"Vacina é fundamental, mas nada salva mais vidas do que a justiça social"
No dia em que foi vacinado contra a covid-19, Gustavo Gusso, professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), postou a seguinte frase em uma rede social: "Vacine-se, mas ciência não é Dom Sebastião. Não há nada que salve mais vidas do que a justiça social".
Referência entre os médicos de família e comunidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e do setor privado, nos últimos anos Gusso também tem prestado consultorias a empresas interessadas em criar serviços de atenção primária à saúde, como Amil, Unimed, Dasa e Hospital Sírio-Libanês.
Em entrevista à coluna, ele fala sobre o mau desempenho do Brasil no enfrentamento da pandemia, as esperanças depositadas na vacina e o papel da atenção primária:
O que você quis dizer ao citar Dom Sebastião (rei de Portugal desaparecido em 1578 que, segundo a lenda, retornaria para aliviar a população de todos os males)?
Sinto que as pessoas depositam todas as esperanças em uma única ação. A solução para um problema tão complexo como a covid-19 dificilmente será simples assim. Os cidadãos estão achando que vão tomar a vacina e já vão poder sair de casa. Não é isso. O vírus sofre mutações e há uma série de outras coisas que precisam acontecer para evitar novas mortes.
Onde entra a justiça social?
Um dos aspectos mais difíceis da pandemia é fazer isolamento em lugares onde é impossível se isolar, como as favelas. Recebi um meme que mostrava a rainha da Inglaterra e a frase: "Por favor, fiquem em seus castelos". Moramos em pequenos castelos. Um apartamento em São Paulo é um pequeno castelo se comparado a um barraco. Conseguir a vacina é uma grande coisa, mas não substitui todas as outras medidas importantes. Tem a questão do isolamento, das UTI, do oxigênio etc. Enfrentar a pandemia exige soluções complexas.
Qual é a sua avaliação sobre a forma como o Brasil lida com a pandemia?
O Brasil deu um show de incompetência. Os principais fatores que fizeram diferença nos países que conseguiram lidar melhor com a pandemia foram o rastreamento de contactantes e o acesso aos exames. Logo no início, a Coreia do Sul fez aquelas coletas de exame por drive-thru. A pessoa colhia a amostra para o PCR, ia para casa e recebia o resultado. Se desse positivo, ela era monitorada. Quando necessário, saía de casa para o hospital com o leito já reservado. Nós não fizemos isso direito até hoje. Fui fazer um PCR e tive dificuldade de agendamento, mesmo com um plano de saúde top. Em algumas unidades básicas de saúde (UBS), o resultado demora até 30 dias. Isso não é uma política de vigilância.
O que seria um rastreamento adequado?
Na gestão do ex-ministro Mandetta, o Ministério da Saúde estava organizando um plano de rastreamento. No início da pandemia, a Secretaria de Atenção Primária à Saúde trabalhava 24 horas para lançar uma política de rastreamento por telefone e aplicativo. A equipe do secretário Erno Harzheim (exonerado em abril) estava organizando a questão dos prontuários e próximo passo seria melhorar o acesso ao PCR. Com a saída do Mandetta e dos secretários, tudo isso foi abortado. O acesso ao exame continua ruim até hoje. Não ter um plano de rastreamento dos contactantes é incrível. Em uma doença infecciosa, a vigilância é o principal. Não estamos fazendo.
A rede privada também deixa a desejar?
Em alguns laboratórios da rede privada o agendamento é feito com uma semana de antecedência e o resultado sai em 48 horas. Isso não existe. O teste tem que ser feito no mesmo dia em que começou a suspeita. Se a pessoa não tem sintomas, mas teve contato com alguém que teve, ela precisa fazer o exame de imediato. O acesso tem que ser livre. Do jeito que é feito não adianta. Em dez dias a pessoa infectada já espalhou o vírus para todo mundo. Na Coreia do Sul, a pessoa fazia o PCR, voltava para casa e ficava lá até o resultado sair. Se fosse pego na rua, sofria uma sanção. Se desse negativo, estava liberado. Se desse positivo, ficava 14 dias isolado e monitorado pelo aplicativo do governo.
Por que o acesso ao exame é tão restrito?
Isso é pura desorganização. Não me diga que o Brasil não tem dinheiro para o exame. Claro que tem. Com a gestão do Bolsonaro a gente nem conta, mas qual estado fez uma boa política de rastreamento? Não conheço sequer uma prefeitura que fez isso como deveria ser. No caso da Coreia, fizeram o rastreamento com um PCR e um aplicativo. Simples assim. Em abril, os cidadãos já podiam localizar no aplicativo onde estavam os casos positivos. A informação era pública. As pessoas conseguiam localizar quais casas e bairros o vírus já havia atingido. Vários lugares não tinham um caso sequer. No Brasil, estamos falando em vacina como se ela fosse uma solução mágica. Não é. Para evitar a tragédia, há um passo a passo que precisa ser seguido.
