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Taise Spolti

Você foi enganado: nem tudo que afeta seu intestino é glúten ou lactose

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

03/04/2022 04h00

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Um fato inegável é que nos últimos anos houve uma crescente busca e reclamação, por parte de pacientes e indivíduos no geral, de que suas patologias e condições de saúde se davam ao consumo de alimentos com glúten e/ou lactose. De fato, o glúten e a lactose são dois dos principais fatores com potencial inflamatório e alergênico de uma lista grande de alimentos e substâncias que temos o hábito de consumir.

Nos últimos anos, e com a disseminação de informações dadas de forma livre e até irresponsável por parte de leigos atuantes na internet, a culpa de todos os males de saúde de todas as pessoas da sociedade se deve ao fato de que temos o hábito de consumir leite, derivados de leite e glúten, que vem do pão, da massa e muitos outros alimentos. Isso é ruim ou mentiroso? Não, como já falamos em muitas matérias, escritas aqui por profissionais da saúde habilitados para tal, o glúten e o leite são sim potenciais alergênicos, podem causar danos à mucosa intestinal, inflamar, fermentar, colaborar para disbiose, desequilibrar a liberação de sinalizadores de inflamação, causar alergia e afetar, em casos mais graves da intolerância a lactose ou da doença celíaca, outros órgãos como pâncreas, fígado e cérebro.

Mas essas condições são reservadas à presença da doença propriamente dita, têm maior risco de acometer pessoas que já possuam outra doença autoimune, histórico ou, então, uma predisposição, que vem atacando o organismo devido a maus hábitos alimentares somado a outros comportamentos, como abuso do álcool, comidas industrializadas e alto consumo de conservantes, além do cigarro e outros químicos (medicamentos, por exemplo).

Mas existe uma grande preocupação que é a má interpretação dessas condições, acondicionando todas as doenças ou intolerâncias resumidas a apenas duas, que podem ser confundidas, mas que se não tratadas de forma correta, afetam até a vida social de um indivíduo, que necessariamente não precisaria estar se privando de determinados alimentos, ou então fazendo uso desnecessário de suplementos, medicamentos e enzimas digestivas.

Isso tudo me refiro à suspeita de que um indivíduo tenha problemas de saúde, disbiose e outras condições, e imediatamente se designa à retirada de glúten e lácteos da alimentação. Caso não seja feita uma investigação mais minuciosa, poderemos estar fechando os olhos para outras patologias que também afetam a saúde intestinal, e com respingos em toda a saúde, órgãos e sistemas do indivíduo.

Essas condições incluem: intolerância à frutose (frutosemia) e intolerância à histamina.

Existem algumas condições patológicas relacionadas aos alimentos: alergia ou intolerância. Dentro da alergia, destaco a alergia do tipo I, ou seja, mediada por igE, e se caracteriza pela produção de anticorpos e liberação de histamina após o consumo de algum alergênico, como amendoim, crustáceos etc. Nessa condição, os alimentos devem ser evitados pelo resto da vida, tendo o risco de choque anafilático, coma e morte.

Já na alergia do tipo II, existe a mediação por igG, que acontece de forma gradual, com produção de anticorpos e se deposita em tecidos, o que causa com o tempo a inflamação crônica. Nesse tipo de alergia, conhecemos os sintomas de forma mais longa, ou seja, de maior tempo, como ansiedade, depressão, síndrome do intestino irritável, hipertensão, asma, dores agudas, dores articulares, artrite e até fibromialgia. Nessa situação, o tratamento se dá pela exclusão completa do alimento, para somente depois da estabilização do quadro poder reintroduzir gradualmente a exposição dos alimentos de forma leve e sem riscos.

Aqui, no espectro das alergias imunomediadas, ainda temos: não mediada por igE (alergia), não igE (pseudo-alergia) e igG (alergia tipo III).

No caso das intolerâncias, acontece o que chamamos de reação não mediada por sistema imunológico, ou seja, pode acontecer por deficiência ou insuficiência enzimática para alguns alimentos e substâncias, e uma das mais conhecidas é a lactase, ou seja, intolerância à lactose.

A intolerância à frutose, ou seja, frutosemia, se dá pela ausência, insuficiência, da enzima frutose-1-fosfato aldolase, impedindo o individuo de consumir alimentos que contenham frutose (frutas e alimentos contendo frutose adicionada) e também sacarose e sorbitol. Os sintomas da frutosemia podem ser facilmente interpretados como uma intolerância à lactose ou ao gluten, já que ambos oferecem quadros clínicos muito parecidos de forma tanto aguda quanto crônica: dor no estomago, vômitos, hipoglicemia após o consumo, estufamento, sintomas clássicos de inflamação como acne, queda de cabelo, unhas enfraquecidas, celulite em grau maior, rinite, entre outros.

A única forma de diferenciar as intolerâncias é através de testes específicos, como a dosagem de aldolase, e teste de tolerância à frutose. Muito comum é acharmos pacientes que já chegam na clinica para serem atendidos com histórico de retirada de lácteos e glúten da dieta através da suspeita vinda de informação lida em redes sociais, e como o quadro de qualquer intolerância pode ser melhorado com o simples retirar de alimentos potencialmente alergênicos, o paciente acredita que seu quadro melhorou, porém está retirando alimentos errados da dieta e mantendo os alimentos que não deveriam estar consumindo. Neste caso, com o passar do tempo, a condição de saúde piora consideravelmente, e estratégias muito mais intensas deverão ser tomadas, com a inclusão de medicamentos, e isso já leva a outra questão que seria o efeito colateral do uso excessivo de medicamentos. Uma bola de neve.

Já na intolerância à histamina, também causando quadro clinico parecido, há uma pequena diferenciação de alerta, que é o aparecimento de uma espécie de urticária na pele do indivíduo horas ou dias após o consumo do alimento que provoca essa reação, e são eles: vinho, queijos, salames e embutidos, morangos, pimentões, pimentas, tomate (extrato de tomate, molho de tomate, suco de tomate), chocolate, alimentos cítricos e até banana.

Essa condição se dá pelo nível elevado de histamina, que corresponde a uma deficiência ou insuficiência da enzima DAO (Diamina Oxidase), que é responsável por quebrar a histamina —lembrando que a histamina é um mensageiro químico que dispara resposta inflamatória. Nesse caso, o indivíduo continua se alimentando de alimentos rotineiros, como o tomate, o vinho, o salame e outros que 'não contêm glúten nem lactose', pelo engano de achar que somente estes dois estariam provocando sua condição de intolerância.

O alerta agora, para finalizar a matéria, é sobre a responsabilidade do profissional em informar o paciente sobre todas as outras possibilidades de alergia ou intolerância alimentar que vão além do terrorismo nutricional. Deveria dizer que há um alerta em cima de apenas dois tipos de nutrientes que são, sim, potencialmente alergênicos e inflamatórios, mas que podem gerar engano de interpretação, além de continuar afetando a vida e saúde dos indivíduos portadores das outras condições.