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Cristiane Segatto

"O governo federal lavou as mãos", diz ex-secretário de atenção primária

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

15/07/2020 04h00

O médico de família Erno Harzheim, ex-secretário de atenção primária à saúde do Ministério da Saúde, foi exonerado do cargo no final de abril, pouco depois da demissão do ministro Luiz Henrique Mandetta. Gaúcho de Porto Alegre e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ele viveu no Ministério da Saúde o início da crise provocada pela covid-19. Em entrevista à coluna, Harzheim fala sobre essa experiência e aponta o que a população pode esperar da gestão federal da saúde nos próximos meses.

VivaBem: O governo federal demonstra incapacidade no enfrentamento da pandemia. Como chegamos à situação em que estamos?

Erno Harzheim: Algumas coisas importantes ainda estão acontecendo, mas acho que o governo federal lavou as mãos em relação à pandemia. A principal atuação tem sido dos gestores estaduais e municipais. Isso é diferente do que estávamos construindo na gestão do ministro Mandetta. Havia uma tentativa do Ministério da Saúde de ser protagonista das ações, em permanente discussão com os gestores estaduais e municipais.

VivaBem: O que a população perde quando o governo federal lava as mãos?

Erno Harzheim: A gente deixa de ter um discurso único. Uma crise importante é uma grande oportunidade para a aceleração de reformas essenciais. O governo brasileiro perdeu duas oportunidades: a de ter protagonismo na gestão da pandemia e a de fazer reformas estruturantes do Estado brasileiro. Mesmo em um caminho recheado de dúvidas como nesta pandemia, a liderança tem que apontar para onde a gente deve ir com um pouco mais de segurança. Crises importantes são os grandes gatilhos dos momentos de união nacional, mas perdemos a possibilidade de unir a nação.

VivaBem: Como em uma guerra?

Erno Harzheim: A pandemia tem semelhanças com a guerra. Ela produz perda de vidas, sofrimento, impacto econômico e organizacional, medo, pânico, insegurança. Felizmente, a infraestrutura não é destruída, mas há necessidade de reconstrução processual. O Sistema Único de Saúde (SUS), construído na Constituição de 88, representa a união nacional após o fim da ditadura. A Constituição tentou ser o melhor marco para aquele momento. Talvez ela tenha sido um pouco ambiciosa e hoje precisaria ser revista. Não em seus princípios, mas em várias diretrizes organizacionais.

VivaBem: Qual é a sua análise sobre o atual momento da saúde?

Erno Harzheim: Nenhum sistema de saúde estava preparado para enfrentar uma situação tão desestabilizadora como a pandemia. É necessário usar muito a capacidade instalada do sistema para atender a um único problema, mas os outros não deixam de existir. Nas semanas de pico da pandemia, houve excesso de mortalidade geral em várias capitais do mundo. Isso acontece porque as pessoas ficaram desassistidas em relação a outras condições de saúde. É a demonstração inequívoca da falta de preparo dos sistemas para enfrentar uma carga extra de doença súbita e aguda.

VivaBem: O sr. diz que fica frustrado quando a discussão sobre sistema de saúde é centrada em financiamento e não em eficiência. Por quê?

Erno Harzheim: Não quero discutir muito o problema do financiamento. Se a gente exagera um pouco o volume de financiamento que é colocado na saúde de um país, isso o desequilibra financeiramente. Ele tem perda de renda, de riqueza, de distribuição dessa riqueza. Isso gera mais agravos à saúde. Acho que o Brasil deveria investir um pouco mais em saúde. A parcela pública desse investimento deveria ser maior. Hoje ela está em torno de 40% do que a sociedade brasileira investe globalmente em saúde. O atual investimento público é insuficiente para dar conta dos princípios e da missão do SUS. Mas antes de aumentar o investimento é preciso corrigir o sistema.

VivaBem: Como é possível ganhar eficiência na saúde brasileira em um momento tão difícil?

