicas, ir até as redes sociais e defender que uma pessoa pode se alimentar de tudo que até hoje foi debatido na ciência como sendo perigoso em quantidades altas para a nossa saúde, considero que essa atitude seja perigosa não somente pelo fato de induzir ao pensamento de que "basta adicionar aveia para reduzir índice glicêmico", mas porque servirá como gatilho irresponsável a outros milhares de indivíduos que enfrentam transtornos alimentares. Mais uma batalha a ser enfrentada nos próximos anos pela minha classe profissional, ou seja, um desserviço à saúde pública.

O que então consiste a alimentação do "pode tudo":

Uma alimentação que tenha todos os alimentos que até hoje conseguimos mostrar para a população que são perigosos à saúde, devido à quantidade de gorduras, ultraprocessados, farinhas brancas, açúcares e embutidos. Tudo está liberado, desde que fique adequado ao número X de calorias estabelecido por dia, e também reservando alimentos como leite condensado e doce de leite nos períodos pré e pós treino.

Se isso não é um crime de saúde pública, eu não sei o que mais poderia ser (e deixo aqui um espaço reservado a minha total indignação à fala, também criminosa, de "estupro alimentar").

Se você é um dos indivíduos que estão tentados a entrar nessa dieta, reitero a importância de entender o processo do alimento e a interação desse alimento no seu organismo, nos danos ou então benefícios que uma alimentação pode lhe causar a curto e a longo prazo. Lembro também quantas vezes comentamos da importância de se estar bem relacionado com a comida, pois dentro de uma alimentação saudável e hábitos de vida saudável, nega-se o excesso, evita-se o extremismo, mas respeita-se o equilíbrio, o bom relacionamento com a comida e o entendimento de suas emoções com a ajuda de profissionais habilitados, como psicólogos e nutricionistas.

Não entre de cabeça em mais uma dieta da moda.