Condromalácia patelar: lesão da cartilagem do joelho não gera dor; entenda
Condromalácia patelar é o nome muitas vezes dado à dor que as pessoas sentem na região da frente do joelho. Esse desconforto ao redor ou atrás da patela ocorre durante ou após atividades em que há muito movimento do joelho (corrida, ciclismo), devido à degeneração da cartilagem da patela.
Bolas, mas o que é essa cartilagem? Pois bem, a patela é um pequeno osso que temos à frente do joelho. Quando o dobramos ou esticamos, a patela desliza, respectivamente, para baixo e para cima no fêmur por meio de uma ranhura chamada tróclea. É como se fosse um corredor por onde ela sobe e desce. A superfície desse corredor é recoberta por cartilagem, assim como a superfície da patela que nele desliza.
VEJA TAMBÉM:
- Exames de imagem não são necessários para tratar dor lombar
- Hérnia de disco: entenda o que é e como identificar o problema
- Você não precisa corrigir postura ao sentar para evitar dor lombar
É dessa cartilagem que estou falando. Ela pode ficar enfraquecida e sofrer alterações, como fissuras e erosões. A esse processo se dá o nome de condropatia. Um outro nome de condropatia é, justamente, condromalácia. Logo, é possível dizer que condropatia é igual a condromalácia.
Por outro lado, muitas vezes a dor sentida ao redor ou atrás da patela também é chamada de condromalácia. Essa mesma dor também recebe o nome de dor patelofemoral. Dessa maneira, dor patelofemoral é igual a condromalácia.
Então, se condropatia é igual a condromalácia, e condromalácia é igual a dor patelofemoral, logo a dor patelofemoral é igual a condropatia, certo? Aí está o grande erro!
Esse raciocínio parece fazer muito sentido. Mas é incorreto. De fato, considerar que dor patelofemoral é sinônimo de condropatia é um erro grosseiro, bastante grosseiro.
Ele embasa a ideia de que, quando alguém apresenta a dor na frente do joelho (dor patelofemoral), se deve verificar o grau de lesão da cartilagem. Daí é requisitado o exame de imagem (geralmente a ressonância magnética) o qual vai dizer a gravidade da lesão (de 1 a 4, conforme a classificação mais comum).
O que vou mostrar agora é muito simples. Não há relação direta entre a dor patelofemoral e a condropatia ou condromalácia. Esse conjunto de informações que está disseminado entre leigos e muitos profissionais está errado e pode levar a decisões inadequadas.
Há mais de 50 anos se observa que muitas pessoas com condropatia não sentem dor. Antigos estudos envolvendo artroscopia do joelho mostram que muitas pessoas com condropatia não apresentam dor e pessoas sem condropatia têm diagnóstico de dor patelofemoral. Esses estudos são antigos e muitos poderiam criticá-los. Porém, existem pesquisas mais recentes e modernas que confirmam esses achados anteriores.
Um estudo realizado na Holanda buscou verificar se as fissuras e alterações da cartilagem eram mais frequentes em pessoas com diagnóstico de dor patelofemoral. Ao fazer a comparação com pessoas sem o mesmo diagnóstico (por meio de ressonância magnética), pôde se observar que a frequência é bastante similar. Ou seja, em pessoas que não têm a dor patelofemoral, as fissuras e lesões da cartilagem também são encontradas. E que muitas pessoas com dor patelofemoral não apresentam tais fissuras e lesões.
Um outro estudo, realizado na Finlândia, buscou ver se era possível identificar quem tinha condropatia com base nos sinais clínicos (dor, crepitação, dentre outros). Para isso, fizeram a avaliação clínica em mais de 50 pessoas com diagnóstico de dor patelofemoral, seguida da realização de um exame de ressonância magnética e de artroscopia do joelho. Concluíram que não era possível dizer quem tinha condromalácia (alterações da cartilagem) com base nos sintomas e que estes não apresentavam relação com a importância das alterações da cartilagem.
Está vendo como as coisas são bem diferentes do que é dito por aí? Tem mais. A cartilagem não é inervada e, por isso, ela não pode ser a origem da dor. Portanto, se alguém disser que a degeneração da cartilagem é que está causando desconforto, saiba que essa pessoa está muito enganada.
Mas então de onde vem a dor?
Diversas estruturas podem estar gerando a dor, sendo a mais provável o osso que fica abaixo da cartilagem, embora outros tecidos do joelho (com a membrana que envolve a articulação) também possam ser a fonte do desconforto. Além disso, algumas mulheres com dor patelofemoral de longa duração apresentam uma maior sensibilidade à dor.
O conceito atual que a causa está na cartilagem deve ser alterado e é responsabilidade dos profissionais de saúde fazê-lo e passar a dar informações corretas e atualizadas para indivíduos e população.
Quais são os possíveis prejuízos de se continuar atribuindo à cartilagem a presença de dor?
Em primeiro lugar, isso leva à decisão de se realizar um exame de imagem para ver se a cartilagem está, de fato, lesionada. Realizar um exame leva a custos financeiros diretos ao indivíduo, ao plano de saúde ou ao sistema público, além do gasto de tempo em realizá-lo.