Erno Harzheim: Vivemos uma crise do desenho do Estado brasileiro. Acho difícil que a gente tenha uma reforma profunda do setor de saúde, sem ter uma reforma do Estado. Não sou especialista em reforma do Estado, mas participei de forma intensa da gestão pública (direta e indireta) nos últimos 12 anos. Tenho uma noção clara, pragmática, de que o desenho de Estado que temos hoje não vai conseguir enfrentar nossos desafios. O Brasil responde com muito atraso aos seus desafios. O que nos mantém como país atrasado sempre.

VivaBem: Qual é o modelo de Estado que o sr. defende?

Erno Harzheim: Tenho uma visão liberal clássica. Guardadas as devidas proporções, defendo aquilo que o Winston Churchill propunha para a Inglaterra. O Estado tem que ser muito responsável pelas suas ações essenciais, mas não tem que se envolver com outras ações. Ele tem que ser um observador ativo de outros setores. Em alguns momentos talvez ele tenha que intervir. Agora, no meio de uma baita crise, tem que ter intervenção do Estado. Como vejo o Estado em relação à saúde? Defendo um sistema universal de saúde financiado pelo Estado, mas ele não tem que ser executado pelo Estado.

VivaBem: Um sistema de saúde semelhante ao da Inglaterra?

Erno Harzheim: Não dá para ser semelhante ao da Inglaterra porque todos os sistemas nacionais de saúde estão ultrapassados no seu modo de gestão e de execução. Como princípio, defendo algo semelhante ao da Inglaterra — talvez até com maior execução privada do que o da Inglaterra. Não importa quem executa a ação. Importa qual entrega é feita ao cidadão. Qual é o papel do gestor público? Monitorar a realidade, planejar, financiar, contratar e fiscalizar os serviços. Os serviços não precisam ser estatais. Essa é a discussão que não dá para ter no Brasil. Tu começa a ser apedrejado nos primeiros minutos.

VivaBem: O processo de gestão é lento?

Erno Harzheim: No Brasil, a prestação da saúde pública é quase um monopólio estatal. A pandemia deixou evidente que isso é um grave problema. Qual é a agilidade que o Estado brasileiro tem para reagir frente a uma situação aguda? Quem conseguiu comprar respiradores? Alguns gestores que compraram estão enfrentando problemas judiciais. Não conheço a natureza de cada processo. Não sei se houve ou não má-fé. Sei que no modelo do Estado brasileiro, adquirir um equipamento caro, em regime de exiguidade da oferta, não vai dar certo. A principal natureza do processo de gestão do Estado brasileiro é a morosidade. É impossível fazer qualquer coisa rapidamente. O desenho do Estado brasileiro beneficia quem se omite. A omissão é premiada no Brasil.

VivaBem: Por que fortalecer a atenção primária é fundamental?

Erno Harzheim: Só um sistema de saúde baseado em atenção primária consegue distribuir saúde de forma sustentável e equitativa para toda a população. Há 26 anos, o Brasil faz um grande esforço para fortalecer a atenção primária por meio da estratégia de saúde da família. É bastante tempo, mas não significa que atingimos com sucesso os atributos da atenção primária que deveríamos ter atingido. Ainda há vários problemas de acesso. Temos 46 mil equipes de saúde da família que deveriam projetar uma cobertura populacional em torno de 145 milhões de pessoas. Quando chegamos ao Ministério da Saúde e fomos avaliar isso, vimos que a população que estava cadastrada e consumia os serviços de atenção primária era de 87 milhões.

VivaBem: O sr. foi o primeiro secretário de atenção primária do Ministério da Saúde e ficou apenas um ano no cargo. O que mudou durante a sua gestão?

Erno Harzheim: Fizemos a reforma do financiamento da atenção primária. Agora ele é focado no aumento do cadastramento. Com isso, a gente forçaria a ampliação do acesso, investiria mais recurso nas equipes informatizadas, melhoraria a informatização. Isso está acontecendo. Tínhamos um componente de pagamento por desempenho, cobraríamos qualidade das equipes. Lançamos a carteira de serviços e o programa "Médicos pelo Brasil". Não conseguimos colocá-lo para funcionar. Fomos pegos pela covid e, depois, fui exonerado.

