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Cristiane Segatto

Ataque viral ao coração: como Lecio superou UTI, transplante e amputação

Lécio com esposa - Arquivo pessoal
Lécio com esposa Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do VivaBem

24/06/2020 04h00

Como milhões de brasileiros, o maranhense Lecio Vargas Galletti tem duas urgências: evitar a covid-19 e sobreviver à crise econômica. Depois de tudo o que superou nos últimos meses, não parece impossível.

Até junho do ano passado, Galletti administrava uma empresa familiar de fabricação de cerâmica em Imperatriz, a mais de 600 quilômetros da capital São Luís. Um vírus o derrubou.

De uma hora para outra, aos 40 anos, ele começou a sentir cansaço em atividades corriqueiras. Subir um lance de escada passou a exigir esforço exagerado. Acordava à noite com falta de ar. "Parecia que tinha mergulhado em uma piscina e ficado lá o maior tempo possível".

Eram sinais da grave insuficiência cardíaca que o traria de UTI aérea a São Paulo. Galletti recebeu o diagnóstico de miocardite viral, uma inflamação que fez seu coração dilatar e perder força de contração.

Não foi possível determinar qual vírus o infectou. Qualquer um pode atacar o coração, inclusive o novo coronavírus, causador da covid-19.

"A miocardite viral é relativamente frequente, mas evoluir de uma forma tão grave como aconteceu com ele não é comum", diz o médico Alexandre Soeiro, coordenador da unidade cardiológica intensiva do hospital BP Mirante, em São Paulo.

Lécio com os filhos antes da doença - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Lécio Vargas com os filhos quatro meses antes da internação
Imagem: Arquivo pessoal

Desafiando limites

Uma sucessão de lances atípicos permitiu que o paciente desafiasse limites. E, dia após dia, semana após semana, seguisse vivo. O primeiro desafio foi a transferência aérea para São Paulo.

Ele suportou a altitude e a longa viagem. Apesar de estar intubado, recebendo uma droga que tentava evitar que o coração parasse de bater e de ter um pouco de líquido no pulmão. Poderia não ter dado certo, mas deu.

No hospital, várias medicações, marcapasso e outros procedimentos foram adotados na tentativa de salvar o coração, mas logo ficou claro que Galletti precisaria de um transplante. O desafio era mantê-lo vivo e sem infecções até que surgisse um órgão compatível. Poderia não ter dado certo, mas deu.

Lécio aniversario - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Dependente da máquina

Foram quase três meses de espera. "Percebi que a vida estava passando e eu continuava preso. Dava desespero ver aquele sol bonito lá fora. Ao mesmo tempo, eu achava que ia dar certo", diz.

Galletti ganhou tempo com recursos como o balão intra-aórtico (dispositivo usado para aumentar o fluxo de sangue para as artérias e ajudar a melhorar o desempenho do coração) e a ECMO (oxigenação por membrana extra-corpórea), aparelho que funciona como coração e pulmão artificiais.

"Quando colocamos o paciente em ECMO, sabíamos que teríamos pouco tempo. Cerca de uma semana. De maneira aleatória, dois ou três dias depois, surgiu uma doação", afirma o cardiologista Soeiro.

"Foi uma internação muito difícil, mas as coisas foram acontecendo de forma sequencial e no tempo certo", afirma. "É um daqueles casos que a gente olha e tem a impressão de que não somos nós que estamos guiando".

Poderia não ter dado certo, mas deu.

A segunda chance
"Hoje entendo que passei muito perto de suportar tudo aquilo", diz Galletti. No dia em que receberia a visita de Maria Clara, a filha de 8 anos, e pensava em se despedir, foi surpreendido pela menina. Ela entrou correndo no quarto com a notícia que a família acabara de receber:

— Papai, o seu coração chegou.

O órgão, em bom estado e 100% compatível, fora doado pela família de um homem de 39 anos, jovem como ele. O transplante foi um sucesso.

Assim que acordou, Galletti logo notou a diferença. "Respirava e dormia tranquilo. Sentia o cheiro da comida pastosa e achava tudo uma delícia. Estava vivo", diz.

Poderia não ter dado certo, mas deu.

Lécio com a filha após amputação - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

A amputação

Antes mesmo do transplante, Galletti sofreu uma embolia. Um coágulo desprendido do coração alojou-se na perna direita. Os médicos notaram que ela começou a ficar gelada.

Enquanto o paciente comemorava a vida recuperada, os médicos perceberam que não seria possível salvar o pé.

"Estava tão feliz por estar vivo que concordei com a amputação (seis dedos abaixo do joelho), sem titubear. Tinha medo de que uma infecção ali pudesse chegar ao coração e, outra vez, colocar tudo a perder", afirma Galletti. "Foi a melhor e mais rápida decisão que tomei na vida".

A recuperação

Dez meses depois, ele está adaptado à prótese, pratica atividade física e recuperou os 15 kg perdidos durante a internação. "Nos momentos em que fraquejei, os profissionais do hospital sempre me deram força. Sou muito grato a eles e à família do meu doador. Estou vivo por causa desse gesto de amor", diz.

Cidadão paulistano

Depois de superar uma internação complicada (14 dias de enfermaria e 90 de UTI), um transplante e uma amputação, Galletti pretende continuar em São Paulo com a mulher Fernanda e os filhos.

"Ainda não alcancei a capacidade de manter meus gastos aqui, mas, em três anos, quero ser cidadão paulistano", diz. "A gente tem por costume criticar o serviço público, mas em São Paulo recebo, em casa, pelo SUS, os imunossupressores para evitar rejeição ao órgão transplantado. No Maranhão eu não teria isso".

Galetti tenta se manter longe da covid-19. "Estou muito preocupado e praticamente não saio de casa. Vou ficar por aqui porque, no Maranhão, os casos só aumentam", diz. Para quem batalhou tanto por uma segunda chance, todo cuidado é pouco.

Pode dar certo.

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