Em segundo lugar, muitas vezes se espera o resultado do exame para se iniciar o tratamento. Como nem sempre se realiza o exame de imediato, isso leva a um maior tempo para o início do tratamento. Embora não possamos afirmar que quem comece o tratamento tardiamente esteja sob maior risco de desenvolver dor crônica, o ideal é começar o quanto antes já que essa possibilidade existe.
Em terceiro, pessoas que ouvem que sua cartilagem está com defeito ou degenerando (termos frequentemente usados para descrever a condromalácia ou condropatia) podem assumir comportamentos prejudiciais para sua própria recuperação, como temerem a realização de condutas essenciais do tratamento, tal qual exercícios. Esse receio em relação à atividade física pode levar a um ciclo vicioso de inatividade, descondicionamento, aumento da dor e, novamente, inatividade.
Continuar a acreditar que a cartilagem é a causa da dor patelofemoral é uma forma de gerar mais custos e prejudicar o tratamento. Entender que a dor não tem relação direta com a cartilagem é essencial para que essa condição seja tratada de forma mais simples e efetiva.
SIGA O UOL VIVABEM NAS REDES SOCIAIS
Facebook - Instagram - YouTube
Referências
1. Outerbridge RE. The etiology of chondromalacia patellae. J Bone Joint Surg Br. 1961 Nov;43-B:752-7.
2. Lindberg U, Lysholm J, Gillquist J. The correlation between arthroscopic findings and the patellofemoral pain syndrome. Arthroscopy. 1986;2(2):103-7.
3. Leslie IJ, Bentley G. Arthroscopy in the diagnosis of chondromalacia patellae. Ann Rheum Dis. 1978 Dec;37(6):540-7.
4. van der Heijden RA, de Kanter JLM, Bierma-Zeinstra SMA, Verhaar JAN, van Veldhoven PLJ, Krestin GP, et al. Structural Abnormalities on Magnetic Resonance Imaging in Patients With Patellofemoral Pain: A Cross-sectional Case-Control Study. The American Journal of Sports Medicine. 2016 Sep 1;44(9):2339-46.
5. van der Heijden RA, Oei EHG, Bron EE, van Tiel J, van Veldhoven PLJ, Klein S, et al. No Difference on Quantitative Magnetic Resonance Imaging in Patellofemoral Cartilage Composition Between Patients With Patellofemoral Pain and Healthy Controls. The American Journal of Sports Medicine. 2016 May 1;44(5):1172-8.
6. Pihlajamäki HK, Kuikka P-I, Leppänen V-V, Kiuru MJ, Mattila VM. Reliability of Clinical Findings and Magnetic Resonance Imaging for the Diagnosis of Chondromalacia Patellae: The Journal of Bone and Joint Surgery-American Volume. 2010 Apr;92(4):927-34.
7. Draper CE, Fredericson M, Gold GE, Besier TF, Delp SL, Beaupre GS, et al. Patients with patellofemoral pain exhibit elevated bone metabolic activity at the patellofemoral joint. Journal of Orthopaedic Research. 2012 Feb;30(2):209-13.
8. Ro DH, Lee H-Y, Chang CB, Kang S-B. Value of SPECT-CT Imaging for Middle-Aged Patients with Chronic Anterior Knee Pain. BMC Musculoskeletal Disorders [Internet]. 2015 Dec [cited 2016 Nov 23];16(1). Available from: http://bmcmusculoskeletdisord.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12891-015-0628-9
9. Dye SF, Vaupel GL, Dye CC. Conscious neurosensory mapping of the internal structures of the human knee without intraarticular anesthesia. Am J Sports Med. 1998 Dec;26(6):773-7.
10. Rathleff MS, Petersen KK, Arendt-Nielsen L, Thorborg K, Graven-Nielsen T. Impaired Conditioned Pain Modulation in Young Female Adults with Long-Standing Patellofemoral Pain: A Single Blinded Cross-Sectional Study. Pain Medicine. 2015 Dec 14;pnv017.
11. Mallen CD, Peat G, Thomas E, Dunn KM, Croft PR. Prognostic factors for musculoskeletal pain in primary care: a systematic review. Br J Gen Pract. 2007 Aug;57(541):655-61.
12. Collins NJ, Crossley KM, Darnell R, Vicenzino B. Predictors of short and long term outcome in patellofemoral pain syndrome: a prospective longitudinal study. BMC Musculoskeletal Disorders [Internet]. 2010 Dec [cited 2016 Sep 17];11(1). Available from: http://bmcmusculoskeletdisord.biomedcentral.com/articles/10.1186/1471-2474-11-11
13. Collins NJ, Bierma-Zeinstra SMA, Crossley KM, van Linschoten RL, Vicenzino B, van Middelkoop M. Prognostic factors for patellofemoral pain: a multicentre observational analysis. British Journal of Sports Medicine. 2013 Mar;47(4):227-33.
14. Lankhorst NE, van Middelkoop M, Crossley KM, Bierma-Zeinstra SMA, Oei EHG, Vicenzino B, et al. Factors that predict a poor outcome 5-8 years after the diagnosis of patellofemoral pain: a multicentre observational analysis. British Journal of Sports Medicine. 2016 Jul;50(14):881-6.
15. Vlaeyen JWS, Crombez G, Linton SJ. The fear-avoidance model of pain: PAIN. 2016 Aug;157(8):1588-9.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.