Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Fome: o suplício da humanidade, mas poderia ser bem diferente
A teoria malthusiana, ou malthusianismo, explicada na obra "Ensaio sobre o princípio da população", foi elaborada por Thomas Robert Malthus, então professor da igreja Anglicana, no ano de 1798 e pressupunha que a população cresceria em ritmo tão acelerado que não haveria alimentos que a suportassem, e supostamente resultaria em problemas como a fome e a miséria. Malthus defendia a ideia que a população dobraria a cada 25 anos.
Ao considerar a população predominantemente rural, não previu a Revolução Industrial e enganou-se quanto à velocidade de aumento populacional. Acertou sobre a fome e miséria que assolariam a humanidade, mas errou sobre seus motivos.
A desigual distribuição de alimentos ocasionada pela ilógica, insensata e desumana distribuição de renda é indiscutivelmente a origem dessa distorção. Assim, como diz o filósofo Cristiano: "O problema da fome não é escassez de alimento, mas de solidariedade."
Em um mundo onde a riqueza de um povo é avaliada pelo seu poder bélico e pela sua capacidade de produzir viagens espaciais, saciar a fome dos pobres passa longe da prioridade.
Gastos com guerras
Estima-se que durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), US$ 334 bilhões foram gastos no conflito envolvendo as grandes potências de todo o mundo. Mais de 70 milhões de pessoas lutaram nessa guerra deixando 10 milhões de mortos e um rastro de pobreza, fome e miséria que já não era pequeno na Europa.
A fragilidade, a desnutrição e a pobreza, bem como a migração de tropas, foram determinantes para o surgimento da grande pandemia conhecida por "gripe espanhola", que vitimou aproximadamente 50 milhões de pessoas no mundo.
Como se tivesse seus problemas essenciais resolvidos, o mundo ainda produziu com um custo financeiro estimado de US$ 4,1 trilhões a Segunda Guerra Mundial. No total, cerca de 40 milhões de civis e 20 milhões de soldados morreram entre 1939 e 1945, gerando mais pobreza e obviamente mais fome.
Para citar outras estupidezes da humanidade, gerando perdas, dor e, obviamente, recursos que poderiam ter sido utilizados no combate de problemas estruturais do planeta como a fome, o mundo assistiu diversos outros conflitos. Dentre eles:
- Guerra de Secessão Americana (1861-1865), motivada pela abolição da escravatura onde estima-se terem sido gastos US$ 79,7 bilhões;
- Guerra da Coreia (1950-1953) - US$ 341 bilhões;
- Guerra do Vietnã (1959-1975), tensão entre os dois Vietnãs (do Sul e do Norte), com entrada dos Estados Unidos em 1964, causando danos físicos e mentais para a população de ambas as nações - US$ 738 bilhões;
- Guerra do Golfo (1990-1991), após invasão do Kuwait pelo Afeganistão, comandado por Saddam Hussein - US$ 102 bilhões;
- Guerra do Afeganistão (começou em 2001), após os atentados de 11 de setembro - US$ 770 bilhões;
- Guerra do Iraque (2003-2011) - US$ 2 trilhões.
Apesar desses valores, um estudo divulgado em 2019 nos EUA indica que o país gastou US$ 6,4 trilhões (cerca de R$ 35 trilhões), apenas em recursos públicos, em guerras e ações militares no Oriente Médio e na Ásia desde 2001, quando ocorreram os atentados de 11 de setembro.
Segundo a pesquisa feita pelo Instituto Watson de Relações Institucionais e Internacionais da Universidade Brown, mais de 800 mil pessoas (dos quais 335 mil civis) morreram em consequência das guerras norte-americanas no Iraque, Afeganistão, Síria e Paquistão. Outros 21 milhões de pessoas deixaram suas casas devido à violência.
Poderia ser diferente?
Obviamente, o problema não é somente o dinheiro desperdiçado em guerras. Gasta-se dinheiro para proteger os seres humanos da loucura dos seres humanos e deixa-se seres humanos morrerem de fome por falta de dinheiro.
De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), cujo objetivo é fornecer dados, análises e recomendações para conflitos armados, despesas militares e comércio de armas, bem como desarmamento e controle de armas, a despesa militar mundial chegou a 2,3% do PIB mundial, sendo que 10% deste valor daria para financiar os objetivos globais para acabar com a fome e a pobreza estabelecidos pelas Nações Unidas por 15 anos.
Assustadoramente, o instituto revelou ainda que a exceção da África e da América Latina, antes da pandemia as despesas militares seguiam aumentando, bem como a fome no mundo.
Por falar em desperdício de recursos, os países chamados de primeiro mundo seguem seus programas espaciais sem ter sequer amenizado problemas estruturais fundamentais para a humanidade.
Desde o seu início, os Estados Unidos gastaram quase US$ 650 bilhões na Nasa. O orçamento da Nasa para o ano fiscal de 2020 foi de US$ 22,6 bilhões. Representa 0,48% dos US$ 4,7 trilhões que os Estados Unidos planejavam gastar no ano fiscal.
