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Dante Senra

Pós-pandemia: é bom revermos os nossos valores para valer a pena sobreviver

Vista geral da favela do Alemão, no Rio de Janeiro - Fabio Teixeira/picture alliance via Getty Image
Vista geral da favela do Alemão, no Rio de Janeiro Imagem: Fabio Teixeira/picture alliance via Getty Image

Colunista do UOL

18/04/2020 04h00

Sei que todos estão fartos de ouvir falar sobre esse malfadado vírus que nos ameaça tirar o que temos de mais valioso e, com isso, já tirou nosso equilíbrio e nossa saúde mental. Entretanto, estejam certos de que em poucos meses, talvez dois ou três, já teremos recuperado nossa sanidade e estaremos aptos a refazer as possíveis e prováveis perdas financeiras.

Mas e então? O que sobrará de tudo isso?

Se nada mudar, se nosso olhar sobre as mazelas da nossa sociedade não for alterado, precisaremos refletir sobre o tipo de anestesia a que fomos submetidos e que teve como efeito indesejável tamanha insensibilidade.

Sejamos honestos em nossa avaliação e tentemos responder a questão que não quer calar: Se está epidemia tivesse começado, ou ainda pior, atingisse apenas as classes menos favorecidas, teria tamanha repercussão?

Pensemos: a tuberculose é uma doença que está relacionada com a extrema pobreza. Segundo a Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, "moradores de rua, população carcerária, infectados pelo HIV e população indígena, que em geral vivem em uma situação de pobreza, têm um risco três vezes maior de contrair a doença".

O Brasil registrou 72 mil novos casos de tuberculose em 2018, segundo o Ministério da Saúde. No ano anterior, foram 73 mil. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a doença mata, diariamente, quase 4.500 pessoas em todo o planeta e permanece com o status de doença infecciosa mais mortal do mundo.

Os números mostram ainda que 30 mil pessoas são acometidas pela tuberculose todos os dias. Mas tem o status de ser doença de pobre.

De acordo com levantamento feito em 2017, 12% dos frequentadores da chamada cracolândia, na região central da capital paulista, eram portadores de tuberculose. Desde então, estima-se que esse número tenha dobrado.

Alias, ao falar de mazelas, talvez não exista maior mancha na sociedade paulista do que este triste local. Digo isso porque parece que nos acostumamos a conviver com este enorme descaso das autoridades, com pessoas que precisam urgentemente de tratamento, quer pelo terrível vício, quer por doenças que oportunamente neles se instalaram, tornando-as invisíveis aos olhos míopes de nossa sociedade.

No último levantamento que encontrei desse triste lugar, 17% das mulheres estavam grávidas, 73% não trabalham, 58% dormem na rua, 33% estão na cracolândia há pelo menos cinco anos.

Ainda, 69% falaram que estão procurando ajuda e 54% apenas têm contato com a família. Para piorar, 21% têm sífilis, 5% têm HIV e como disse, 12% ou mais têm tuberculose. Sabem o que acontecerá quando forem acometidos por esse vírus, não é?

Continuemos a fazer um retrato rápido e superficial da nossa sociedade...

Segundo a Agência Brasil, em nosso país 13,6 milhões de pessoas moram em favelas, sendo que 89% dos moradores de favelas estão em capitais e regiões metropolitanas. O Rio de Janeiro tem mais de 10% da população vivendo nessas comunidades, ou seja, quase dois milhões de pessoas em quase completa exclusão social, que infelizmente é o que caracteriza esta moradia.

As regiões Norte e Nordeste registraram maior percentual de pessoas vivendo em favelas —de 5% a 10%. Os estados de Amazonas, Pará, Maranhão e Pernambuco têm mais de 10% da população em favelas (ou se preferir chamar de aglomerados subnormais, nome técnico dado pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, como se mudar o nome possa amenizar tal condição).

Em estudo realizado pelo Instituto Trata Brasil em 2016, nos 100 maiores municípios do país, constatou-se que 90% dos esgotos em áreas irregulares não são coletados nem tratados. Ademais, os serviços de abastecimento de água não chegam nesses locais. O que se vê são esgotos correndo a céu aberto, ligações ilegais na canalização que contaminam a água e lixo sendo jogado em locais inapropriados.

Para piorar, a densidade populacional de algumas dessas comunidades, como Paraisópolis, em São Paulo, chega aos incríveis 45 mil habitantes por km² (no Brasil são 23,8 habitantes por km² e na Itália 200 pessoas/ km²).

Além disso, em Paraisópolis apenas metade das ruas são asfaltadas e somente 25% moram em residências abastecidas pela rede de esgoto. Mesmo assim, moradores dessa comunidade dão exemplo de cidadania e solidariedade nesta epidemia com escolas se transformando em hospitais e ruas com "chefes" para monitorar a saúde dos vizinhos. Monitoram 21 mil casas com presidentes de rua e médicos próprios. É preciso respeitá-los.

Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), o déficit habitacional no Brasil é de 7,7 milhões de residências para que a população encontre não apenas condições decentes de vida, mas tenham acesso ao que é considerado direito humano à habitação.

Outro gigantesco problema em nosso país é a imobilidade nos centros urbanos, fruto de um enorme déficit de infraestrutura no transporte público.

Problemas no acesso a saúde publica, 13 milhões de desempregados, 40 milhões de trabalhadores informais sem direitos e proteção de leis trabalhistas, para citar alguns dos graves déficits morais da nossa sociedade, do nosso país.

Aceitamos o convívio com este estado de sítio permanente, como se fosse normal ou cultural, quando na verdade é imoral.

Sem nos preocupar com nada disso, simplesmente passamos ao lado, até que um ser invisível torna visível estes irmãos que, sem emprego, dinheiro ou alimento mínimo que garanta sua subsistência, sai de seu "conforto na favela" e, simplesmente ao atravessar a rua, possa contaminar a sociedade que ignora a crueldade da exclusão, porque não lhes diz respeito.

Aí então, lembramos que existem. É a hipocrisia forçando-nos para ser bons.

Se, ao menos desta vez, depois de tudo isso, não revermos os valores de nossa sociedade, então, amigos, não valerá a pena ter sobrevivido.