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Cristiane Segatto

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

"Meu câncer no Hospital São Paulo: no centro de excelência, mas sem Dramin"

Emerson em um corredor do Hospital São Paulo, em novembro de 2020 - Arquivo pessoal
Emerson em um corredor do Hospital São Paulo, em novembro de 2020 Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do VivaBem

02/06/2021 04h00Atualizada em 03/06/2021 10h36

Desde o final do ano passado, o assessor de comunicação Emerson Lopes da Silva, 48, vive o paradoxo de ser tratado em uma instituição pública de referência onde falta o básico.

Por um lado, acha que teve sorte por conseguir acesso ao diagnóstico correto e ao tratamento de uma doença grave (o mieloma múltiplo, um tipo raro de câncer no sangue), graças ao empenho dos profissionais do Hospital São Paulo, instituição vinculada à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Por outro, lamenta ser testemunha da decadência da capacidade de atendimento e da falta de materiais e medicamentos que comprometem o trabalho das equipes de saúde e apavoram os pacientes.

Emerson não é o primeiro nem será o último dos atingidos pela grave crise enfrentada pelo hospital —que no mês passado tornou pública a informação de que passa por problemas como falta de remédios e superlotação, principalmente por ter se tornado uma das instituições que atende preferencialmente pacientes com covid-19. Mas o relato do assessor de comunicação representa o drama de muitos pacientes que dependem dessa importante porta do SUS na cidade de São Paulo para tratar diferentes doenças.

A seguir, as palavras de Emerson:

Emerson na primeira internação, em abril de 2019, antes da quimioterapia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Emerson na primeira internação, em abril de 2019, antes da quimioterapia
Imagem: Arquivo pessoal

"Há apenas dois anos, era saudável. Não fumava, não bebia, tinha boa alimentação e praticava exercícios físicos. De repente, comecei a sentir fortes dores na região das costelas e dos rins. Fui ao ortopedista, como acontece com muitos pacientes como eu, mas não descobri a causa do problema.

Resolvi procurar o Hospital São Paulo. Os médicos perceberam que meu quadro era mais complexo e decidiram investigar. Uma biópsia da medula revelou o mieloma múltiplo, um câncer raro no sangue que atinge os ossos e os rins. No momento do diagnóstico, em 2019, meus rins já não funcionavam mais.

O mieloma

Antes de descobrir o câncer, muitos pacientes sofrem com dores ósseas, entorses, fraturas. O esqueleto de alguns fica comprometido a ponto de parecer um queijo suíço. Quem tem mieloma pode quebrar um osso com um simples aperto de mão. Fraturei uma vértebra da região lombar ao me virar na cama.

É uma pena que as pessoas tenham que passar tanto tempo à procura de diagnóstico. Existe um exame de sangue simples e barato, chamado eletroforese, que detecta a doença. Está disponível no SUS, mas poucos pacientes recebem o pedido médico. Se existe uma forma de prevenção, seria fazer esse exame periodicamente.

Não falamos em cura para o mieloma múltiplo, mas é possível minimizar os danos por um tempo. Com um autotransplante de medula óssea, os médicos tentam fazer com que as células cancerígenas entrem em remissão. É como se elas adormecessem.

O autotransplante

Emerson durante a preparação para o autotransplante de medula, em fevereiro de 2021 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Emerson durante a preparação para o autotransplante de medula, em fevereiro de 2021
Imagem: Arquivo pessoal

Tive sorte de receber o diagnóstico correto no Hospital São Paulo. Fiz vários exames e viram que eu era elegível para o autotransplante, realizado há três meses. Estou em processo de recuperação.

Quando ocorre a "pega da medula" (renovação), os médicos consideram que o processo já alcançou 50% do sucesso esperado. A minha já pegou. O meu organismo está se readaptando a essa medula. Era minha, mas ele não reconhece mais como sendo a minha medula antiga. É como se fosse uma nova.

Transplante de medula é uma experiência muito estranha. É como se o seu cérebro e o seu corpo 'resetassem' todas as informações que ele aprendeu durante esses 48 anos. Estou tendo que reaprender a andar, a usar a força dos braços, a lidar com a minha memória. É como se eu estivesse recomeçando do zero.

Nem todo mundo tem os rins afetados por essa doença. Algumas pessoas têm, mas eles voltam a funcionar depois do autotransplante. Não foi o meu caso até agora. Hoje sou obrigado a fazer quatro sessões de diálise por semana. Cada sessão dura quatro horas. Não é fácil fazer 16 horas de diálise todas as semanas.

O preparo

Do diagnóstico ao autotransplante, demora um tempo. Primeiro é preciso preparar o organismo para esse processo. Fiz várias sessões de quimioterapia. Tomei remédios fortes em doses muito altas. Dexametasona, talidomida etc. Fiquei com uma sequela provocada pelo uso da talidomida: uma neuropatia periférica nos pés. Perdi um pouco da sensibilidade. É como se meus pés tivessem ficado fofos permanentemente. É horrível e piora no frio.