VivaBem: Havia uma grande aposta em tecnologia?

Erno Harzheim: Com tecnologia, podemos aumentar a resolução de problemas na atenção primária, com maior oferta de exames de investigação. Também podemos levar os serviços de outras especialidades para a atenção primária por meio da telessaúde. Sou uma das pessoas que mais trabalhou com isso no Brasil. O projeto de telessaúde que criamos no Rio Grande do Sul em 2007 tirou 200 mil pessoas da lista de espera por consulta especializada no Estado.

VivaBem: Veio a pandemia e mostrou que a telemedicina é necessária...

Erno Harzheim: Conseguimos fazer uma portaria liberando a teleconsulta durante a pandemia. Permitir isso para deixar de funcionar depois beira o ridículo. Os sistemas de saúde não têm uma atenção primária realmente forte — com exceção do Canadá, do Reino Unido, vários planos de saúde dentro dos Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia. A integração da atenção primária com a tecnologia de informação e a tecnologia assistencial mais complexa ainda é muito pobre. A visão do meu grupo de trabalho é a de uma atenção primária extremamente forte, com alta capacidade de resolução clínica. Quando a pessoa não resolve o seu problema nesse contexto é porque ela realmente precisa de uma intervenção física de alguma especialidade. Existem diversas experiências inovadoras usando a internet das coisas, telemonitoramento dos pacientes e uso de outras ferramentas de cuidado no domicílio das pessoas, por meio de tecnologia. É um desafio gigante que precisa ser colocado em execução.

VivaBem: Isso está no cenário?

Erno Harzheim: Nesse sentido, o SUS retrocedeu nas últimas semanas e meses. Perdeu a capacidade de visão, não enxerga o que tem a fazer pela frente. No nosso sistema, os níveis assistenciais não se falam de maneira adequada. A trajetória de cuidado de quem está doente é um suplício. A pessoa não tem a mínima ideia de quanto tempo ela vai ficar em uma lista de espera ou por quem ela será cuidada. Nada é claro e transparente. Tanto desconhecimento gera ansiedade. Isso só se resolve quando você tem uma equipe pequena e coesa que faz a defesa do paciente, com muita tecnologia embutida. Não vejo isso na agenda.

VivaBem: O que a população pode esperar da gestão federal da saúde nos próximos meses?

Erno Harzheim: Na melhor das hipóteses, podemos esperar a manutenção do que já existe. Não tem ninguém pensando o sistema no Ministério da Saúde neste momento. Precisamos de uma reconstrução. De algo crítico e desafiador. A equipe que está lá não tem acúmulo de conhecimento para conseguir propor um novo sistema de saúde. Não vejo o governo dedicado a resolver isso. O sistema já era insuficiente antes da covid.

VivaBem: Quais os traumas deixados pela pandemia?

ErnoHarzheim: Temos um trauma nacional. Vivemos em um país dividido, com baixo grau de confiança entre as pessoas. Uma grande crise é o momento em que a gente pode se esquecer de pequenas coisas e apostar na coesão social e na confiança entre os cidadãos e o governo. Isso tinha que ter sido capitaneado por alguém capaz de trabalhar nessa confiança. Poderíamos sair da pandemia como uma nação melhor. Fizemos o caminho oposto. Cavamos um fosso ainda mais profundo.

VivaBem: Por falta de liderança política?

Erno Harzheim: Por falta de liderança política e por falta de solidariedade entre as pessoas. Somos responsáveis pelo que acontece. Uma liderança que não prega a união só vinga se tem apoio de quem também não prega a união. Não é só o Bolsonaro e seu grupo de poder que não pregam a união. O governo não prega a união, a oposição não prega a união e a população também não está muito disposta a esse movimento de união. Somos uma nação fragmentada. Uma nação que não confia em suas estruturas e nem nos outros. Um país sem um grau de confiança interno não vai para frente.

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