Topo

Dante Senra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não, seu coração não gosta de álcool!

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

06/02/2022 04h00

O dia 18 de fevereiro é o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo. Um alerta cujo objetivo é propor uma reflexão sobre o papel das drogas lícitas no cotidiano de nossa sociedade e seus malefícios físicos e mentais, tanto de forma individual quanto para a coletividade.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) define o alcoolismo como uma patologia crônica desencadeada pelo uso constante e descontrolado de bebidas alcoólicas.

Neste mês de janeiro, a Federação Mundial de Cardiologia divulgou um guia, dizendo que nenhuma quantidade de álcool é boa para o coração.

Esta federação é uma organização de defesa da saúde com sede em Genebra (Suíça) que representa centenas de associações do coração em todo o mundo.

Ao afirmar que qualquer quantidade de álcool pode levar a uma perda de vida saudável e que os danos sociais e econômicos são inquestionáveis, fez com que os críticos rapidamente atacassem essa postura dizendo que a entidade ignorou estudos que mostravam pequenos benefícios em doses moderadas.

Tal benefício seria o aumento do colesterol bom chamado HDL. Afirmam que a federação foi tendenciosa numa tentativa ingênua ou mal intencionada de ser politicamente correta.

Dentre esses críticos está a Associação Americana do Coração, membro da federação que defende que a chave é a moderação e define essa moderação com um drinque para as mulheres e 2 drinques para os homens.

A federação por sua vez rebate as críticas afirmando que não há evidências científicas disponíveis atualmente que amparem essa alegação e que esses estudos são observacionais, inconsistentes, não sujeitos a controle randomizado, com muitos vieses e apoiados e financiados pela indústria do álcool.

Afirma ainda que a alegação de que o álcool aumenta o colesterol bom é uma perigosa desinformação, pois ignora os seus efeitos nocivos que superam em muito eventuais benefícios.

Eventuais porque o aumento do bom colesterol não se traduziu em redução de risco cardiovascular. Perigosa porque essa alegação se traduz para muitos como estímulo ou desculpa para o consumo.

De que lado ficamos?

Provavelmente essa iniciativa da federação internacional tenha se dado pelo aumento significativo das doenças cardiovasculares na última década e, segundo eles, o álcool tem sido protagonista de grande parte delas.

Foram 500 milhões de novos casos de doenças cardiovasculares reportados em 2019 com 18,5 milhões de mortes naquele ano no mundo (no Brasil, quase 400 mil mortes). No mesmo ano, 2,4% das mortes —não somente relacionadas ao coração— foram atribuídas ao álcool, segundo o relatório produzido pela federação mundial do coração.

Em que se basearam para essa alegação?

Esses dados levaram em consideração uma publicação da revista Lancet de 2018 que teve como principais conclusões:

- Considerando o mundo todo, o consumo de álcool foi o sétimo fator de risco principal para mortes e incapacidades em 2016, contabilizando 2,2% das mortes nas mulheres e 6,8% nos homens.

- Entre a população de 15 a 49 anos, o consumo de álcool foi o principal fator de risco, com 3,8% das mortes em mulheres e 12,2% nos homens.

- Para a população de 15 a 49 anos, as três principais causas de morte atribuíveis ao álcool foram tuberculose, lesões de trânsito e lesões autoprovocadas. Na população com 50 anos ou mais, foram os cânceres.

- No estudo, aqueles que consumiam uma única dose por dia apresentaram um risco 0,5% maior de adoecer. Quando o consumo era de 2 doses diárias, o risco aumentou para 7%. Cinco doses significaram um aumento de 37%. A dose considerada pelo estudo é de 10 gramas de álcool puro. Em média, uma taça de vinho de 150 ml com 12% de teor alcoólico tem o equivalente a 14 g.

Reflexões

Fica claro que os efeitos deletérios do álcool superam em muito o eventual benefício do aumento do bom colesterol (chamado de HDL). E pior, esse aumento estimado em 12% parece não refletir em redução do risco cardiovascular.

Fica cada vez mais evidente a relação do uso de álcool com piora da evolução de doenças infecciosas como a tuberculose e a Aids, além da relação incontestável do consumo de álcool com o aumento dos cânceres da cavidade oral, faringe, laringe, esôfago, estômago, fígado, colo e reto bem como um aumento importante da incidência de câncer de mama nas mulheres.

Do ponto de vista cardiovascular, o álcool tem sido associado a calcificações das artérias coronárias, aumento da espessura das artérias carótidas a dilatações no músculo do coração (chamadas miocardiopatias), bem como as arritmias cardíacas e o aumento importante da pressão arterial.

Isso tudo sem contar os evidentes déficits cognitivos e psicoses produzidos pelo consumo exagerado de álcool, violência, acidentes de trânsito, desemprego e dissolução do núcleo familiar.

Ainda que fosse verdade a proteção do coração pelo uso do álcool, substituir uma doença por outra não é o que a sociedade espera da medicina.

A bem da verdade, há de se considerar a subjetividade desses dados porque a maioria dessas complicações depende da sensibilidade individual que não pode ser testada antes do uso. A própria OMS já revisou várias vezes o que considerava consumo aceitável de álcool por dia.

O aumento do consumo e das doenças relacionadas a ele são os fatores que motivam estes estudos. De 1990 a 2016, a porcentagem da população brasileira que bebia passou de 68% para 71%, e as doses diárias aumentaram de 1,8 para 3.

Para piorar, a pandemia trouxe ansiedade, isolamento e aumento importante no consumo de álcool. Cerca de 52% dos entrevistados em pesquisa apontaram o estresse e a ansiedade como as maiores causas do aumento da ingestão de álcool.

Ignoram que o excesso de álcool no organismo aumenta a ansiedade, piora a depressão e incentiva condutas violentas. Mesmo antes da pandemia o álcool foi considerado o sétimo principal fator de risco para morte prematura e incapacidade em todo o mundo em 2016.

Estima-se hoje que uma em cada três pessoas no mundo consuma bebida alcoólica.

Segundo a associação dos alcoólatras anônimos, grupo de autoajuda que presta grande serviço na recuperação dos dependentes, 10% a 15% da população adulta no Brasil se encontra em situação de risco para o alcoolismo.

Um estudo da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) demonstrou que 35% das 12 mil pessoas entrevistadas (30% dos entrevistados eram brasileiros) afirmaram beber além do considerado socialmente aceito.

Desconsideram que além do efeito (imediato ou tardio) negativo do álcool, ele costuma ser uma "porta de entrada" para o uso abusivo de outras substâncias.

Tudo isso sem contar o mau exemplo para a juventude, que já nem precisa dele, pois conta com abundante publicidade cultuando uma imagem de liberdade e sofisticação.

Sem falso moralismo, acredito, como já foi dito, que a bebida alcoólica engana ao promover breves alegrias, mas certamente imprime desgraças duradouras e como disse Willian Osler: "O álcool não faz as pessoas fazerem melhores as coisas, ele faz com que elas fiquem menos envergonhadas de fazê-las mal!"