Existem remédios mais modernos, mas eles ainda não estão disponíveis no SUS. Como faço o tratamento padrão oferecido no SUS, tive que tomar talidomida. Não estou inscrito em nenhum estudo clínico de novas drogas, mas já avisei que tenho interesse em participar se surgir algum.

A crise

O Hospital São Paulo é uma instituição de excelência que funciona de portas abertas. Atende quem chegar e passar pela Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Quando estive lá pela primeira vez, decidiram me internar e já comecei a receber tratamento. É diferente do Hospital das Clínicas, por exemplo, onde só entra quem chega de ambulância ou de SAMU.

Sou grato por isso. No meu caso, estava tudo funcionando bem, dentro das possibilidades que o SUS permite. O Hospital São Paulo recebe uma verba do Ministério da Saúde para atender a população.

A situação começou a piorar no final do ano passado por falta de repasse dos valores necessários para a manutenção do hospital. A equipe perdeu a capacidade de cuidar dos pacientes como cuidava até então.

Meu tratamento começou a ser afetado quando, nessa época, faltou material para fazer a eletroforese, um exame barato que precisava fazer todos os meses. Com a crise, toda a estrutura de atendimento dos pacientes começou a ficar prejudicada. Não sou o único que sofre com isso.

O cenário

Emerson em fevereiro de 2021, quando fez o autotransplante de medula - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Emerson em fevereiro de 2021, quando fez o autotransplante de medula
Imagem: Arquivo pessoal

Há três semanas, virei uma noite no pronto-socorro. Estava com vômitos, minha pressão arterial não baixava, sentia tontura. O mundo estava girando na minha cabeça. Foi triste ver o que está acontecendo com o hospital.

Parecia um cenário de guerra. Não só por causa da covid. Eu não estava na área dos pacientes com covid. Por causa da falta de verba, não estavam conseguindo remanejar os pacientes do pronto-socorro. Tinha maca com doentes até dentro da sala de medicação, aquele espaço onde o paciente fica em uma cadeira para receber soro e os medicamentos necessários.

O pronto-socorro sempre foi lotado, com algumas macas no corredor, mas nunca tinha visto a situação daquele jeito nos dois anos em que sou atendido lá. Não consegui dormir naquela noite. Fiquei na minha cadeira de rodas. Um médico jovem, que estava se especializando em cardiologia, tentava se "virar em 20" para cuidar de tanta gente.

É triste ver folhas de sulfite coladas nas paredes avisando que não há máscaras e outros materiais. O médico receitou Dramin, mas a atendente disse que estava em falta. Por sorte, eu ainda tinha um comprimido no kit de emergência que carrego na minha mochila.

O que mais me assustou foi ver funcionário dizendo que só tinham verba para atender pacientes até setembro. Fiquei em pânico quando vi isso na TV. Se eles não tiverem mais condições de me atender, não sei o que vou fazer.

Com exceção da hemodiálise que faço em uma clínica vinculada ao SUS fora de lá, todo o meu tratamento acontece no Hospital São Paulo. Não estou conseguindo encontrar alguns dos medicamentos que uso nem na Unidade Básica de Saúde (UBS) perto de casa. Gasto cerca de R$ 1.000 por mês só com remédios.

Estou usando cadeira de rodas e só posso me deslocar em distâncias curtas. Sobrevivo graças à ajuda financeira dos amigos. Moro no Jaraguá com meus pais. Eles têm mais de 80 anos. Somos nós três em casa. Eles tentam cuidar de mim enquanto tento cuidar deles."

A resposta

Procurado pela coluna, o Hospital São Paulo preferiu enviar a seguinte nota por meio da assessoria de imprensa:

"O paciente é acompanhado desde abril de 2019 e seu último atendimento no pronto-socorro ocorreu durante a noite de 10 de maio. Foi atendido, realizou exames, avaliação oftalmológica e recebeu medicação.

Em relação ao medicamento Dramin (dimenidrinato), não é possível confirmar se havia disponibilidade no pronto-socorro no dia e horário em questão. Contudo, com a mesma finalidade terapêutica o hospital contava com domperidona, bromoprida, metoclopramida e ondansetrona.

Assim, o paciente não deixou de ser atendido de acordo com suas necessidades no momento em que procurou assistência do Hospital São Paulo".

E a nota continua: "Apesar da dificuldade enfrentada pelo Hospital São Paulo, em nenhum momento foi aventada a hipótese de o hospital fechar as portas ou deixar de atender os pacientes a partir de setembro. A informação veiculada na imprensa recentemente traz a notícia de que, caso os cortes no orçamento do Ministério da Educação permaneçam, as atividades acadêmicas serão afetadas a partir de setembro, o que não tem qualquer relação com o serviço de assistência à saúde disponibilizado no Hospital São Paulo. Esse permanecerá, com o hospital sempre de portas abertas para atender as centenas de pessoas que o procuram diuturnamente".

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