Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Contas de hospital: transtornos provocados por dívidas médicas impagáveis
Antes da pandemia de covid-19, o drama das famílias falidas por contas médicas impagáveis se desenrolava nos tribunais de justiça. Os casos tinham um enredo semelhante: beneficiários de planos de saúde eram processados pelos hospitais privados quando as operadoras se recusavam a pagar as faturas. Em geral, infladas por materiais, taxas e procedimentos em volume inexplicável e com preços difíceis de engolir.
Por orientação dos advogados das famílias endividadas ou pela dor moral provocada pela inadimplência, as histórias raramente vinham a público. A pandemia mudou tudo. O sofrimento é compartilhado instantaneamente, gera indignação e nos obriga a pensar e agir.
Múltiplas vaquinhas para pagar contas médicas brotam nas redes sociais e mobilizam atos de solidariedade. Sem conseguir vagas no sobrecarregado Sistema Único de Saúde (SUS) durante os piores meses da pandemia, famílias desesperadas moveram céus e terra para internar seus doentes em UTI's de hospitais privados.
Hoje muitas amargam uma dupla infelicidade: a perda do familiar e a dívida decorrente de um tratamento caríssimo que, em poucos dias ou semanas, consumiu economias de uma vida inteira sem ser capaz de salvá-la.
Perguntas necessárias
Qual será o impacto dessa inadimplência nas famílias enlutadas? Quais serão os prejuízos físicos, mentais, morais e civis decorrentes de internações que poderiam ter sido evitadas se, em primeiro lugar, o governo federal tivesse agido à altura do desafio imposto pelo Sars-CoV-2?
Há múltiplos prejuízos envolvidos em cada um desses casos. Para os honestos, a inadimplência pode ser devastadora. Não são poucas as pessoas que mergulham na depressão ao enfrentar uma dívida esmagadora.
Com o CPF registrado no cadastro de maus pagadores, familiares processados por hospitais podem ficar impossibilitados de abrir conta em banco, de conseguir trabalho, de fazer um financiamento etc. O "nome sujo" faz com que uma pessoa deixe de ser um cidadão presumivelmente respeitado até prova em contrário. Isso não é pouco.
Dimensionar os danos provocados pelo endividamento de saúde na população brasileira desponta como um nicho de pesquisa ainda mais relevante depois de tudo o que vivemos na pandemia.
Respostas incômodas
Prestar atenção a estudos recentes feitos nos Estados Unidos, onde a população vive a tragédia de não poder contar com um sistema universal de saúde, é uma boa forma de vislumbrar o que pode acontecer no Brasil se a sociedade permitir que o SUS seja ainda mais desmantelado.
Um estudo publicado na semana passada no Journal of the American Medical Association (JAMA) informa que, após 2014, as contas de saúde se tornaram a principal causa de endividamento nos Estados Unidos. Moradia, cartão de crédito, educação etc...Nada disso consome mais economias e desequilibra as famílias do que o infortúnio de precisar de atendimento médico.
O economista Raymond Kluender, da Universidade Harvard, e colegas levantaram informações sobre cobranças médicas em relatórios de crédito ao consumidor entre janeiro de 2009 e junho de 2020. É um período que não engloba a maior parte dos cuidados de saúde prestados durante a pandemia de covid-19.
Os dados foram usados para estimar o montante da dívida médica (nacionalmente e por região geográfica), levando em conta as faixas de renda e a distribuição geográfica dos endividados.
Contas pesadas
Segundo a pesquisa baseada na análise de dados de quase 40 milhões de pessoas, o endividamento médio provocado por contas médicas nos Estados Unidos era de US$ 429 no ano passado. Entre os 17,8% dos indivíduos que tinham alguma conta médica sem pagamento em junho de 2020, o valor médio das dívidas era de US$ 2.424.
O endividamento médio por pessoa era maior (US$ 616) nos estados do Sul e menor (US$ 167) no Nordeste do país. Os pobres devem mais (US$ 677) que as outras faixas de renda (US$ 126).
Uma observação interessante: em 2014, alguns estados expadiram o Medicaid (o programa de saúde americano destinado a famílias e indivíduos de baixa renda) para garantir atendimento médico a uma fatia maior da população.
Os pesquisadores constataram que, entre 2013 e 2020, esses estados experimentaram um declínio no fluxo médio de dívida médica 34% maior que os estados que não expandiram o Medicaid.
Vidas reviradas
É possível imaginar o impacto da redução do endividamento na vida dessas pessoas, mas um editorial publicado na mesma edição do JAMA salienta a importância da relação entre capacidade individual de pagamento e manutenção da saúde física e mental.
"As dívidas médicas e as dificuldades financeiras decorrentes delas provavelmente estão associadas a efeitos adversos à saúde. O endividamento pode comprometer a busca por cuidados médicos apropriados, retardar os diagnósticos ou exacerbar condições preexistentes. Algo que potencialmente contribui para o aumento do risco de mortalidade prematura", afirmam Carlos F. Mendes de Leon e Jennifer J. Griggs.
"Existem também claras evidências da relação entre dificuldades financeiras e redução da saúde mental. Além disso, a queda repentina de renda ocorrida após uma doença grave ou por contas não cobertas pelo plano de saúde está associada a um aumento significativo do risco de mortalidade", escrevem.
A incapacidade de obter crédito limita a autonomia e pode levar a sérias perturbações pessoais e familiares. O empobrecimento compromete outros domínios da vida, como o acesso a alimentos saudáveis, habitação de qualidade, educação, emprego e transporte. Condições determinantes para a existência de uma vida saudável.
As dívidas médicas lançam as famílias em uma espiral de desvantagem econômica, instabilidade e estigma social que pode comprometer o bem-estar e o pleno desenvolvimento dos filhos e netos das vítimas da pandemia.
A importância do SUS para a redução das desigualdades no Brasil era evidente muito antes da pandemia. À custa de um sofrimento brutal, ela reforçou o que não pode ser esquecido: copiar os Estados Unidos naquilo que eles têm de pior é péssimo negócio.
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