Por que não conseguimos agir?
No Brasil, falta tudo. Disciplina, vontade de fazer, lideranças que se empenham. Nos últimos três meses, as nossas lideranças só falam em vacina. O rastreamento de contactantes vai ser importante sempre. Não tem como deixar de fazer. A vacina não basta. É preciso rastrear contactantes, ter leitos de UTI, treinar intensivistas e fisioterapeutas, comprar oxigênio. Entre outras coisas, é preciso saber o momento certo de intubar um paciente. A intubação representa um risco enorme para a vida. UTI é um lugar perigoso. É fundamental seguir protocolos (padrões de atendimento) nas unidades de terapia intensiva. As disparidades dos índices de mortalidade nas UTIs do país é absurda, como revelou o pesquisador Otavio Ranzani em artigo publicado no The Lancet. Morreu muita gente por inexperiência das equipes.
Os gestores fizeram escolhas inadequadas?
Há um conceito da economia sobre o qual falamos pouco. É o custo de oportunidade. Para fazer uma coisa, deixamos de fazer outra. Na saúde, ninguém faz tudo ao mesmo tempo. É preciso selecionar as coisas mais importantes para fazer. Se eu disser para você fazer 15 coisas para a sua saúde, você faz três. O governo decide o que fazer. Por exemplo: se ele decide investir em hospital de campanha, ele não faz rastreamento. Não é só por dinheiro. É por capacidade também. Ele não consegue fazer tudo ao mesmo tempo. Meu ponto é o seguinte: claro que temos que investir na vacina. A vacina é a solução final em qualquer doença infecciosa para a qual existe vacina. Não podemos deixar de falar em vacina, mas é preciso tomar cuidado para não deixar de fazer outras coisas que também precisam ser feitas.
O que precisa ser feito daqui para frente para evitar mais mortes?
Precisamos voltar à política de rastreamento de contactantes que foi abandonada. Há várias formas de fazer isso. Não precisa ser só PCR. Tem aplicativo, sintomas etc.Temos que estruturar melhor a gestão de leitos. Se precisar comprar mais leitos privados, o SUS precisa comprar. É fundamental melhorar as práticas nas UTIs e garantir um padrão. Não é possível ter uma mortalidade de 20% em uma UTI e de 70% em outra. Os lockdowns temporários são importantes, mas acho que eles têm que ser rápidos e efetivos. Eu faria como em outros países. Fecham tudo por um tempo curto. Não vejo muito sentido em fechar só nos finais de semana. E, finalmente, a vacina.
A importância da atenção primária ficou evidente na pandemia?
Na atenção primária fazemos prevenção. Monitoramos a pessoa para evitar que ela vá ao hospital. Nós também tratamos as pessoas com sintomas para evitar que o problema se agrave e ela precise de hospital. Prevenção também é cuidar de gente doente. Prevenção pressupõe fazer coisas que não vão aparecer. Não é fácil perceber quantas pessoas iriam para o hospital, se não houvesse a atenção primária. Sabemos por meio de estudos estatísticos, mas não é algo visível para qualquer pessoa. O pronto-socorro, a UTI e o hospital de campanha têm muito mais visibilidade. Se, na atenção primária, evitamos o adoecimento, como as pessoas vão ver? Esse é o problema. No Brasil, as pessoas não dão valor às coisas que elas não veem.
Se não tivéssemos a atenção primária funcionando, ainda que com todas as dificuldades, a tragédia brasileira seria ainda mais grave?
É evidente que a atenção primária é crucial em uma doença em que a pessoa tem que ficar em casa, monitorada, em isolamento, observando sinais para saber o momento certo de ir ao hospital. Uma hipótese plausível é que a falta de uma atenção primária organizada piorou o caos nas cidades que estão muito mal. Manaus sempre teve uma atenção primária muito precária, assim como outras cidades do Norte e do Nordeste. Esse parece ser um dos fatores, mas não o único. A coisa mais importante no sistema de saúde é saber o momento certo de sair de um ambiente e ir para o outro. Sem a atenção primária, esse filtro crucial se perde. O filtro é feito primeiro por quem está na atenção primária. Isso serve para qualquer doença, mas, principalmente, em uma pandemia. Sem uma boa atenção primária, as pessoas correm para o hospital. Os médicos ficam inseguros de mandar os pacientes de volta para casa. O hospital vai abarrotando e vira uma panela de pressão.
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