Para ser justo, existe um benefício óbvio das missões espaciais que é a ativação de satélites que possuem inúmeras funções, desde fazer nossos GPSs funcionarem até nos fornecer sinais de televisão, além de internet e telefones.
Especialistas esclarecem, entretanto, que esse benefício seria alcançado com menos de um terço dos recursos destinados aos programas especiais, que incluem estações espaciais em outros planetas e viagens comerciais de turismo.
O bilionário Jeff Bezos viajou para o espaço em um passeio de pouco menos de 15 minutos a um custo estimado de US$ 28 milhões (R$ 154 milhões).
Empresas como a SpaceX, do empresário e bilionário Elon Musk, fundador da montadora de carros elétricos Tesla, começam a participar da corrida comercial pelo espaço e consta que já conta com centenas de inscritos para a aventura milionária.
Não há explicações sensatas para as guerras, mas esse sonho de conquista espacial poderia ser entendido se a humanidade já tivesse equacionado os problemas estruturais que roubam a dignidade das pessoas que não possuem o mínimo para sobreviver.
Dizem que a pobreza existe não porque é difícil saciar a fome dos pobres, mas porque é difícil saciar a ganância dos ricos.
Se você achou exagero tudo isso, vamos analisar alguns dados fornecidos pela ONU sobre a fome e insegurança alimentar que assola metade da humanidade.
Caso a diferença não lhe seja clara, a ONU define fome como "uma sensação desconfortável ou dolorosa causada por energia insuficiente advinda da alimentação. Privação de alimentos; Insegurança alimentar como um estado de incerteza sobre a capacidade de obter alimentos; risco de pular refeições ou ver a comida acabar; sendo forçado a comprometer a qualidade nutricional e/ou quantidade dos alimentos consumidos."
Antes da pandemia (dados fornecidos pela ONU):
- Eram estimados 1 bilhão de pessoas vivendo entre fome e insegurança alimentar no planeta (número equivalente a toda população da Europa, América ou da África);
- Cerca de um terço da população mundial não tem acesso a água potável;
- Cerca de um quinto das crianças do mundo não ingerem a quantidade de proteínas suficientes para uma vida saudável;
- Aproximadamente dois bilhões de indivíduos (quase um terço da humanidade) possuíam algum grau de anemia;
- 24 mil pessoas morriam (já antes da pandemia) de fome por dia. Aproximadamente 9 milhões por ano. Equivale a 9 atentados ao World Trade Center por dia;
- Chegar à meta de satisfazer as necessidades básicas nutricionais e sanitárias em escala mundial não custaria mais que US$ 13 bilhões, ou seja, o que a população dos Estados Unidos e Europa gastam anualmente com perfumes.
Pós-pandemia:
- De acordo com um relatório publicado em 12 de julho de 2021, embora o impacto da pandemia ainda não tenha sido totalmente mapeado, como esperado houve um substancial agravamento da fome mundial em 2020, muito provavelmente relacionado às consequências da covid-19;
- Assim, estima que cerca de um décimo da população global - até 811 milhões de pessoas - enfrentaram a fome no ano passado;
- Estima-se que cerca de 9,9% de todas as pessoas tenham sido afetadas por falta ou quase falta de alimento no ano passado, ante 8,4% em 2019;
- O aumento mais acentuado da fome foi na África, onde a prevalência estimada - em 21% da população - é mais do que o dobro de qualquer outra região;
- O ano de 2020 foi muito triste. No geral, mais de 2,3 bilhões de pessoas (ou 30% da população global) não tinham acesso a alimentação adequada durante todo o ano: esse indicador - conhecido como prevalência de insegurança alimentar moderada ou grave - saltou em um ano tanto quanto nos cinco anos anteriores combinados;
- Em 2020 estima-se ainda que mais de 149 milhões de crianças menores de 5 anos sofriam de desnutrição crônica, ou eram muito baixas para sua idade; mais de 45 milhões tinham desnutrição aguda, ou eram muito magras para sua altura; e quase 39 milhões estavam abaixo do peso;
- Neste ano, a alimentação saudável permaneceu inacessível para três bilhões de adultos e crianças, em grande parte devido ao alto custo dos alimentos;
- E ainda neste triste ano, quase um terço das mulheres em idade reprodutiva sofre de anemia.
A fome em nosso país infelizmente nunca foi uma novidade, mas a covid agravou muito essa situação.
De acordo com o IBGE, 57 milhões de pessoas enfrentavam algum grau de insegurança alimentar em 2017 e 2018. Em abril de 2021, o número estimado nessa condição é de 116,8 milhões.
São 19 milhões de brasileiros em situação de fome no Brasil, segundo dados de 2020 da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). A comparação com 2018 (10,3 milhões) revela que são 9 milhões de pessoas a mais nessa condição.
Somos espectadores muito menos tristes que os protagonistas dessa trágica realidade. A questão que se impõe é se podemos mudar nossa condição de espectadores para também mudar o destino dos que não tiveram nossa sorte porque como disse a Santa Madre Teresa de Calcutá: "Quando um pobre morre de fome, não é porque Deus não cuidou dele, é porque nem você nem eu quisemos lhe dar o que ele precisava."
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